COP das Baixadas: Periferia protagoniza o debate climático na Amazônia
A 3ª edição da COP das Baixadas une vozes da base para redefinir um futuro mais sustentável


3ª COP das Baixadas. Foto: Reprodução/Redes Sociais.
Separar as sementes das frutas e hortaliças antes de comê-las. Plantá-las e observar o lento crescimento, tal qual se cuida de um bebê, para depois recomeçar o ciclo. Os olhos de Kristiele Botelho brilham quando conta que aprendeu a fazer isso com o pai e a avó. Os três são agricultores na zona rural do bairro Curuçambá, em Ananindeua-PA, a 40 minutos da capital Belém.
Na beira do rio Maguari, as famílias da comunidade vivem da produção de hortaliças e frutas que abastecem a mesa de quem vive na cidade. “A galera vê jambu para todo lado, por exemplo, e não se pergunta de onde ele vem”, comemora. O espírito de coletividade ainda remete ao dos seus ancestrais indígenas: emprestar água do poço para o vizinho regar sua horta, levar de carro a produção de todos até as feiras e trazer de volta.
O pai de Kristiele era um dos poucos que tinha carro na comunidade e foi assim que eles se articularam com toda a comunidade e, com o tempo, com grupos até de Altamira-PA na beira do rio Xingu. “Lá há uma incidência grande do movimento indígena, que luta pela manutenção das espécies nativas por meio do plantio das sementes”, explica.
No Ensino Médio, a militante se engajou na luta por educação de qualidade, participando de atos políticos e entrando na Rede de Mulheres Agroflorestoras da Amazônia (RAMA), e assumindo a vice-presidência do Instituto Negritar. Surgia aí a alcunha com que se apresenta, Cóxmiika, pela sua capacidade de conectar vários territórios na luta pela visibilidade da permacultura e da agrofloresta.

Cósmiika tem a capacidade de conectar vários territórios na luta pela visibilidade da permacultura e da agrofloresta. Foto: Reprodução/Redes Sociais.
Em linha com seu propósito de conectar vozes e territórios, pediu o microfone para se apresentar a Rosalía Clemente, indígena quechua do Peru e participante de uma das mesas que compuseram a programação da 3ª COP das Baixadas, que aconteceu de 22 a 24 de dezembro, em Belém.
Na oportunidade, Rosalía denunciou a violação de direitos sofrida pelo seu povo. Reiterou que são as mulheres indígenas que abastecem a população desde sempre, pois são elas que cuidam das sementes que geram o alimento que vai para a mesa dos peruanos.
“Estamos sempre ouvindo histórias sobre quem destrói a floresta. Eu quero ouvir histórias de quem a reconstrói”, pontuou Cóxmiika. Ela não é a única: desde a primeira edição, o mote da COP das Baixadas é conectar aqueles que estão à margem e que sofrem com as mudanças climáticas, convidá-los a participar do debate e apresentar maneiras alternativas de lidar com o desenvolvimento.
A coordenadora do evento, Suane Barreirinhas, vive na comunidade de palafitas Vila da Barca, que ganhou visibilidade internacional por ser uma das mais afetadas pelas obras na capital paraense. Desde a COP27, em novembro de 2022 no Egito, ela questiona: “como existiram outras 26 Conferências e só agora estamos descobrindo ela, cujas decisões afetam nossas vidas há tanto tempo?”.
Mesmo sem imaginar que um dia Belém seria a sede do evento, Suane decidiu replicá-lo nas baixadas — o nome usado para as periferias da capital, pois elas estão a um nível abaixo do solo onde a cidade se desenvolveu e, por isso, estão mais suscetíveis a alagamentos.

A coordenadora do evento, Suane Barreirinhas, vive na comunidade de palafitas Vila da Barca. Foto: Reprodução/Redes Sociais.
A 1ª edição da COP das Baixadas aconteceu no bairro do Jurunas, fronteira com áreas nobres e marcado pela resistência popular. Com o mote “A Conferência que queremos”, a partir dos eixos“clima e sociedade”, “direito à cidade” e “comunicação e ativismo”, o evento teve dois dias online e um presencial, devido ao final da pandemia, ainda em 2022. Tanto a primeira quanto a segunda edição estão disponíveis online.
O sucesso levou à terceira edição, articulada por 18 coletivos e organizações e apoiada por instituições como a World Wildlife Fund (WWF) e a OXFAM Brazil e a própria Prefeitura de Belém. Como sede, foi escolhida a Fundação Curro Velho. Localizada ao lado da Vila da Barca, a instituição é historicamente reconhecida como um lugar de formação de artistas e pensadores da cultura popular.
O acesso aos três dias de programação foi gratuito e abrangeu rodas de conversa, oficinas, intervenções e apresentações artísticas, feira de artesanato, atividades de lazer e esporte, e exibição de curta-metragens. O evento culminou com a assinatura de cartas direcionadas ao poder público e o lançamento da 3ª edição da Revista Vozes, produzida por adolescentes da Vila da Barca no âmbito do projeto Memória e Cultura Periférica.
Com a proximidade da COP30 intensificando os desafios deste ano, a coalizão de jovens demonstrou estar à altura. Não só atraíram a atenção da mídia internacional, como também já participaram de eventos fora do país. Prova disso é a presença do grupo em Letícia, na Colômbia, nos dias 12 e 13 de agosto, para o Primeiro Encontro Regional de Comunicação Pan-Amazônica. Na ocasião, conheceram veículos e redes independentes do Brasil, Peru e Colômbia, e debateram a comunicação durante a Conferência da ONU. Além disso, mantém articulações com organizações estrangeiras, como o Greenpeace, e de outras regiões do Brasil.
“Estamos no caminho certo. Desde a COP27 já estivemos nos pavilhões da Green Zone, o que parecia ser muito difícil, e agora estamos dentro desses pavilhões na COP30. Mais uma vez dizemos que as baixadas estão e vão continuar discutindo o clima pela vertente da juventude e também das pessoas mais velhas. Nossos lugares ficaram com o ônus, e mesmo que não estejamos na Blue Zone, temos a nossa própria (Yellow zone). Às vezes temos que brigar, bater na porta, até arrombar a porta, mas vamos entrar e fazer acontecer!”, afirma Suane Barreirinhas.
“A Amazônia é um museu a céu aberto para onde fomos ensinados a não olhar”
Aos 78 anos, Graça Santana foi a primeira a tomar a palavra na mesa sobre pontos de memória.Depois de trabalhar por 15 anos no Museu Paraense Emílio Goeldi, ela integra o Fórum de Museus de Base Comunitária e Práticas Socioculturais da Amazônia (PMFMA) e participa ativamente da reconstrução da memória do seu bairro, a Terra Firme. Um nome irônico para uma área alagada, construída sobre uma das maiores bacias da capital, a do Tucunduba.
Lembrado normalmente nas notícias policiais junto com seu vizinho Guamá, o Terra Firme guarda lembranças de uma época em que se pescava na beira do rio. Hoje, terá seu antigo mapa refeito pela turma de Geodésia e Cartografia do Instituto Federal do Pará (IFPA).
Outra figura importante que atua na preservação da memória e cultura local é a Mestra de Cultura Laurene Ataíde, moradora da Ilha de Outeiro, um lugar também marginalizado. Ela catalogou diversos cordões de pássaros pelo Pará e, principalmente, onde mora. Laurene coordena o Cordão de Pássaro Colibri de Outeiro, grupo criado por sua mãe para participar de eventos juninos.
O cordão de pássaro é uma manifestação cultural genuinamente paraense e nascida na Belle Époque, durante o primeiro Ciclo da Borracha (1870-1910). As viúvas, e os escravos que acompanhavam as filhas dos barões que assistiam às óperas europeias no Theatro da Paz tentavam reproduzir os espetáculos em suas localidades.
Trata-se de um espetáculo realizado nas ruas, misturando elementos das histórias do Velho Mundo, como as fadas e os príncipes, com elementos regionais como os pajés, o carimbó e o “matuto cearense”.
“O povo não valoriza e até nem conhece o que é um cordão de pássaro. Mas já tivemos mais de 400 manifestações no Pará, que cataloguei dentro do meu trabalho de resgate. Em Outeiro, criamos o Pipira da Água da Boa e outros. Em Parauapebas [cidade no sul do Estado] trouxemos o Arara Vermelha de ônibus para se apresentar no Theatro da Paz, o que custou 15 mil reais. Não é fácil”, conta a Mestra.
Às vezes, explicam os agentes de mudança, o processo parece invisível ou infrutífero, mas é na união que encontram força. A Mídia NINJA, projetada nacionalmente durante as manifestações do “Vem Pra Rua” em 2013, associada por muitos ao eixo Rio-São Paulo, nasceu na parte continental do Brasil: em Cuiabá-MT, no Cerrado, crescendo dentro da Caatinga (interior do Nordeste) e da Amazônia.

Mesa durante a COp das Baixadas. Foto: Reprodução/Redes Sociais.
Alê Santos, natural de Parauapebas, é integrante da Mídia NINJA e da Casa NINJA Amazônia. Ela aproveitou a mesa que compôs na COP das Baixadas para falar sobre a iniciativa “Rede Fora do Eixo”, que integra diversos pólos da organização pelo país, e sobre a “Floresta Ativista”, o site que concentra os conteúdos produzidos fora dos grandes centros. Alê convidou os presentes a participar do Banker. O centro de mídia colaborativa da Mídia NINJA para a COP30, que ainda será lançado, propõe reunir jornalistas e parceiros de toda a América Latina.
Ao lado de Alê, também participaram da mesa Joana Amaral, do Observatório do Clima, Jean Ferreira, mediador pela COP das Baixadas e Gueto Hub, e Thiago Arapiuns, do Coletivo Indígena Kirimbawaita.
Thiago nasceu no município de Santarém-PA, na bacia do rio Tapajós, e se especializou em produção audiovisual. No seu coletivo, ele “traduz” o linguajar acadêmico sobre as pautas climáticas para a maneira que seus conterrâneos se comunicam. Sua intenção é trazer as vozes da juventude indígena para o debate mundial.
“Nós, os jovens, somos os convidados para os protestos dos movimentos sociais, principalmente na capital Brasília-DF. Convidados para eventos com organizações como a Fiocruz. Mas nossas vozes ainda não são totalmente ouvidas. Dentro das periferias tem gente que não tem energia nem para ligar o ventilador direito, tem gente que nem sabe escrever, tem gente cuja internet só funciona por algumas horas no dia, e querem que a gente discuta sobre TV 3.0 [Smartv]?” ironiza.
“Precisamos falar sobre transição energética, sobre como colocar os nossos dentro das organizações e da política. Mostrar que dentro dos ‘quintais do mundo’, nesse ‘mato’, tem pessoas. Precisamos juntar os nossos coletivos e nos organizar politicamente. Por isso estamos nos capacitando. A minha missão é terminar de estudar aqui em Belém e voltar para casa para formar meu povo; porque o Pará é um dos Estados com mais indígenas, mas os lugares dentro das universidades ainda estão sendo mais ocupados por indígenas de Estados vizinhos”, declara Thiago Arapiuns, que pretende usar a capacitação em formatos audiovisuais como ferramenta para que o seu povo se divulgue mais.
O discurso encontra coro em Yuri Rodrigues, da organização FASE, e Waleska Queiroz, do Observatório das Baixadas. Waleska, que vive na Terra Firme, enfatiza que este é o momento de abandonar a visão da Amazônia como um objeto de estudo acadêmico e o lugar mais perigoso para os defensores dos Direitos Humanos, e mostrar que aqui existem pessoas com conhecimentos tradicionais que vivem numa lógica horizontal e solidária, merecendo a garantia de sua sobrevivência.

Waleska Queiroz, da Coalizão COP das Baixadas, ao lado de jovens que constroem uma agenda climática popular a partir das periferias de Belém. Foto: Acervo pessoal.
Yuri provoca que somente com a organização dos diversos grupos e instituições, tanto socialmente quanto politicamente, será possível garantir moradia e alimentação dignas, por meio de regularização fundiária e acesso a políticas públicas.
“É uma estratégia histórica desde a escravidão: tudo o que influencia nas decisões políticas e econômicas deixam à nossa margem para que pensemos que não pertencemos a essa conversa. É um processo para que o trabalhador que está tentando garantir a sua moradia e comida entenda que ele deve se atentar às mudanças climáticas também, porque isso o afeta”, diz.
“Enquanto o Norte global se une por um objetivo comum [o lucro], a América Latina não conversa entre si”, expõe Waleska Queiroz. “É por isso que mais do que cobrar quem agride o meio ambiente e nos afeta, é fundamental encontrar e se articular com quem são os nossos aliados”, completa.
Kristiele Botelho, a Cóxmiika, entendeu o recado e já saiu do evento com a agenda de contatos renovada. Ela acompanha o fato de a urbanização do Curuçambá, seu bairro, não levar em conta que o asfalto das novas vias está sempre em um nível mais alto que as hortas, que correm o risco de serem destruídas durante as enxurradas — o que já aconteceu com alguns de seus vizinhos.
Discutir modelos de urbanização adaptados para cada realidade, ao invés de considerar que bairros como o Guamá e o Reduto, em Belém, são iguais, é algo que o Estado deve aprender com o conhecimento de quem há séculos cultiva a terra.
“Ainda se pensa que o agricultor não tem estudo, que ‘se não estudar, vai morar na roça e acabar na enxada’. Quem é da cidade pensa muito no quanto se gasta para comer tal coisa, ao invés de pensar o comer como ato político: o que você está comendo? Por que no mercado é difícil encontrar a hortaliça que é plantada na terra, será que é por que o seu cultivo é mais demorado? Hoje está difícil plantar o que plantávamos antes. A alface, por exemplo, não tá conseguindo acompanhar as mudanças no clima. A gente acaba entrando na monocultura, cultivando espécies que resistem mais, porque é uma burocracia muito grande conseguir um financiamento e porque quem é mais velho demora mais para entender os procedimentos mais modernos. Mas a permacultura e a agrofloresta vêm para tirar essa ideia do ‘mono’ sobre o alimento e a cultura”, desabafa.
Apesar das inúmeras conferências e reuniões diretas com o Governo de Ananindeua, Kristiele afirma que a resposta costuma ser evasiva: “vamos anotar e depois dizemos o que faremos”. Há uma constante frustração, pois, segundo relata, “quando lançam o plano de urbanização, ele é do mesmo modo que uma avenida João Paulo II. Parece que falamos com nós mesmos sempre.Mas ao menos saímos com registros das reuniões, que nos ampara juridicamente e diante da imprensa”.

Discutir modelos de urbanização adaptados para cada realidade, ao invés de considerar que bairros como o Guamá e o Reduto, em Belém, são iguais, é algo que o Estado deve aprender com o conhecimento de quem há séculos cultiva a terra. Foto: Reprodução/Redes Sociais.
Com a aproximação da COP30 e com a realização de eventos como a COP das Baixadas, Cóxmiika e outros moradores das periferias encontram brechas para mostrar os seus saberes, dores, espiritualidades e resultados. Ela comemora, por exemplo, que recentemente participou de uma Yellow Zone no bairro Águas Lindas, próximo ao seu, podendo ir de bicicleta ao invés de se deslocar até a capital.
São movimentos como esses que reforçam a participação política de quem nunca tinha sido convidado para o debate. “Divulgam que podemos alugar nossas casas e ganhar um extra, mas não divulgam onde tem Yellow Zone; quem são os coletivos, cúpulas, ONGs fazendo políticas de base comunitária. A COP30 é participativa, apesar de não nos contarem que é, e já está acontecendo. Com ela, a gente pode não ter mudanças, mas pode conseguir desacelerar algumas coisas e mostrar que, mesmo sem recursos, temos dados que comprovam os efeitos positivos do que fazemos. Pode não ser muito para eles que visam o lucro, mas é para a gente que vive aqui”, opina.
Texto: Nayra Wladmila
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón