Projeto do Ministério do Turismo mira Terras Indígenas

Programa “Revive Brasil” irá conceder patrimônios da União como terras indígenas e unidades de conservação para exploração da iniciativa privada

O Ministério do Turismo (MTur) pretende implementar uma versão do projeto português “Revive”, que abre o patrimônio da União ao investimento privado para o desenvolvimento de projetos turísticos por meio de concessão pública. Segundo reportagem do The Intercept Brasil publicada no dia 16 de outubro, o plano já está em andamento no MTur e deve ser anunciado ainda este ano.

As informações foram passadas ao jornalista Breno Costa por uma fonte interna do ministério e incluem até uma lista de 222 propriedades da União com potencial de exploração turística pelo setor privado. Essas propriedades estão espalhadas por 17 estados do país, sendo que alguns, como São Paulo, ainda não responderam ao pedido do MTur sobre a proposta, o que indica que o número de patrimônios da União que serão passados para a iniciativa privada deve aumentar até o lançamento do programa.

Entre patrimônios históricos e culturais do país na mira do programa, como o Forte de Copacabana e a Praça dos Três Poderes, também estão listadas terras indígenas e unidades de conservação ambiental. São elas: Reserva Indígena de Dourados (MS), Terra Indígena Ibirama (SC), Terra Indígena Parque do Araguaia, Terra Indígena Inãwébohona e Terra Indígena Utaria Wyhyna/Iròdu Iràna, onde se encontram os povos indígenas Karajás (margem direita do Rio Araguaia), Javaés (margem esquerda do Rio Javaé) e Krahô Canela, na ilha do Bananal (TO) com mais de 30 aldeias;  povos indígenas Xerente em Tocantínia e Rio Sono (TO) com mais 30 aldeias às margens, direita do Rio Tocantins, os Krahôs em Itacajá e Goiatins com mais de 15 aldeias.

Seminário

Secretário Bob Santos representa o MTur em Seminário Internacional Patrimônio+Turismo, em Porto Alegre (RS). Crédito: Vanessa Castro/MTur .

Entre 23 e 25 de outubro, ocorreram o Seminário Internacional Patrimônio+Turismo e 6º Encontro Brasileiro das Cidades Históricas, Turísticas e Patrimônio Mundial, ambos realizados em Porto Alegre (RS). O evento, organizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em parceria com o Ministério do Turismo, reuniu pesquisadores, estudantes e gestores governamentais nacionais e internacionais de diversos órgãos relacionados ao patrimônio mundial.

O seminário contou com a presença do diretor de Valorização da Oferta da Empresa de Turismo de Portugal, António Baeta, e a diretora-geral de Patrimônio Cultural de Portugal, Paula Araújo, para apresentar o programa Revive e seu impacto na economia portuguesa ao longo de três anos.

“Em apenas três anos, o Revive contribuiu positivamente para o aumento da receita cambial turística e para a geração de empregos no país”, comentou Baeta.

Já Paula Araújo, ressaltou a soberania nacional na parceria público-privado, afirmando que os patrimônios são concedidos às empresas por um período de tempo limitado, e que nem todos os patrimônios integram o programa, apenas aqueles com vocação turística e relevância como patrimônio arquitetônico, histórico e cultural.

Brasil e Portugal mantêm um diálogo sobre a implantação do programa por aqui. Com o avanço das negociações, será criado um Comitê Gestor Nacional do Revive Brasil, composto por representantes do MTur, da Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU) e do Iphan. O comitê vai estabelecer critérios para a escolha dos patrimônios.

Silvana Melo, diretora do departamento de Ordenamento do Turismo, disse que o objetivo do programa é usar o patrimônio estrategicamente em favor da comunidade.

“O projeto transforma lugares desertos e sem utilização em atrativos culturais, preservando suas características. Queremos criar pólos turísticos e potencializar economicamente a região, gerar emprego e renda para as localidades”, explicou.

Comunidade

No dia 28 de outubro, o The Intercept Brasil publicou uma nova reportagem sobre o tema, desta vez denunciando a pressão da Embratur sobre a Funai para o encerramento do processo de demarcação de terras dos Tupinambás de Olivença, localizado no sul da Bahia. O território, que abrange os municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, é lar de mais de 4,6 mil indígenas, além de outras comunidades tradicionais — trata-se de uma área predominantemente de mata atlântica, que vai até o litoral.

Ofício da Embratur enviado à Funai pedindo o encerramento do processo de demarcação das terras dos Tupinambás de Olivença. Fonte: The Intercept Brasil.

A etnia, presente na região há mais de 400 anos, se vê em meio a um conflito de interesses por conta do potencial turístico da área que ocupam e a presença da cultura de cacau para exportação. Encurralados entre interesses econômicos, agora precisam lidar com a instalação de um hotel de luxo planejado pelo Grupo Vila Galé, rede de hotéis portuguesa que pretende construir um resort all inclusive na região por conta de sua proximidade com Ilhéus e outras praias famosas.

No documento encaminhado à Funai, a Embratur afirma que o Governo do Estado da Bahia e a Prefeitura Municipal de Una, uma das cidades que compreende as terras dos Tupinambás de Olivença, firmaram um protocolo de intenções de investimento com o Grupo Vila Galé que calcula valores superiores a R$200 milhões, alegando que a empreitada gerará 500 empregos diretos e 1500 indiretos. No mesmo tópico, a Embratur revela que o Grupo Vila Galé e outros grupos hoteleiros têm interesse em construir, além de resort, “empreendimentos turísticos imobiliários compostos por um aldeamento de casas e condomínios de apartamentos residenciais, com serviços hoteleiros”.

Além disso, a Embratur defende que para o sucesso do investimento é necessária uma estrutura de segurança jurídica, apoiada pelos governos Estadual, Municipal, Federal e Funai — e os prefeitos das cidades envolvidas já se mobilizam para concretizar esse projeto. O prefeito de Una, Tiago Birschner, divulgou uma carta aberta para Bolsonaro pedindo por ajuda na garantia do empreendimento. Tanto Birschner quanto o vice-governador da Bahia, João Leão, mantém conversas com Jorge Rebelo, presidente do conselho de administração do Grupo Vila Galé. Ambos afirmam na reportagem que a construção dos hotéis não violará o direito dos Tupinambás de Olivença.

Ao The Intercept Brasil, Birschner explicou que o empreendimento prevê 800 hectares para a construção do resort – o que implica na revisão de todo o processo de demarcação, já que a área demandada se encontra dentro de território indígena. O prefeito também afirma que o Grupo Vila Galé já recebeu o aval dos órgãos ambientais municipais e estaduais, e que isso garante a preservação da área.

Tupinambás de Olivença

Lideranças Pataxó e Tupinambá de 26 aldeias da Bahia se reuniram em Brasília em 16 de outubro para cobrar a regularização de seus territórios. Foto: Renato Costa/FramePhoto/Folhapress

Os Tupinambás foram os primeiros indígenas a entrar em contato com os portugueses durante o período de “descoberta”. O processo de demarcação de suas terras teve início apenas em 2001, e ainda não foi concluído. Para proteger seu território e seus direitos, os Tupinambás de Olivença passaram a demarcar suas terras por si mesmos, um movimento que chamam de “retomada”, uma vez que recuperam terras ocupadas ilegalmente por fazendeiros.

Por conta disso, o cacique Baubau foi preso quatro vezes durante os governos Lula e Dilma, e este ano, denunciou o plano de fazendeiros e policiais para assassinar seus familiares. Segundo o cacique, o plano consistia em uma emboscada para incriminar índios falsamente por tráfico de drogas. Na visão dos criminosos, isso seria pretexto para uma troca de tiros, na qual seriam mortos três irmãos e duas sobrinhas de Baubau. A intenção era pará-los em uma blitz de trânsito, plantar drogas e armas nos carros e divulgar às emissoras de rádio e TV da região.

À Folha de São Paulo, o cacique revelou que informações de sua fonte afirmavam que “agora é só uma cúpula de fazendeiros, bem pequena, com alguns membros políticos com pessoas ligadas à Polícia Militar e Polícia Civil e foi discutido como fazer para tomar o território tupinambá da mãos dos índios e voltar para a mão deles”. A Folha conversou com Baubau em Brasília, onde esteve para falar sobre a denuncia à PGR (Procuradoria-Geral da República), à delegação da União Europeia e ao Cimi (Conselho Indigenista Missionário), braço da Igreja Católica.

Ainda segundo a reportagem da Folha, uma testemunha citada pelos índios que também tomou contato com as denúncias declarou ao Ministério Público ter sabido que o grupo contrário aos indígenas iria aproveitar “a atual conjuntura nacional (em que o presidente eleito [Jair Bolsonaro] faz discurso de ódio contra índios e outros povos tradicionais); é o melhor momento para eliminar Babau de vez, ou eliminar inicialmente seus familiares para desestabilizá-lo”.

Agora, além de continuar sua luta contra fazendeiros e posseiros, os Tupinambás de Olivença precisam lidar com o empreendimento do Grupo Vila Galé. Ao The Intercept Brasil, o cacique Valdenilson, um dos líderes tupinambás da região, confessou ter sido hostilizado por membros do Ibama e da Guarda Municipal.

“Eles falam ‘aqui é área do hotel, você vai ter que sair daqui’, ‘vocês não pertencem a esse lugar, ‘vocês não são índios, vocês ficam se pintando pra dizer que são índios”, relatou o cacique.

Fora a pressão de órgãos oficiais, os tupinambás também veem a opinião pública se voltar contra eles — Valdenilson disse ao Intercept que os responsáveis pela construção do hotel começaram uma campanha de difamação contra seu povo, alegando que os indígenas são contra o desenvolvimento da região.

“Já ofereceram 50 vagas de emprego para os indígenas, tem gente até de fora que veio comprar terreno pra dizer que é morador e ter emprego. Eles jogam a comunidade contra a gente. Por causa disso até tráfico de droga começou a ter”, revela o cacique.

Entre outras questões, os Tupinambás de Olivença temem que a movimentação gerada pelas obras de infraestrutura comprometam suas formas de subsistência, assim como o território sagrado no qual descansam seus ancestrais, tradições e cosmologias — o que se expressa na carta pública divulgada pelos tupinambás em fevereiro deste ano, alegando que o plano do governo Bolsonaro para os indígenas é um “decreto de morte” para várias etnias.

“Garantimos às autoridades brasileiras e internacionais que, se essas medidas forem consolidadas, nós, Tupinambá, seremos todos assassinados, porque não vamos ceder, não vamos recuar. Queremos a garantia dessas autoridades: todos nós, após sermos mortos, temos que ser enterrados no pé da serra”, diz o texto. “Não abrimos mão de ser enterrados no lugar onde formos assassinados, dentro do nosso próprio território, uma vez que nós nunca aceitaremos sair.”

Enquanto os Tupinambás de Olivença se preparam para resistir a essa ação arbitrária, o Grupo Vila Galé já vê seu resort all inclusive como certo. No site do grupo, a abertura do Vila Galé Costa do Cacau, há uma hora de Ilhéus, na região de Una, está prevista para 2021.

Resta saber se o mesmo ocorrerá com as demais terras indígenas elencadas pelo Reviver Brasil.

 

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Imagem em destaque – paródia da chegada dos colonizadores portugueses nas costas brasileiras, desta vez personalizada pelo Grupo Vila Galé. A ilustração foi feita por Sandro Schutt, editor de conteúdo e ilustrador da casa.
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