In Amazonia: A Natural History

Inspirado por antigos exploradores, Raffles percorre a região amazônica para compreender a complexidade sociocultural e ambiental da maior floresta tropical do planeta

Foto: Divulgação.

De autoria de Hugh Raffles e publicado pela Princeton University Press em 2014, a ideia central do livro é relatar a história natural da Amazônia, realizando um percurso que vai da extensa revisão bibliográfica ao descrever a percepção da Europa Ocidental ao encontrar esse novo mundo e as descobertas de pesquisadores acerca dessa rica sociobiodiversidade, bem como estudo etnográfico realizados nas viagens a campo, percorrendo o Amapá e o Sul do Pará, para entender as transformações físicas, políticas e os conflitos a partir das percepções daqueles que vivem a região. Nessa obra a Amazônia é apresentada não apenas como biodiversa, mas, sobretudo, como fruto de processos sociais dinâmicos. Dessa forma, o autor propicia uma viagem a Amazônia por meio de seus 7 capítulos com as contribuições de diferentes autores e atores da região.

O livro começa a desvelar a ótica da sensibilidade da observação a partir de diferentes ângulos, o que permite entendimentos distintos permeados pela sensibilidade e subjetividade de quem observa. O autor desvela suas percepções e sentimentos ao observar o lócus central desse estudo: Igarapé Guariba (Amapá, Brasil), localidade que confere ao livro uma representação icônica da Amazônia.

Os relatos dos primeiros viajantes europeus relatam que a vida na Amazônia foi ritmada pelo seu ambiente. Nesse sentido, alguns autores chegam a relatar que esse ambiente impõe um determinismo biológico aos moradores da região levando a mesma ao atraso, contrariando várias pesquisas que já entendem que os problemas socioambientais da Amazônia estão relacionados à ausência de políticas e descaso com a região. A obra traz uma importante contribuição à definição de natureza ao apreciá-la em sua complexidade dual: ora é intocada, avassaladora, violada e em perigo; ora é dinâmica e heterogênea.

O livro apresenta aspectos viscerais, onde autor relata, humildemente, que sua interpretação das realidades descritas possa estar embebida de acontecimentos ocorridos na sua vida pessoal, implicando diretamente em sua sensibilidade como interlocutor dos fatos. A preocupação do autor é legitimada pelas próprias indagações dos sujeitos da pesquisa ao relatarem que algumas vezes as pesquisas na região não refletem a realidade.

As transformações no ambiente natural ficam perceptíveis na construção textual do autor, marcada pela extração predatória de madeira que possuiu como consequência a mudança dos cursos dos rios. Igarapé Guariba é fruto do processo de abertura de canais antropogênicos na Amazônia que tiveram o incentivo empresarial e do próprio Estado. O aumento da largura de igarapés na região para passagem de barcos comerciais e balsas que pudessem levar toras de madeira, máscara um processo de exploração do trabalho humano para a abertura desses canais que causou a morte de 18 pessoas escravizadas. A abertura dos canais marca um momento da vida econômica da história da Amazônia, mas a natureza propicia a continuidade desse processo ao estender o processo erosivo ao longo do tempo.

Os lugares, como espaços sociais, são apresentados como seres humanos – estão sempre em processo de mudança e movimento. A eles também são conferidas descrições a partir da subjetividade dos atores sociais que os compõem, sendo descrita, desta forma, a experiência de vida como determinante epistêmica.

A figura do patrão é uma figura importante dentro da contextualização dessa obra, pois exerce uma relação de ambiguidade dentro do contexto de Igarapé Guariba. Raimundo Viega, proprietário da terra, trocava produção agrícola por moradia e condicionava as pessoas nesse sistema por meio do endividamento ao ser o comprador e vendedor de insumos essenciais para trabalhadores/fregueses na região. Viega construiu uma escola e um posto de saúde dentro de Igarapé Guariba, o que lhe conferia atributos solidários e altruístas, mas também era considerado violento ao submeter os posseiros de sua propriedade à dívidas impagáveis para sua realidade, bem como a cobrança e exclusividade de venda de suas produções.

Com passar do tempo, as pessoas foram tomando consciência da exploração ao qual eram submetidas ao conhecer as comunidades de base da Igreja Católica, o que deu início a um processo de enfrentamento a Viega e ao que ele representava. A família Macedo liderou esse processo por meio da Associação de Moradores e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, que resultou na posse das terras para os moradores de Igarapé Guariba.

Ao retornar para sua coleta de campo, o autor visita o Sul do Pará, região marcada pelo intenso processo extrativista e conflitos, marcados pela morte de integrantes do Movimento Sem Terra em Carajás. Segundo Raffles, Paul, pesquisador do Imazon sobre as características silviculturais do mogno, é o principal ator que contribui para o entendimento da realidade local. Os estudos de Paul ocorrem em um Plano de Manejo Florestal e consiste no monitoramento contínuo de espécimes de mogno, que se encontram ameaçadas de extinção. A tentativa de Paul é apresentar alternativas para o manejo dessa espécie às empresas madeireiras da região. O mogno possui alto valor comercial e é usado na produção de móveis sofisticados. Entretanto, a forma que é explorado é quase tão primitiva quanto na época de exploradores como Walter Raleigh. Além de seu alto valor comercial, o mogno tem um papel importante na mobilização ambiental para a proteção da floresta.

As pesquisas de Paul possuem métodos rigorosos em sua produção de dados científicos. Entretanto, nas ciências da natureza (ecologia) é percebido um desprezo pelas ciências humanas, o que resulta em uma insuficiência das informações apresentadas, pois somente os dados dendrométricos não podem dar soluções a uma Amazônia social, cultural e política. Ao conversar com Sr. Moacyr, auxiliar de campo e um dos precursores em estudos sobre a ecologia florestal da região, o autor revela o despreparo técnico e descompromisso humano dos pesquisadores que vêm para a região, bem como a invisibilização de atores locais que contribuem para os avanços científicos.

No último capítulo o autor permeia pela poética do lugar. Ao considerá-lo como ponto de encontro das relações sociais, o autor descreve as significações que Igarapé Guariba tem na vida das pessoas que ali habitam. A casa de Viega, último remanescente de sua epifania, marca a história do lugar e remeter ao passado feudal desse lugar, deixando as narrativas ali amarradas e desamarradas.

Após a saída e morte de Raimundo Viega, muita coisa mudou. A extração madeireira deu lugar à produção de açaí, que constitui um importante marcador social na Amazônia, onde se perfazem dois tipos de produção – a primeira, convencional para a confecção do vinho de açaí consumido pelos caboclos, e a outra de plantios de açaizeiro para a colheita do palmito para exportação, ou seja, produção de grileiros ricos.

A produção de açaí acabou por se tornar a dinamizadora dos rios, da política de espaço e das intimidades históricas em Igarapé Guariba. A família Viega ainda se faz presente na comunidade por meio do neto de Raimundo Viega, Miguel, e sua esposa. Eles disputam o comércio de açaí, mesmo que de forma tímida, com a família Macedo, precursores da mobilização que resultou na queda dos Viegas. Com todas as mudanças ocorridas nesse lugar o sistema de endividamento, ou aviamento, se perpetua como principal forma de controle social. Antes eram os Viegas, agora os Macedos representam os principais nós nas redes sociais e culturais do comércio na região. Entretanto, há de se reconhecer que a relação de poder é diferente, pois é marcada pela organização social, pela real cooperação e solidariedade entre os atores envolvidos.

Dessa forma, assim como Igarapé Guariba, a Amazônia é marcada pelas transformações causadas pela natureza, assim como as sofridas por ela, mas, sobretudo, é fruto de dinâmicas sociais que transformam essa região um ambiente diverso, sistêmico, misterioso e complexo. Por isso, o autor faz um apelo para que as pesquisas na região possam se aproximar mais da realidade de sua população, colocando essas pesquisas como instrumento de visibilidade e voz dos agentes humanos e não-humanos que constituem a Amazônia.  

O livro está disponível na Amazon e no site da Princeton University Press.

 

David Franklin da Silva Guimarães é Doutorando do Programa e Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Brasil. Contato: [email protected]
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