Cobra Norato: a educação do herói pelo rio

A Amazônia tem em sua espiritualidade algo necessário ao homem contemporâneo: o lado medicinal de sua pajelança pode salvar um mundo doentio e ganancioso, no que tange não apenas à exploração desenfreada de seus recursos naturais, mas ao próprio sentido da cultura ocidental do ser humano obcecado pela riqueza sob a proteção das armas e dos investimentos bilionários na região. Existe uma Amazônia que cura e educa, e ela é tão rica quanto invisível.

Essa riqueza começa com seus mitos, os longos discursos que modelam cultura, povo, geografia e identidades, como se verá a seguir na história de Cobra Norato, que se tornou um mito de uma educação para o casamento. Este ensaio indica que a presença dos mitos amazônicos no Modernismo brasileiro se deu por conta de um sentimento de ampliação do pensamento estético consolidador de brasilidade, que refletia regiões mais intocáveis, como é o caso da emblemática Amazônia.

Todo o trajeto do protagonista está em torno de buscar uma nova vida. Na lenda, dá-se a busca do casamento do herói, não como ato propriamente social, no que tange ao casamento como acontecimento, como diz Gennep (2001), mas como ato espiritual.

A história se refere à união com outras realidades e não apenas a um casamento. Retrata a harmonia entre o ser e a natureza de forma conjugada, o que alimenta uma interação e complementaridade essenciais, experiência que define Cobra Norato um poema de iniciação. É o protagonista sob a provação do caminho que levará ao seu crescimento e maturação em uma nova fase de vida.

O mito narra a viagem do herói pela Floresta do Sem-Fim, percurso inserido em uma Geografia cultural peculiar “geografia em construção”, diz Bopp, ou melhor, a Amazônia como lugar de construção permanente. Algo que conjuga com a noção de Modernismo entendida por Mário de Andrade, ou seja, nada acabado e sempre alterável. É modificada pela elasticidade do discurso no recinto sólido da grafia, como pregava o escritor paulistano diante da luta insana entre fala e escrita.

A mobilidade do Modernismo se consolida na ação do herói. Valemo-nos da errância dos seus protagonistas. Nas obras modernas, os personagens se deslocam por espaços geográficos, extraindo sempre a riqueza cultural de cada ambiente percorrido sem deixar de acrescentar elementos culturais ou linguísticos de outras regiões do Brasil, ou seja, obra em ação, construção de um propósito de integração.

O Modernismo brasileiro abarcou essa consciência de integração – expansão – absorção.  Três palavras importantes no contexto histórico que enfatizavam um centenário de independência política em torno dos debates advindos da Semana de 22 e seus desdobramentos, que nunca deixaram o foco no construto nacional de cultura. Tal comportamento expansivo alimentou uma imagem de agigantamento de um Brasil novamente sustentado pela necessidade de ser redescoberto pelos próprios brasileiros. Este comportamento é relevante na medida em que se faz presente tanto na esfera da ciência e da literatura quanto no âmbito popular, quando, por exemplo, um adágio comum no Norte do Brasil diz: “Deus é grande, mas o mato é maior”.

Ilustração: Willian Frésia.

Há, no fundo, um Cobra Norato como herói em formação, aquele que aprende um caminho adverso e dilatado na sua jornada  um similar espaço de vastidão territorial e do ensinamento que advém de um tamanho peculiar da região –a Amazônia e suas multiformes expressões religiosas e culturais.

Narrativa e território se imbricam e pertencem ao conjunto comum de espaço, geografia e linguagem. Isso seduz a literatura, a arte e a ambientação do moderno, remontando aos navegadores lusitanos da Índia passada aporta no espírito modernista eabrindo espaço para o encontro dessas esferas na construção do poema. Desta união, os mitos também constituem narrativas elásticas que servem ao gênero épico ou ao romanesco e que envolvem o verdadeiro tempo e espaço do abrangente mundo moderno.

Nesse contexto, a iniciação do herói obedece, em Cobra Norato, ao ordenamento dos  seres da mata, em total harmonia com a cosmologia local, o que confirma que a Amazônia é, no fundo, ambiente sagrado.  A floresta é fundamental espaço para a educação do protagonista, principalmente quando ela se apresenta como indicadora desse ritual de passagem. Isso fica evidente no propósito de se casar com a filha da rainha Luzia, a princesa que tem configuração de uma serpente, pois tem os olhos verdes e deixa rastos na areia, tarefa que se concretiza por via de símbolos essenciais e provas de superação.

A lenda de Cobra Norato é uma das mais paraenses do espólio amazônico. Esse relato oral transita em especial pelas cidades de Cametá, Abaetetuba, Barcarena e Belém, em especial quase todo o percurso final do rio Tocantins. É a cobra que vira gente, segundo Bezerra (1985), em similar condição à lenda do Boto – transforma-se em um rapaz encantado, frequenta as festas à beira do rio, galanteia as ribeirinhas e, antes do amanhecer, retorna para o fundo do rio. A gênese de Norato está na polaridade de bem e do mal, já que a sua mãe, uma cabocla chamada Zelina, teria dado à luz a um casal de gêmeos, Maria Caninana e Honorato, duas serpentes que foram atiradas ao rio, onde acabaram por se adaptar.

Maria Caninana vivia a fazer maldades, apaziguadas pela ação do irmão de bom coração. Honorato, ou Norato, em muitas versões da lenda, retornava à mãe sempre que podia e lhe implorava que fosse desencantado a partir de uma sequência de provas. Entre elas, a famosa façanha de se aproximar da serpente em repouso e colocar em sua boca leite de peito de mulher parida e lhe ferir a cabeça. Mas o feito épico fora realizado apenas por um soldado da guarnição da cidade paraense de Cametá, no Baixo Tocantins.

No poema de Bopp, a metamorfose se dá de forma inversa. É o protagonista que vira Cobra Norato e inicia sua jornada rumo o casamento com a filha da rainha Luzia. Norato não nasce cobra, toma emprestada a pele do mítico animal. É assim que vamos aproveitar o mito, como um recurso didático, um suporte imprescindível a promover a integração, uma característica da própria noção utilizada pelos escritores modernistas tocados pela ideologia de abarcar um Brasil em suas obras. Afinal, “Cada um se pinta com as cores dos outros” (Ribeiro, 1995, p. 167), principalmente quando a fala é convidada a moldar discursos e textos literários com o diferente e com o remoto.

Espírito da mãe Terra

Capa do livro Cobra Norato, de Raul Bopp, publicado pela Editora José Olympio (2016). Foto: Divulgação.

A serpente primordial lembra da imagem alegórica, a união de opostos àqueles que viram nesse réptil o símbolo do mal a ser controlado, nos significados associados ao rio, ao feminino e, ao mesmo tempo, ao fálico. Também aos conceitos ligados à astúcia, ao saber, ao veneno, à cura, ao perigo e, principalmente, à coluna que sustenta mundo, vida e estrutura vertebral.  E se o mito conta uma existência, ele evoca o princípio para justificar um futuro, portanto, ele é em si uma “coluna narrativa” delineada de temporalidade essencial, como a própria serpente que sustenta também um ensinamento a ser transmitido pela oralidade, desempenho do sujeito narrador e do contexto cultural.

O livro Cobra Norato, então, continua a saga amazônica no Modernismo brasileiro. A obra é um conjunto de 31 poemas que narra a história de alguém que quer morar nas terras do sem-fim e quer trilhar o percurso de um herói peculiar, personagem de um mito amazônico, muito contado entre os ribeirinhos, como lembra a narrativa de criação dos Guaranis, na qual há uma clara relação entre três coisas: a serpente, o eixo da vida e a coluna vertebral, algo que de certa forma lembra a kundalini dos hindus. Haverá serpentes nos mitos porque elas estão no início do mundo, a vida em si e a estrutura corporal que regula o ser humano diante de tudo.

As cobras estão na mitologia como guardiãs da palavra no que tange à ordem da anunciação pelo verbo ordenador, da iniciação no plano terreno, como exemplo na tradição oral Guarani (Jecupé, 2001, p. 64) “ […] o primeiro ser que se anunciou na morada terrena/ foi a serpente ancestral, o espírito da mãe terra”. Por essa perspectiva, a de se “anunciar”, fica evidente a apresentação por via verbal, surgimento pela palavra, de um ser inteligente, audaz, perspicaz e falante que se fez e nos apresentou o mundo: a serpente é tradicionalmente um símbolo do feminino de cura, e no entendimento do próprio Bopp, foi a Cobra Grande que “amassou a terra elástica” , ou seja, deu-lhe forma, e para Norato, torna-se crucial conhecer o feminino, uma vez que o herói quer se casar.

Concluindo: é a voz o ser mais real do repertório oral por justamente conceber-se como uma poética, alguém que ouve tão importante diante de alguém que fala. É a voz do outro, e, nesse caso, sempre haverá um ouvido, no percurso de um espaço simbólico, entremeado do que há de mais humano ao herói: sua errância sob a performance do contador (ou contadora) de histórias, categorias que não serão discutidas aqui neste artigo.

Destarte, dizemos que o poema boppiano é uma cosmogênese a partir do rio, uma potamo-cosmogonia, palavra expondo a leitura de formação de mundo pelo olhar caboclo a partir do rio, elemento que não pode faltar na geografia e na fala amazônica. É a educação do herói que se veste da pele de uma Cobra Grande. No caso, Norato, este que tem em sua identidade uma missão – revelar uma das formas do sagrado: o percorrer mundo, externo e interno, e concretizar uma busca como prova de superação.

 

Atualmente, Benilton Cruz é professor da Universidade Federal do Pará, Campus de Abaetetuba (Campus do Baixo Tocantins). Tem experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura Brasileira Moderna, Literatura Portuguesa, Mário de Andrade, Teoria Literária e Alemão como Língua Estrangeira, Poesia e Poética.
A pintura em destaque é um trabalho feito em guache por Edson Germinio – poeta, escritor, pintor, ilustrador, folclorista e desenhista pernambucano.
Print Friendly, PDF & Email

Você pode gostar...

Assine e mantenha-se atualizado!

Não perca nossas histórias.


Translate »