Jeff dentro de casa
Me chamo Jeff. Sou um humano e um antropólogo.
Algumas das informações a seguir podem parecer extensivas, mas cada uma desempenha um importante papel no desnorteante episódio que aqui relato.
Meu objeto de pesquisa, enquanto antropólogo, são as relações entre o ser humano e o meio ambiente no contexto da Amazônia brasileira. A região é bem conhecida por pesquisas que abordam o vínculo dos humanos e as formas e espíritos animais, mas recentemente eu tenho estudado os limites das fronteiras, relativamente fixas, entre humanos e não humanos. Nos últimos anos, cheguei a uma ampla percepção sobre como a população rural não indígena da Amazônia se distingue, física e conceitualmente, dos animais; no entanto, no decorrer de apenas alguns dias de agosto de 2016, um cachorro perturbou meu consenso.
Cheguei ao Seringal São João ansioso de encontrar os seringueiros com quem eu trabalhei entre 2007 e 2010. Logo constatei que a família que então me recebeu não mais morava ali. As outras famílias que eu conhecia residiam espalhadas pela floresta, de modo que seria muito difícil encontrá-las antes do anoitecer. Por sorte, havia uma morada no centro cujos proprietários, dona Maria e seu Rocha, convidaram-me a ficar com eles. Da última vez em que visitei a comunidade, dona Maria morava na cidade, mas ela ouviu falar de mim pelos seus irmãos, cujos quais acompanhei em viagens para extrair borracha das seringueiras e lavrar seus terrenos. Dona Maria e seu Rocha se mudaram para cá alguns anos atrás e construíram essa casa.
Quando eu entrei na casa, deparei-me com algo que eu nunca havia visto nas áreas rurais da Amazônia. Um cachorro. Não me entenda mal – há muitos cachorros por aqui, mas estes sempre ficavam fora das casas.
Contemplei o animal doméstico enquanto sentávamos na varanda e bebíamos um café melado, ficando a par dos últimos avanços em São João. À medida em que conversávamos, eu examinava o quintal de chão batido com porções de grama em volta da casa. Patos e galinhas circulavam entre árvores frutíferas e plantas esparsas. Esse descampado, rodeado de floresta e protegido por pastagens, era o espaço destinado a plantas cultivadas e animais domésticos. O asseio regular garantia que cobras peçonhentas e outros animais indesejáveis não tivessem lugar para se esconder e propagar, além do quintal ainda prover uma boa visão de quem estivesse se aproximando.
Outro cachorro estava deitado enrolado em frente aos degraus da entrada da casa. Tais cachorros de fora alertam os moradores sobre quaisquer intrusos, animais selvagens ou mesmo domesticados, bem como servir para que visitantes, à distância, anunciem sua presença. Se um visitante ou estranho fosse considerado bem-vindo pelos moradores, eles acalmam os cachorros e convidam a pessoa a subir para a casa. O visitante, então, deixa seu calçado nos degraus, próximo ao cachorro e às galinhas a ciscar, antes de prosseguir para a varanda passando por um pequeno portão através de um muro de sarrafos de pouco mais de meio metro de altura. O âmbito estritamente humano no outro lado do muro era subdividido de acordo com quem poderia entrar, desde a varanda aberta e quase pública, passando pelas habituais sala de estar e cozinha, até o quarto privado.
Apesar das breves invasões de galinhas e de ocasionais araras ou gatos de estimação, a separação entre humanos e animais era mantida em quase todas as casas que eu já visitei na Amazônia rural. Mas eis que havia um cachorro dentro dessa casa. Este, no entanto, era diferente. Era um poodle de raça pura, como me contaram. Possuía mechas elegantes e felpudas e um focinho preto e úmido. É algo raro que cães fossem banhados com xampu perfumado ou mesmo afeto, mas nesse caso tais comportamentos são apropriados, pois esse não era apenas um cachorro. O poodle pertencia a uma nova categoria: o “animal de estimação”. Dona Maria ganhou o poodle quando morava na cidade e ao se mudarem, ela e seu Rocha trouxeram consigo uma nova forma de se relacionar com os animais. Gradualmente, fui entendendo como aquilo fazia sentido – uma transferência de categorias e relações apreendidas na cidade.
Então, dona Maria me disse o nome do cachorro: “Jeff”.
Jeff humano: “Sério? Esse é o meu nome”.
Dona Maria me assegurou que isso foi uma coincidência. Para reforçar e acalmar minha apreensão, ela acrescentou: “eu nem sabia que esse nome é de gente”. Quando mais tarde eu relatei essa “coincidência ” para outras pessoas no Brasil, eles se perguntaram o que eu poderia ter feito para ofender dona Maria. Contudo, como disse antes, nós não nos conhecíamos e fiquei imaginando se alguém em São João poderia conhecer o meu nome o suficiente para reproduzi-lo. Normalmente, eu era chamado por palavras iniciadas com o “J” que era familiar ou suscetível à pronúncia do português brasileiro: “Jersi”, “Jerson”, “Jeferson”, ou “Jerski”. Ao se referirem a mim, as pessoas poderiam dizer “o americano” e isso bastava na maioria das vezes, mas reconhecimento efetivo era alcançado quando características eram dadas: “careca”, “gordo” ou “grande”.
Eles me avisaram, no primeiro dia, que Jeff era “bravo” e eu não deveria tentar tocá-lo. No segundo dia, me esqueci disso. Eu estava sentado em um banco na varanda, conversando com seu Rocha, quando Jeff veio da sala de estar. Eu não pensei ou sequer olhei em sua direção quando alcancei a sua cabeça fazendo carinho. A expectativa dos seus cachinhos em formato de nuvem encostando nos meus dedos foi substituída pelos dentes pontiagudos da boca de Jeff.
Nos dias chuvosos que se seguiram ficamos confinados na casa por horas a fio. Eu mantive uma distância segura de Jeff. Em uma cinzenta e úmida tarde, estava em minha rede na varanda escrevendo algumas observações e lentamente pegando no sono. A palavra “Jeff” gentilmente flutuou de dentro da casa em minha direção. Dona Maria continuou com voz de mel e um tom carinhoso “venha deitar no quarto”. Após um momento petrificado, fiquei aliviado ao ouvir o bater das garras bem cuidadas de Jeff no chão em direção ao quarto de dona Maria.
Em outra ocasião, Jeff extrapolou (acho que ele roubou alguma comida dos donos). Dona Maria se lançou contra ele como faria com um cachorro qualquer ou uma das galinhas: “Jeff, sai daqui seu filho da mãe!” Eu sabia que essas palavras inflamadas não eram direcionadas a mim, mas não pude evitar sentir que deveria sair também. Tais palavras são assustadoras de se ouvir se dirigidas a você, mas é o tom de voz de acuar animais que desencadeia uma reação visceral. A voz soa como as palavras de exorcizar demônios nos filmes, só que com o demônio pronunciando-as. Palavras lançadas em um murmúrio-chiado que demanda ação imediata. A voz não é acostumada com humanos ou os animais selvagens, mas apenas com os domesticados, animais versados em entender o tom e o seu significado, assim como também entendem o gesto quando o dono finge pegar e jogar pedras neles. Esse conjunto de voz que acua e teatro com pedras despacha os cachorros a correr desenfreados e como que em cima de chão de gelo. Frequentemente, após chegar a uma distância segura, eles olham para trás com a cabeça baixa e olhos franzidos, em algum momento desacelerando para um trotar mais natural e calmo que, honestamente, parece forçado.
No dia em que fui embora, dona Maria e seu Rocha me acompanharam até o quintal para se despedirem. Dona Maria pegou o Jeff em seus braços (ela e especialmente seu Rocha inclusive se dirigiam ao Jeff usando uma voz de bebê que eu também nunca havia visto ser usada com animais, ou bebês mesmo, em comunidades rurais). Ao tentar um último abraço de adeus, Jeff investiu contra mim mais uma vez e eu recolhi os meus dedos enfaixados, bem como o meu corpo todo, a uma distância que permitisse o cachorro parar de rosnar e voltar a um estado mais calmo. Acenei, então, um adeus para dona Maria, seu Rocha e Jeff.
Post Scriptum
Do Acre, cheguei a Belém, onde daria um discurso na universidade. Do outro lado da bacia amazônica, ainda penso em Jeff, meu xará. Fico imaginando o que ele poderia significar para a minha pesquisa sobre categorias e espaços, mas também em termos de quem eu sou enquanto indivíduo. Pergunto-me se nossos destinos estavam de alguma forma interligados e se uma parte de mim – além do pedaço de pele que ele arrancou do meu dedo – também ficou com ele. De forma mesquinha, desejei a ele longevidade e conforto ininterrupto; embora também tenha imaginado um dia em que Jeff, imprudentemente, pudesse se desgarrar de seu espaço seguro e dos seus protetores e se ver rodeado por um grupo de cachorros de porta afora ou animais selvagens.
Ponderei sobre essas coisas agora que estava sozinho, no meu próprio espaço – o único Jeff dentro de casa. Na verdade, eu estava em um hotel e, uma tarde, desci as escadas do décimo segundo andar: 15 degraus abaixo, virava 180 graus, 15 degraus abaixo e assim sucessivamente. A cada andar, havia um reparo feito e coberto com tinta branca, realçando o contorno de múltiplas manchas aleatórias de tinta. Jeff? Estaria ele dançando sem entusiasmo ou performando por um mimo? Alternando para a forma bípede? Ainda hoje eu me deparo com os traços do poodle doméstico da Amazônia e toda vez me pergunto: quem ou o quê exatamente é o Jeff?
Este artigo, traduzido por Rafael Andrade, foi originalmente publicado em inglês para a Agricultural Co-Involution Web Series (Web Série Co-Involução Agrícola, em uma tradução livre), para a Seção de Cultura e Agricultura da Associação Americana de Antropologia.