A mãe terra gritará por nossos corpos

No final do mês de julho participei de um encontro de professores pesquisadores na Bolívia. Um parente do Equador do povo Quéchua iniciou sua apresentação afirmando: o mundo andino amazônico é uma mulher. Como estamos cuidando de nossas mulheres? 

Aquela afirmação me atravessou em uma sala de pesquisadores latino americanos predominantemente masculina. E se o lócus de enunciação fosse deslocado para as mulheres indígenas? E se o lugar estrutural de uma mulher indígena fosse o lugar pelo qual esse mundo se organizasse? 

Estamos às vésperas de viver, de sentir, de enraizar esse lugar. Estamos chamando de I Marcha das Mulheres Indígenas.

Com o tema “Território: nosso corpo, nosso espírito” afrontamos este sistema-mundo branco/ racista/ patriarcal/ militar/ capitalista: dizemos que passa pelos nossos corpos, físico-culturais e simbólicos, a nossa existência nesse mundo. São pelos nossos corpos que se constituem nossos territórios. E nossos corpos nada o são sem nosso espírito. E podemos falar em espíritos, tantos são os nossos corpos e culturas. Podemos dizer dos nossos mundos, das nossas vivências, do nosso protagonismo no cuidado com a terra – ela, mulher como nós. 

A construção da marcha é fruto da Plenária Nacional das Mulheres Indígenas do XV Acampamento Terra Livre – ATL 2019 “Sangue indígena na veia a luta pela Terra”. Considerada uma das maiores assembleias de mulheres indígenas ocorrida no ATL, foi neste espaço coletivo que aconteceu a decisão das mulheres indígenas em protagonizar esse momento. No documento sistematizado deste encontro há uma afirmação. “Quando uma mulher indígena sofre qualquer tipo de violência, seja física ou psicológica, não é só o corpo físico que se atinge, mas sim o território indígena como um todo”. Na conjuntura brasileira que ameaça, mata e executa nossos corpos- territórios, são nossos espíritos, reunidos, que farão força na luta para que nossos povos gozem e festejem o bem viver. 

Nossa marcha se soma a força das mulheres das águas, do campo e da floresta. As Margaridas, que desde o ano 2000, marcham sempre no dia 12 de agosto, honrando a trabalhadora rural e líder sindicalista Margarida Maria Alves, assassinada em 1983, quando lutava pelos direitos dos trabalhadores na Paraíba. 

“Quando se quer ser mulher e se decide o que quer, a luta às vezes dói”. No canto da companheira feminista do Maranhão, Rosalva Silva Gomes, sentimos as dores nos nossos corpos. Sangue derramado do povo Wajãpi no Amapá, nesses últimos dias, a impunidade do sangue derramado de Margarida. O luto vira luta. Em marcha seguimos nós e todas que nos precederam. Marcham os espíritos pisando ligeiro e firme nesse cenário da política de morte. Lutaremos por: território; demarcação; moradia; garantia dos direitos originários de nossos povos; combate à violência contra as mulheres indígenas; direitos de igualdade de gênero; presença e permanência da mulher e mãe indígena na universidade; e acesso à saúde diferenciada da mulher indígena, com a valorização de nossos saberes, curas e medicinas. Todas essas demandas, decididas por nós, expressam lutas que são nossos direitos, mas também nossa indignação da justa ira mencionada por Paulo Freire, que nos faz gritar as agressões sofridas. Justa ira! Necessária, urgente, justa! 

Como estamos cuidando de nossas mulheres? Cuidamos nós, uma das outras. Marchando lado a lado, aprendemos entre nós o que vem das nossas mães e avós. Esse mundo que violenta e mata mulheres não é o mundo que queremos. Os povos indígenas andino-amazônicos chamam de Pacha Mama. Pacha Mama sabe quando nosso sangue toca a terra. Quantas mulheres indígenas tombarem, tantas mais será em luta. Que nossos corpos não sejam violados: corpo, território, espírito. Se atentem porque vamos falar. Já estamos falando nos nossos territórios, nos espaços que ocupamos, em nossos movimentos sociais, nas universidades. Em marcha, falaremos todas juntas e vai ecoar. Vai ser mais alto que toda opressão, violência e medo. Vai ser mais forte que toda dor. Vai ser firme e certeiro. Estejam atentos e preparados. Ouça a mãe em nós gritar!

 

Inara do Nascimento Tavares, povo Sateré Mawé, feminista da Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB. Professora do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena – Universidade Federal de Roraima.
A imagem em destaque é da página Design Ativista.
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