“Integrar para não entregar”: A democracia tem a mesma resposta para a Amazônia que a ditadura

Artigo aponta que, quase quatro décadas após o fim do regime militar, a democracia brasileira parece repetir o modelo de ocupação e destruição da Amazônia

Grandes projetos na Amazônia. Fotos: Agência Pará. Arte: Glauce Monteiro
Grandes projetos na Amazônia. Fotos: Agência Pará. Arte: Glauce Monteiro
Grandes projetos na Amazônia. Fotos: Agência Pará. Arte: Glauce Monteiro

Grandes projetos na Amazônia. Fotos: Agência Pará. Arte: Glauce Monteiro

O presidente atual parece não compreender que “integrar” a Amazônia nesse modelo de exploração, como acontece hoje, só gera mais queimadas, mais invasão de terras e maior exploração de minérios.

Desde a redemocratização do Brasil, a política para a Amazônia tem revelado um padrão inquietante: governos, apesar de suas diferenças ideológicas, parecem convergir em uma lógica que remete a práticas herdadas da ditadura militar. A promessa de desenvolvimento e soberania sobre a região muitas vezes oculta o avanço do desmatamento, a exploração desenfreada de recursos e a marginalização dos povos indígenas e ribeirinhos.

Durante a ditadura militar (1964-1985), o governo brasileiro adotou uma estratégia clara para a Amazônia: “integrar para não entregar”. Sob a justificativa de proteger a fronteira da “cobiça internacional”, grandes projetos de infraestrutura, como rodovias e hidrelétricas, foram construídos. A floresta foi aberta para grandes empreendimentos, com incentivos à agropecuária e à mineração, enquanto os povos tradicionais eram deslocados ou ignorados. A ideia era clara: para manter a Amazônia sob controle brasileiro, era preciso ocupá-la com projetos econômicos de grande escala.

Quase quatro décadas após o fim do regime militar, a democracia brasileira parece repetir essa lógica. Embora o discurso tenha mudado — de “integração” para “desenvolvimento sustentável” —, os resultados no terreno são semelhantes. Governos democráticos, de diversas correntes políticas, têm promovido ou permitido o avanço de grandes projetos que impactam negativamente a floresta e as comunidades que ali vivem. A mineração, legal ou ilegal, a expansão do agronegócio e a construção de grandes obras continuam a moldar a política para a Amazônia.

O que se observa é que, tanto na ditadura quanto na democracia, a política para a Amazônia prioriza um modelo de desenvolvimento que privilegia a exploração econômica em detrimento da preservação ambiental e da proteção dos direitos dos povos originários. A justificativa é sempre a mesma: manter o controle brasileiro sobre a Amazônia. Mas, ironicamente, é essa exploração indiscriminada que coloca em risco a soberania do país sobre a região, ao enfraquecer a biodiversidade e as culturas que ali se encontram.

O desmonte das agências de fiscalização ambiental, o aumento de invasões em terras indígenas e a aceleração do desmatamento demonstram que, na prática, a democracia continua a “entregar para não entregar” a Amazônia, repetindo um ciclo que precisa ser rompido para que o futuro da floresta seja verdadeiramente sustentável e soberano.

Voltando um pouco no tempo, especificamente à década de 1940, podemos observar um discurso do presidente Getúlio Vargas sobre a Amazônia, no qual ele chamava explicitamente ao desenvolvimento, que, para acontecer, exigia vencer o “inimigo verde”. “Conquistar a terra, dominar a água, sujeitar a floresta foram nossas tarefas. E, nessa luta, que já se estende por séculos, vamos obtendo vitória sobre vitória.” (Vargas, 1941, p.229).

Essa narrativa, construída há muito tempo, continua a ter consequências profundas para a região até hoje. Havia (e há) a percepção da Amazônia como um vazio demográfico, onde, para integrá-la, seria necessário avançar sobre as matas, explorar o solo, barrar as águas e construir grandes estradas. Não se considerava, nem havia interesse em considerar, que nesse imenso verde vivem povos indígenas, caboclos e quilombolas. Esses povos eram vistos como sinônimos de atraso e, portanto, deveriam ser eliminados para dar lugar ao progresso. 

Nessa perspectiva colonizadora, tudo que remetia à Amazônia era considerado um atraso. O modo de vida onde o rio ditava o tempo e o alimento, e o extrativismo sustentava a subsistência, era tratado como símbolo de atraso cultural. Isso criava o discurso de que era necessário “civilizar” a região. Conforme aponta Becker (2000), essa fase inicial de planejamento regional durante o Estado Novo (1930-1960) foi mais discursiva do que ativa.

Segundo Leandro Tocantins, autor de “O rio comanda a vida” (1952), Getúlio Vargas, ao receber um exemplar de seu livro, teria sugerido um título complementar: “A vida (leia-se o homem) comanda o rio”. Essa proposta revela claramente os ideais que justificaram décadas de exploração violenta na região — que, aliás, seguiram durante a ditadura militar e persistem até os dias atuais. 

Com o golpe empresarial-militar, um novo discurso sobre a Amazônia surgiu, desta vez em torno da “ameaça à soberania”, inserindo a região na doutrina de segurança nacional dos militares. A defesa da soberania, na prática, foi uma armadilha que impediu uma verdadeira política de desenvolvimento regional. O objetivo dos militares era mostrar ao capital nacional e estrangeiro que a Amazônia era um local seguro para investir. Mais uma vez, o discurso do “vazio demográfico” foi usado para justificar os ataques do capital à região, com graves consequências.

Os militares também foram responsáveis pela chacina da Guerrilha do Araguaia (1967-1974), fortalecendo o populismo militar. Populações indígenas e camponesas foram coagidas a apoiar os militares, sob a promessa de receber terras após a expulsão dos guerrilheiros. Isso consolidou a confiança do capital internacional e da burguesia local, que viam na Amazônia uma nova fronteira de expansão econômica.

A Operação Amazônia, lançada em 1966, foi um marco no processo de exploração da região. Ela foi acompanhada por uma série de estratégias que forneceram suporte ao projeto de ocupação acelerada da região. Além disso, o Banco da Amazônia (BASA) e a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) foram criados para impulsionar esses esforços, permanecendo até hoje como instrumentos de política regional.

O ditador Castelo Branco, ao lançar a Operação Amazônia, usou expressões como “mudar a fisionomia da Amazônia” e “redenção da Amazônia”, reforçando a visão da região como um território a ser explorado e devastado, sem consideração pelos seus habitantes. A exploração da Amazônia sempre esteve ligada ao interesse capitalista, visando o lucro extraordinário com a exploração de minérios, madeiras e recursos hídricos. Empresários entenderam o recado e, em uma entrevista à *Folha de São Paulo* em 1967, o deputado Sérgio Cardoso de Almeida disse: “Ao empresário interessa saber onde pode aplicar o seu dinheiro para ganhar mais dinheiro, pois essa é a maneira de entender a patriótica convocação de ocupação brasileira na Amazônia”.

A burguesia regional, por sua vez, aderiu à “Operação Amazônia” na esperança de lucrar com os incentivos fiscais para a agropecuária e a extração de madeira, mas foi subjugada pela aliança entre o capital internacional e o governo ditatorial, que monopolizou os benefícios.

Essa coordenação de esforços e discursos teve consequências profundas para a região, moldando os planos econômicos, culturais e a percepção de desenvolvimento na Amazônia. Durante anos, o discurso de que a Amazônia era um “vazio demográfico” a ser humanizado foi utilizado para justificar sua exploração contínua. A região tornou-se uma “fronteira de recursos”, destinada a fornecer matéria-prima para o mercado internacional, sem qualquer processamento local.

Esses processos ainda estão ligados a uma política nacional de desenvolvimento e ocupação territorial que desumaniza a região, removendo seus povos e devastando seu meio ambiente em nome de um projeto neoliberal de morte.

Para romper com esse ciclo de exploração, é fundamental que a política para a Amazônia seja repensada. A continuidade de um modelo que prioriza o lucro em detrimento da sustentabilidade não apenas ameaça a biodiversidade da região, mas também coloca em risco a soberania nacional. O Brasil precisa adotar uma nova perspectiva, que valorize a preservação ambiental e os direitos dos povos da floresta, rompendo com as práticas exploratórias que têm guiado a política amazônica desde a ditadura militar.

A Amazônia não pode continuar sendo “integrada” apenas para ser explorada. O futuro da região depende de políticas que respeitem a diversidade cultural e natural que ali existe, garantindo que a floresta seja protegida e suas populações tenham seus direitos assegurados.

Walisson Rodrigues é graduado em Ciências Sociais e tem pós-graduado em Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo pela UFRJ, presta consultoria nas áreas de planejamento político estratégico, educação e mobilização popular. Tem formação técnica em Desenvolvimento Cultural pelo Instituto de Educação Josué de Castro e atua com foco em organizações e movimentos sociais há 16 anos, como Movimento dos atingidos por Barragens -MAB e o Movimento Camponês Popular. Possui experiência na realização e sistematização de processos formativos e de mobilização social, comunicação popular e na criação de metodologias de educação popular.

Edição e revisão: Glauce Monteiro
Arte: Glauce Monteiro
Montagem de Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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