A atualidade de um clássico: Edilson Martins relança “Nossos Índios, Nossos Mortos”

No LatitudeCast, o jornalista de 90 anos fala sobre sua trajetória marcada pela resistência, o relançamento de sua obra mais emblemática e os desafios das questões indígenas no Brasil de hoje

Edilson Martins relança o emblemático livro "Nossos Índios, Nosso Mortos". Fotos: Divulgação.
Edilson Martins relança o emblemático livro "Nossos Índios, Nosso Mortos". Fotos: Divulgação.
Edilson Martins relança o emblemático livro "Nossos Índios, Nosso Mortos". Fotos: Divulgação.

Edilson Martins relança o emblemático livro “Nossos Índios, Nosso Mortos”. Fotos: Divulgação.

Aos 90 anos, com nove livros publicados, mais de cinco décadas dedicadas à cobertura das questões indígenas e um Prêmio Vladimir Herzog, Edilson Martins relança seu livro mais conhecido e aclamado, Nossos Índios, Nossos Mortos.

A obra retorna pela Editora Letra Capital, reafirmando seu papel pioneiro de aproximar a opinião pública da realidade indígena e mostrando como os relatos de meio século atrás continuam vivos e atuais.

Neste episódio do LatitudeCast, conversamos com Edilson Martins sobre sua trajetória marcada por resistência, suas reflexões sobre democracia e política no Brasil, e sua visão para o futuro das questões indígenas em meio aos desafios contemporâneos.

Confira agora o episódio do LatitudeCast:

Amazônia Latitude: Bom dia, Edilson. É um prazer ter você aqui na Amazônia Latitude. Primeiramente, nós gostaríamos de saber o que há de novo no relançamento.

Edilson Martins: O que há de novo é o que há de velho, porque esse livro foi lançado na primeira metade dos anos 70, ele tem 50 anos, e ele continuou, evidentemente, atual. Como surgiu uma editora que edita livros acadêmicos, que é a Letra Capital, e eles me convenceram, até com o gancho da COP30. Então, o livro está saindo.

Ele foi acrescido de um texto que eu fiz, no ano de 2002, portanto, há 23 anos atrás, porque todo livro é escrito em 70, né? Mas houve um apelo para que se publicasse um episódio que eu vivi com a Marina Silva. Em 2002, a Marina Silva era candidata ao Senado pelo Estado do Acre, e eu fui fazer uma entrevista com ela. Eu tenho uma produtora, né? E no caminho para visitar a família, ela tinha oito, sete irmãs, irmãs morando na selva, seringueira, humildes, e teve um telefonema do Lula, isso acredito que é mês de agosto ou até antes, mas já havia um clima do que o Lula podia ganhar. Havia uma onda do que o Serra não se elegeria. Aí o Lula convida a Marina e diz: “Olha, se você se eleger, e eu me elegendo também, você vai ser minha Ministra do Meio Ambiente”.

E aí eu conto esse episódio. Isso no Fusquinha dela, a caminho para a casa dela, no meio da selva, onde as irmãs são feirantes, vendem jerimum, melancia na capital, se desloca durante três, quatro horas de caminhão. Isso é único.

Agora, evidentemente, o livro é muito atual na medida que tudo que está dito no livro continua muito vivo.

Ainda falando sobre a Marina, eu li o seu texto na Veja Rio após os ataques que ela sofreu tanto no Congresso quanto no Senado esse ano. E eu queria saber para você que tem uma história com ela, uma relação, como foi a sua impressão sobre esses ataques?

Eu conheço Marina porque fui muito amigo do Chico Mendes. Claro que entrevistei Marina, tive contato, tenho um profundo respeito por ela, mas não tenho nenhuma intimidade com a Marina, exceto uma intimidade profissional.

Agora, esses ataques fazem parte desse momento de polarização, para usar essa palavra que está na moda. E, acima de tudo, as pessoas vão dizer que tem muito ódio. O ódio sempre teve. A disputa política é uma conquista que está a disputa democrática. Democracia é mais no Ocidente. O Oriente não conheceu. A democracia é filha da Grécia, passa por Roma, ela renasce no Renascimento, depois ela emerge com Maquiavel, mas a democracia é uma construção que não está presente no Oriente. A democracia é coisa do acidente. No Brasil, por exemplo, as disputas políticas sempre foram conduzidas com muito ódio, com assassinatos, com atentados.

Não se pensa que, antigamente, você servia café com leite, o chá das cinco para o adversário. Mentira! Ainda mais agora, que o mundo explodiu, pelo menos em termos de população, e a população agrava os confrontos.

Uma coisa é você morar numa casa com três, quatro pessoas, outra coisa é você morar numa casa com vinte pessoas. Então, não tem esse papo de que o Brasil está vivendo… E, se mais não fosse, a Marina é um exemplo muito virtuoso da construção de uma pessoa que até os 14 anos foi analfabeta, seringueira, humilde, filha de uma região onde o extrativismo da borracha reproduzia casa grande e senzala da escravidão dos séculos XIX, antes da República e posterior também. E aí é outro papo, que não veio um caso.

Então, Marina é uma pessoa fantástica, ela se reconstruiu, se tornou uma referência universal. Esses políticos tolos de pequena estatura moral, não é estatura física, de pequena estatura espiritual, cultural. Ficam atacando a Marina, mas a Marina está muito além, inclusive, do Brasil. A Marina transcende esse tipo de intriga. O mundo se orgulha da Marina. Nenhum deles é conhecido. Nem na Argélia, nem no Afeganistão, nem em canto nenhum, nem na Bolívia, nem no Peru, nem no Equador. E a Marina é conhecida.

Você falou agora sobre, fez uma pequena comparação sobre como era antigamente, que também tinha ódio, também tinha polarização, e esse livro especificamente foi lançado durante a ditadura. Então eu queria saber, como é a experiência de lançar um livro durante a ditadura e relançá-lo agora num período democrático?

Eu fui preso pela ditadura. Estive preso logo depois do AI-5. Como é que, em plena ditadura, com tudo censurado, sai um livro com denúncias draconianas, denúncias que envergonham uma nação, que envergonham um povo?

Isso não eram denúncias novas, né? A essência do Brasil é de um país escravagista.

E os primeiros escravos não foram os negros. Os primeiros escravos foram os índios. Quem alavanca o ciclo do pau do Brasil, quem alavanca o ciclo da cana-de-açúcar, quem alavanca o ciclo do gado, são os índios, como escravos. A opção pelo africano, pelo negro procedente da África, capturado a ferro e fogo, já é no final do século XVII, pegando o começo do século XVIII. A mão de obra antes era toda indígena.

Esse livro, eu era repórter itinerante, circulava o Brasil todo. Esse livro foi chamado pelo Pasquim. O Pasquim era o grande jornal. O Pasquim bulava censura que não impedia de serem presos, através da ironia, da reverência, da sacanagem.

Então eles me chamam e propõem que eu publicasse o livro, né? Com a certeza de que o livro seria censurado. Todos estavam sendo censurados. E eu disse que não. Eu disse que o livro não seria censurado, porque o símbolo da ditadura, da instituição que gerenciava a ditadura, era o exército.

O símbolo era o Marechal Rondon, um índio. Um índio Bororo. E quando eu estive preso, me disse lá um alto comando que eu tinha sobrevivido, porque eu tinha, apesar de um idiota, um comuna de verba, tinha me debruçado sobre um dos ícones do exército, que era o Rondon, os índios.

Então, ficava muito difícil para a ditadura censurar um livro onde a voz não é minha, a voz é dos índios. O pulo do gato do Nossos mortos. Quem fala, os protagonistas, são os índios, que mal falavam a língua portuguesa. Às vezes havia que eu precisava de intérprete. Eles não falavam absolutamente nada da língua abrangente, que era nós, eu, apenas um agente, desse chamado processo civilizatório. Então, Nossos Índios, ele talvez ensine, talvez seja a única exceção em toda a história da ditadura, de uma publicação externa que bula as botas, o fuzil, o pau de arara da ditadura.

Pelo talento do autor, coisa nenhuma. Eu era um mera escriba. Por essa sacação acidental, porque denúncias na questão indígena, feitas por antropólogo, etnólogo, estudiosos, jornalista, sertanista, isso não podia ser feito.

Denúncia como sai no livro não podia ser feita. Até porque, até então, a figura do índio era folclorizada. O que era o índio? Tinha cinco mulheres, o José de Alencar, que já idealizava as figuras míticas do índio brasileiro.

O índio casava no Rio de Janeiro, na catedral com o sertanista, a de Acuí, padrinho era o presidente da república. Esse era o índio. Narrar a tragédia que eles viviam, caracterizada pelo extermínio e pela subjulgação. Isso nunca ninguém tinha feito.

Me perdoe a falta de humildade, que eu estou dizendo uma coisa muito cabotina, né? Falando de mim é um negócio cabotino. Mas os Nossos Índios teve expulso do gato, essa rota de fuga.

Nós estamos às vésperas da COP30. Então, o que você, com a sua carreira de mais de 50 anos cobrindo os povos indígenas, cobrindo essas causas, espera desse evento?

Esse evento? Olha, o evento é muito importante. Super importante. Existem as vozes do apocalipse, que Belém não é uma cidade adequada. Existe o oportunismo da burguesia cobrando preços milionários.

Tudo isso faz parte do viver civilizado, né? O processo civilizatório é marcado por uma… Principalmente o capitalista, né? Não o capitalista, a mina é frouxo e cheiro, mas, em suma, mas que vai ser um grande evento.

Pela primeira vez, ele acontece na Amazônia. Amazônia, fundo de oceano, Antártica. São regiões em que o ser humano ainda, que o chamado processo civilizatório não pôs ainda suas garras de forma brutal.

Já entrou. A Amazônia já tem quase 20% de sua mata primária desmatada. Mas ainda, fundo de oceano também. Antártica também. Então, este evento na Amazônia é um feito. Será um grande feito. Muito bem-vindo.

Primeiro que tem os cães da destruição estão mordendo o mocotó do homo sapiens nesse planeta. As mudanças climáticas, as crises, as tragédias climáticas já não batem a porta, já entraram no mundo todo.

Na Europa, na Ásia, no Brasil, as nossas enchentes, os nossos desequilíbrios climáticos, as estiagens.

Esse livro foi o primeiro, foi pioneiro em aproximar a opinião pública da realidade indígena em um período completamente conturbado. E agora, eu quero saber, meio século depois como você vê os avanços que fizemos e como você vê o futuro, principalmente tendo ali uma mudança climática?

Em termos de número, nos anos 70, primeira metade, os índios não somavam 100 mil índios. Hoje somam mais de um milhão. Em termos de inserção, são nichos, mas não deixa de ser inserção.

Você tem um índio na faculdade, na academia, você tem até um ministério para chamar de seu. O índio preside a FUNAI, o índio está na academia, na academia brasileira de letras. Tudo isso são pingos de mel adoçando a boca da onça faminta, porque os índios estão sendo violentados.

Os índios não estão inseridos na sociedade brasileira. O negro já conseguiu isso, avançou muito, sofrido como é, escravizado como continua sendo até hoje, mas os índios não. Os índios estão à margem.

Aí surge um governo com percepção humanista, um governo de esquerda, aí inclui pequenos segmentos. Mas vai no Yanomami, vai na Amazônia, vai em Jacareacanga, vai onde tem populações indígenas.

Então é uma coisa complicada.

Edilson, muito obrigada por compartilhar com a gente a tua experiência e principalmente a tua visão. Eu tenho certeza que o relançamento do Nossos Índios, Nossos Mortos, é mais do que a volta de um livro, é um convite para todos nós refletirmos sobre o passado e também agir no presente e no futuro.

Olha, te deixo tudo de bom para você.

Muito obrigada. Igualmente.

Roteiro e locução: Alice Palmeira
Edição sonora: João Nilo
Montagem de página e acabamento: Alice Palmeira
Revisão: Juliana Carvalho
Identidade visual: Fabricio Vinhas
Direção geral: Marcos Colón

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