A fundação de Manaus

foto manaus antiga credito Amazônia Latitude

[RESUMO] Artigo reúne informações que farão parte de um capítulo do livro “Manaus, história e memória”, ainda inédito. O autor faz um resgate histórico sobre a fundação da capital amazonense. Entre massacres, disputas religiosas e políticas, veja destaques que vão até o século XIX.
Hoje com pouco mais de 2,1 milhões de habitantes, estimados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Manaus é considerada a sétima cidade mais populosa do Brasil e a primeira da região Norte.

Em suas origens, o primeiro núcleo populacional de origem branca a ocupar terras próximas onde hoje está a capital amazonense foi um acampamento de “tropas de resgate”, comandado pelo cabo Vital Maciel Parente. O militar português era encarregado de empreender ações punitivas contra índios rebeldes e de “resgatar” os “índios de corda”, nativos supostamente condenados a serem devorados por inimigos. Depois de “resgatados”, eram escravizados por seus salvadores ou levados para as cidades de Belém e São Luís para serem vendidos e usados nas fazendas dos reinóis.

Os padres jesuítas Francisco Veloso e Manuel Pires faziam parte dessa expedição investidos nos cargos de Juízes de Legitimidade, autoridades responsáveis pela fiscalização do cumprimento das leis coloniais para evitar que os índios capturados tivessem tratamentos cruéis e desumanos por parte dos colonos leigos. A função não passava de artifício falacioso para mascarar a brutalidade praticada pelos colonos e agentes do governo contra as populações nativas.

Uma vez alojados no pequeno arraial instalado na foz do rio Tarumã, o cabo Parente ergueu uma cruz de madeira. Ali os padres lusitanos oficiaram a primeira missa para marcar o poder da fé católica e do Estado português no local, que ficou conhecido como a Cruz do Tarumã. O ano era o de 1657.

Tempos depois, outra tropa de resgate, tendo à frente os mesmos missionários, estabelece os primeiros contatos com o povo Tarumã e consegue reuni-los próximos ao acampamento, batizado oficialmente com o nome de Missão do Tarumã, constituindo-se assim como o primeiro núcleo colonial português na região da atual cidade de Manaus, bem como a inauguração de uma era tormentosa para as nações indígenas do rio Negro, que passaram a conviver com suas tabas invadidas e saqueadas e seus entes presos, assassinados e sequestrados para a escravidão colonial.

O Forte de São José do Rio Negro

O governador do Grão-Pará, Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, impressionado com as informações dadas por Pedro da Costa Favela sobre supostos tesouros e outras riquezas existentes nas terras do rio Negro, além de preocupado com notícias de um possível comércio clandestino de escravos e armas entre índios rionegrinos e estrangeiros —principalmente holandeses—, passou a se interessar com a integração mais efetiva da região.

imagem do forte manaus sao jose rio negro

Detalhe do Prospecto da Fortaleza do Rio Negro (1756). Autor:
Eng. João André Schwebel. Fonte: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na era pombalina. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1963

Temendo atitudes mais agressivas por parte dos índios, o governador mandou guarnecer a boca do rio Negro ordenando a construção de uma praça fortificada, não apenas como medida preventiva para defender os interesses de Portugal contra os inimigos estrangeiros, mas autorizando ainda a criação de um “Registro de Índios” como forma de estabelecer um depósito de braços de reserva, que poderiam ser requisitados em caso de necessidade a qualquer momento, se assim o governo desejasse. Nesse momento, o Pará já padece com a escassez de mão de obra de escravizados, em razão do seu extermínio lento e sistemático, ocasionado pela violência do trabalho, maus-tratos, doenças e intensas guerras travadas com os invasores de seus territórios.

Na lógica portuguesa, ao mesmo tempo em que protegeria militarmente a região, a fortaleza serviria para dar apoio logístico às expedições escravizadoras de índios que subiam o rio Negro e rios próximos que ainda não tinham sofrido uma ação mais agressiva de caça a escravos. De acordo com o historiador Bessa Freire, esse estabelecimento fortificado, na verdade, seria mais um “curral de índios” à espera da escravidão do que uma instalação militar propriamente dita. Coube a Francisco da Mota Falcão e seu filho Francisco da Mota Siqueira a missão de erguer a praça forte. Especialistas em construções desse tipo, se deslocaram até uma área próxima à foz do rio Negro e ali edificaram-na.

O forte, dedicado a Jesus, Maria e José, foi batizado de Fortaleza de São José do Rio Negro e construído em madeira, pedra e taipa, distante três léguas do encontro das águas dos rios Solimões e Negro. Além de os muros serem baixos, o prédio tinha formato quadrangular e não tinha fosso, possuía quatro canhões de calibres diferentes, sendo dois de bronze e dois de ferro, além de alojamentos para os militares.

De acordo com o historiador Mario Ypiranga Monteiro, em seu livro “Fundação de Manaus”, a guarnição da fortaleza era composta por 270 homens. No entanto, este número é controverso. O historiador amazonense Agnelo Bittencourt, em “Manaus”, editado em 2012 pela Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas, demonstra, em quadro pertinente que, considerando que o forte consistia de um edifício de 40 palmos de comprimento (cerca de 15,50m) e a altura de dois homens (aproximadamente 3,80m), sendo portanto uma área de dimensões tímidas para abrigar um contingente dessa quantidade de pessoas, muito menos tendo condições de suprir com as provisões necessárias à subsistência adequada destes efetivos.

A Igrejinha de Nossa Senhora da Conceição do Lugar da Barra, tendo à frente o Cruzeiro, a casa do vigário e outras casinhas em seu redor. Adaptação de Aguinaldo Figueiredo/Acervo do IGHA

Na mesma obra, o eminente amazonólogo afirma que, em toda existência, a fortificação teve no máximo treze e, no mínimo, três militares como efetivos na guarnição, composta de soldados, cabos, sargentos e nunca passando de dois oficiais, informações corroboradas nos relatórios dos viajantes relativos à população quando passaram pelo lugar no século XVII.

O primeiro comandante da edificação foi o capitão Angélico de Barros, uma afirmação também controversa, de acordo com Bittencourt, que menciona três comandantes anteriores ao militar. Embora houvesse a presença de um diretor como administrador oficial dos interesses dos súditos lusos, inclusive investido das funções de juiz, era o comandante do forte que se encarregava em dirimir querelas judiciais e outras futricas entre os moradores, fator que aumentava ainda mais o prestígio do cargo na estrutura política local. A casa forte de São José também tinha uma capelania e, por ela passaram muitos capelães, sendo o mais famoso deles o padre Anacleto de Carvalho e Silva.

Com o passar do tempo, indígenas das etnias Baré, Baniba, Merequena, Juri, Mundurucu, Tarumã, Caburiquena, Mura, Caraiari, Manau e Passé, a maioria descidos dos rios Negro, Içana e Japurá, se agruparam em torno do forte, se miscigenando entre si e com os brancos colonizadores, formando uma comunidade bem heterogênea.

Essas miscigenações, tão diferentes em relação às composições linguísticas e culturais, demonstram a capacidade de os índios amazônicos se relacionarem de forma organizada em torno de interesses comuns, pois, em certos casos, alguns desses grupos eram inimigos históricos, e jamais se imaginaria a possibilidade de coexistência pacífica em um mesmo espaço territorial sem violência.

Em relação aos brancos, o processo de “mistura” começou a partir dos vários ajuntamentos de casais interraciais que, depois de constituírem suas famílias, receberam autorização da Coroa para realizarem os casamentos conforme as leis portuguesas, que previam liberdade total para os índios que se unissem em matrimônio com os brancos.

Os três primeiros portugueses a se casarem com mulheres índias da nação Manaus foram o sargento Guilherme Valente e os tenentes Bernardo Toscano de Vasconcelos e Crispim de Souza Lobo, todos da guarnição do Forte de São José do Rio Negro. Foi dessas uniões exógenas que surgiu o componente típico regional conhecido como “caboclo”.

Painel produzido pelo casal Makk em 1958, retratando a igreja da Barra. Crédito: Aguinaldo Figueiredo/Acervo de Roberto Mendonça

Num espaço de 20 anos, a população aumentou consideravelmente em relação aos tempos da fundação, graças ao trabalho de descimentos realizado pelos missionários carmelitas e, em razão disso, em 1695, por determinação desses padres da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, resolveu-se construir uma igreja na localidade de Tapera, para que realizassem os cultos litúrgicos, bem como o de invocar a proteção de uma padroeira ou padroeiro, como era costume dos colonos portugueses, católicos fervorosos, quando se fixavam em algum lugar definitivamente conquistado.

Logo foi edificada uma igrejinha de taipa, muito simples e que teria Nossa Senhora da Conceição como protetora e guia espiritual dos súditos lusos na distante colônia do Norte, pois desde a Provisão Régia de 1646, determinada por D. João IV, a Imaculada Conceição passou a ser a Padroeira do reino português, sendo sua confirmação outorgada pela Bula Ineffabilis, assinada pelo papa Pio XI, em 8 de dezembro de 1854.

O Forte de São José em ruínas em 1872. Crédito: Acervo IGHA

Foi por essa mesma época que a comunidade recebeu o nome de “Barra”, de origem popular, pelo fato de o lugarejo ter sido estabelecido geograficamente em uma “barra”, que designa uma paisagem em forma de praia, situada próxima à embocadura de um rio. De tanto o povo dizer “veio da Barra”, “vou para a Barra” ou “estou na Barra”, o termo se tornou de domínio público e evoluiu para “Lugar da Barra”, se tornando o primeiro topônimo da futura cidade de Manaus.

Depois de um prolongado tempo inativo, o fortim foi abandonado. Enfrentava dificuldades dificuldades como as longas distâncias que dificultavam as comunicações, o isolamento entre os outros núcleos coloniais, a falta permanente de equipamentos e a incapacidade de cumprir seu papel de reprimir o comércio ilegal com os estrangeiros, atividade rotineira havia muito tempo que continuou nas décadas seguintes. Isso pode ser atestado pelos relatos de viajantes da época, como o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, em sua “Viagem Filosófica ao Rio Negro”, realizada em 1787, que diz em relatório:

Prédio do Tesouro Público, local de fundação do Forte de São José do Rio Negro. Crédito: Acervo/Amazônia Latitude

Acima do lugar verdadeiramente confluem os dois rios, Negro e Solimões, bem se deixa ver, que pela foz do segundo pode seguramente descer quem muito quiser, sem ser registrado pela fortaleza; semelhantemente estando acima dela situado a boca do furo do Guariúba, o qual, como disse, comunica de inverno os dois rios, também se deixa ver, que, para sair do rio Negro, não há rigorosamente necessidade de se passar pela dita fortaleza, nem de demandar a foz do outro rio.

Além disso, a capacidade bélica do armamento sequer tinha condições de garantir a defesa do perímetro do fortim, menos ainda de causar dano grave a algum alvo adversário além do meio do rio, já que os canhões da edificação tinham baixa potência de fogo e eram de calibres inferiores a outros instalados em casas-fortes na própria Amazônia. Provavelmente a missão do forte português tenha sido a de intimidar e colocar medo na indiada que quisesse se revoltar contra as arbitrariedades perpetradas pelos colonos.

Os canhões do forte foram desativados sem que jamais tenham disparado contra qualquer embarcação inimiga ou alvo militar, limitados a salvas de tiros quando das festas religiosas ou para saudar autoridades em visita. No lugar onde o forte foi construído, sobre um cemitério indígena (Miracanguera), próximo ao atual porto de Manaus, não restou nenhum vestígio da existência ou mesmo um monumento qualquer para sinalizar a existência do prédio.

O que sobrou do seu patrimônio decadente foi incendiado em 24 de junho de 1874, noite de São João, e depois demolido totalmente. Próximo ao lugar em que ele existiu está o prédio onde funcionou a Secretaria de Fazenda, na antiga Rua do Tesouro, atual Monteiro de Souza, com uma placa indicando a façanha de seus construtores ostentando os dizeres:

Neste local, em 1669, foi construída a Fortaleza de São José do Rio Negro, sob a inspiração do cabo de tropa Pedro da Costa Favela. Foram construtores o capitão Francisco da Mota Falcão e seu filho Francisco da Mota Siqueira. Desapareceu em ruínas no ano de 1850”.

Aguinaldo Nascimento Figueiredo é colunista da Amazônia Latitude e responsável pela seção Viagens pelo Amazonas. Em 2000 graduou-se em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). É professor efetivo da rede pública de ensino estadual. Escreveu três edições do livro “História Geral do Amazonas”, e é autor de mais de 500 artigos no jornal “O Estado do Amazonas” nos cadernos de “História e Geografia do Amazonas” e “Museu do Conhecimento”, trabalhos que lhe renderam os “Votos de Aplausos” no Senado Federal em 2006. Desde 2017 é membro efetivo do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), ocupando a cadeira 22, que tem como patrono o memorialista português Gabriel Soares de Souza.

 

A imagem em destaque é a reprodução de uma foto antiga do Teatro Amazonas. Acervo/Amazônia Latitude

 

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