Mulheres, a Amazônia e o bem viver

A convivência saudável do gênero feminino com a Casa-Mundo

As práticas sociais das mulheres da floresta se revestem de uma mística entrelaçada à natureza, que dá significado simbólico e de gênero ao trabalho por elas realizado no âmbito da agricultura familiar. Trata-se de uma relação de reciprocidade, afetividade e respeito para com a natureza que é a teia da vida, como observa Fritjof em A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos (2004), e tece a sociabilidade na Amazônia do ponto de vista material e imaterial, numa transcendentalidade mítica dos povos da floresta.

As relações das mulheres com a natureza, especialmente com a Terra, possuem substrato simbólico vital de fecundidade e natalidade. Pachamama equivale à mãe- terra. É um conceito inspirado nas culturas andinas dos povos ameríndios, sobretudo dos indígenas bolivianos e peruanos situados no noroeste argentino, incluindo também indígenas do extremo norte do Chile. É uma herança e um legado dos Incas que sopra espiritualidade para outros países da América do Sul, chegando até às fronteiras amazônicas Brasil/Peru/Colômbia e Brasil/Venezuela.

De acordo com Boff, “só essa ética do cuidado essencial poderá salvar-nos do pior. Só ela nos rasgará um horizonte de futuro e de esperança”. Longe de qualquer perspectiva essencialista e romântica associada ao aspecto da feminilidade, a ética do cuidado e do bem viver associada ao sopro da Pachamama é arraigada às práticas sociais das mulheres da floresta e das águas, ao seu cotidiano de trabalho na agricultura familiar, ao trato com os animais domésticos, com a água, com os resíduos sólidos produzidos na comunidade, ao trato que elas têm para com as crianças e seu mundo educativo das brincadeiras com os elementos da natureza. Para Marilyn Strathern “as dádivas são vistas como uma forma de sociabilidade e um modo de integração societária”.

As atividades sociais das mulheres tecidas com o sopro inspirador da Pachamama tem um caráter social de largo alcance conservacionista, na medida em que o trato que elas têm com a água nos serviços da casa, com os animais domésticos, com a horta caseira, com os resíduos sólidos e o lixo produzido na casa e na comunidade, evoca uma ética do cuidado e do bem viver. As mulheres falam ao mundo, comunicam suas existências por meio de suas práticas. Estabelecem uma convivência saudável e solidária na Casa-Mundo que é comunitária.

A ecosofia, como sugere Félix Guattari em As três ecologias (1993), é um estudo que envolve o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana.  O mundo ou o planeta pode ser visto pelas relações de gênero. Tudo gira em torno das reflexões sociais que, em última análise, supõem relações entre mulheres e homens e destes com a comunidade, a sociedade, o mundo e a natureza.

Não é demasiado afirmar que o gênero feminino tem uma relação menos destrutiva com o meio ambiente do que os homens. Edgar Morin lembra que os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente.

A forma pela qual as mulheres se relacionam com o ambiente natural mostra que elas próprias têm como ponto de referência as suas próprias vidas. Ou seja, os papéis que elas desempenham na reprodução social, cultural e biológica tem implicações na questão ecológica, na medida em que as suas interrelações sociais articulam e engendram práticas políticas de sustentabilidade ambiental, por assim dizer. 

Elas não são guardiãs da floresta e nem jardineiras do mundo, rechaçando aqui qualquer essencialismo patriarcalista. Mas, o papel delas tem estreita conexão com o conceito de equilíbrio que envolve a relação mulher-terra, terra-vida, homem-mulher e homem-natureza.

As relações de gênero, enquanto episteme explicativa das ações humanas pode contribuir para com a perspectiva de sustentabilidade da Amazônia. É preciso compreendermos a Amazônia para além do proselitismo verde que marcou a política ambientalista dos anos 1980/1990. Torna-se urgente pôr em curso a ideia-força do desenvolvimento sustentável, fazendo sair este conceito do âmbito das boas intenções protocolares, transformando-o em ações de políticas públicas e em conduta ética de cuidado para com a vida em todos os sentidos neste bioma.

Se as ciências derem a devida visibilidade às maneiras pelas quais as mulheres cuidam da terra, como algo que lhes é próprio, forjando condições necessárias para que os sistemas vivos se perpetuem na natureza, será possível encontrar uma base significativa para que seja adotada a sustentabilidade nas relações com o meio ambiente. Os veículos midiáticos, especialmente a grande mídia televisiva, os jornais, portais e a sociedade civil, devem engajar-se também nesse empreendimento. Os movimentos feministas têm dado a sua contribuição tanto no que diz respeito à visibilidade da história das mulheres, quanto no âmbito do “almejado desenvolvimento sustentável”.

Nessa lógica de controle e dominação não só as mulheres, como também a própria natureza, têm sido atingidas, agredidas pelo homem que, legatário de uma superioridade natural, “tem aval da ordem divina” para dominar tudo e todos de forma absoluta. O gênero é, neste sentido, o conceito que ilumina as práticas sociais dos vários feminismos, em sua perspectiva de afirmação da cidadania das mulheres e luta pela igualdade dos direitos entre mulheres e homens. > link para o texto opinativo da Inara.

O feminismo comporta princípios de liberdade, alteridade e aspectos de subjetividade e transcendentalidade bem fortes. O Movimento é uma atitude firme de subjetividade da consciência, é uma forma de exteriorização e expressão do ser social no curso de sua existência e da história. Por fim, deve-se reconhecer que a perspectiva relacional do gênero, enquanto heurística elucidativa da emancipação de opressões, tanto de mulheres quanto da natureza, poderá contribuir para uma Amazônia sustentável, ou seja, que retira do bioma só aquilo que se pode repor, num ato de solidariedade e afetividade.

 

Iraildes Caldas é Doutora em Antropologia pela PUC-São Paulo e Professora da Universidade Federal do Amazonas. Possui experiência nas áreas de Sociologia, Antropologia, Etnologia Indígena e Serviço Social atuando principalmente nos temas de gênero e manifestações simbólicas; trabalho, movimentos e práticas sociais na Amazônia.
A imagem em destaque é uma representação de Pachamama, deidade máxima dos povos indígenas dos Andes centrais. Vários autores consideram Pachamama como uma divindade relacionada com a terra, a fertilidade, a uma mãe, o feminino. Imagem: divulgação.

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