Medo do coronavírus enfraquece proteção da Amazônia pouco antes da temporada de queimadas
Redução da presença do Estado em campo abre caminho para invasões de terra, alertam ONGs e comunidades indígenas
A pandemia do coronavírus está enfraquecendo a proteção estatal brasileira para a Amazônia e seus povos logo antes da temporada de queimadas deste ano, segundo comunidades indígenas e ONGs.
Um menor número de agentes oficiais está em campo e missões de monitoramento estão sendo adiadas, abrindo caminho para mais invasões de terra e desmatamento, alertam.
Grupos indígenas – os principais defensores da floresta – estão se isolando para se proteger da doença, enquanto pedem ajuda para conseguir alimentos e medicamentos. Eles relatam que há uma escalada da invasão de garimpeiros em algumas áreas, movida em parte pela alta no preço do ouro desde o começo da crise. Nesta semana, o Brasil anunciou o primeiro caso de Covid-19 em sua população indígena. Enquanto a pandemia se espalha pelo país, a violência e as ameaças de morte continuam: recentemente houve a quinta morte entre os “Guardiões da Floresta” Guajajara em cinco meses.
No ano passado, o desmatamento e as queimadas atingiram seus mais altos níveis em mais de uma década, seguindo a ideologia de extrema direita de Jair Bolsonaro, que prega o enfraquecimento da proteção ambiental, o encorajamento de madeireiros e garimpeiros, e faz críticas a comunidades indígenas e organizações voltadas para a conservação.
O oficial afirmou que a Amazônia não seria afetada, mas ativistas do estado de Rondônia disseram já ter notado uma redução nas atividades pelo Ibama e ICMBio (órgão estatal responsável pela manutenção de reservas naturais) e o ressurgimento da ameaça de posseiros.
O grupo ambiental WWF e seu parceiro local, Kanindé, dizem que uma grande invasão está sendo planejada para os próximos dias perto da aldeia Alto Jamari, na terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau.
Os posseiros pretendem reunir um grande grupo e começar um tumulto como pretexto para entrar na área e dividir a terra. “Vai começar na próxima semana, então eles querem juntar uma equipe e ir até lá” revela um áudio de WhatsApp passado ao The Guardian.
Essa não é a primeira ameaça à comunidade originária, que já expulsou invasores e enfrentou ameaças de morte anteriormente. Mas os indígenas afirmam que a pandemia fortaleceu os criminosos contra a já reduzida presença de autoridades.
“Os invasores sabem que a doença está enfraquecendo ainda mais os órgãos de inspeção”, disse Awapy Uru-Eu-Wau-Wau ao grupo ambiental.
A WWF Brasil planeja doar 14 drones para comunidades indígenas e governos locais, para que possam conduzir seu próprio monitoramento em tempo real. “Isso nunca foi tão importante quanto durante a atual crise na saúde global, com o monitoramento oficial sendo reduzido, trazendo a ameaça de uma escalada de invasões de terras indígenas”, disse Mike Barret, diretor de ciência e conservação na WWF UK.
No primeiro voo sobre o território Uru-Eu-Wau-Wau, habitantes locais descobriram que 1,4 hectares de floresta foram derrubados sem seu conhecimento no ano passado. Recentemente eles avistaram aviões despejando sementes de pasto na área para que a terra possa ser usada para criação de gado.
O território Yanomami, em Roraima, tem visto um influxo de garimpeiros ilegais. Mesmo que a invasão tenha começado antes da pandemia, grupos ambientais temem que essa tendência se acelere porque a crise impulsionou o preço do ouro e a desaceleração econômica que se seguirá vai pressionar mais pessoas a buscar outras fontes de renda.
Tensões quanto à terra e os recursos naturais têm crescido há algum tempo, em alguns casos levando à violência e assassinatos. Na terça-feira, a imprensa brasileira informou o assassinato de um Guardião da Floresta no Maranhão. Zezico Rodrigues Guajajara, um professor e líder local, foi o quinto membro da etnia Guajajara morto desde novembro. As circunstâncias do crime estão sob investigação.
“Eu sou o líder mais procurado pelos invasores e pistoleiros”, disse previamente a Scott Wallace, jornalista e acadêmico.
Zezico Rodrigues Guajajara was murdered this morning in Maranhão, Brazil. Leader and educator who feared for his life and the lives of his people. My notes of our interview in Zutiua on 7.7.17: “I’m the most wanted of the leaders by the invaders and pistoleiros (gunslingers).” pic.twitter.com/sdDza2L1yE
— Scott Wallace (@wallacescott) March 31, 2020
Alertas de satélites governamentais mostram que, em geral, o desmatamento é reduzido durante a temporada de chuvas, entre novembro e março, começa a crescer entre abril e junho e alcança seu ápice nos meses seguintes.
Se a atual situação levará a mais desmatamento e queimadas, também irá depender de outros fatores. Uma desaceleração na economia global poderá suprimir a demanda por carne, madeira, minerais, soja e outras produções da Amazônia, o que pode aliviar a pressão sobre a floresta.
Mas isso será contrariado pela provável recessão doméstica no Brasil, que poderia levar mais pessoas pobres a “limpar” a terra para o cultivo de subsistência.
Os riscos à saúde provocados por essas invasões também são enormes. Bolsonaro foi além de Donald Trump em termos de rejeição de conselhos da comunidade científica sobre a necessidade de medidas de isolamento e quarentena para frear a disseminação da doença.
Ele vem encorajando a população a desprezar a restrição adotada pelos governadores, estimulou massivas manifestações de apoiadores e divulgou informações não comprovadas sobre remédios, além de uma suposta resistência imunológica do povo brasileiro.
Suas posições foram recebidas com o repúdio internacional e uma particular preocupação com os povos indígenas no Brasil, que se mostraram terrivelmente vulneráveis a epidemias anteriores. Mais de 90% das populações pré-colombianas das Américas podem ter sido exterminadas pelo sarampo, varíola e outras doenças trazidas por invasores europeus nos séculos XVI e XVII, segundo estudos recentes.
Muitos grupos indígenas estão agora se retirando para suas aldeias na floresta e bloqueando o tráfego externo. Eles têm feito um apelo por mais comida e auxílio médico e condenado a forma com a qual o governo tem lidado com a crise, dizendo ter piorado uma situação que já era ruim.
“Mesmo que o governo tenha imposto restrições a visitantes nos territórios indígenas, por conta de preocupações com a saúde, a medida pode beneficiar criminosos, segundo Antonio Oviedo, coordenador de monitoramento do Instituto Socioambiental, maior organização não governamental de meio ambiente do Brasil.
“Existem regras proibindo a entrada em terras indígenas e áreas de conservação”, disse. “Mas posseiros, madeireiros ilegais e garimpeiros não seguem as regras”.
Jonathan Watts é editor global de meio ambiente no The Guardian, onde também exerceu a função de correspondente na América Latina e no Leste Asiático.
Imagem em destaque – Área de desflorestamento ilegal desciberta pelos Uru-Eu-Wau-Wau em 15 de dezembro de 2019 pode ser vista à esquerda. À direita, uma área de desflorestamento ilegal para criação de gado. Foto: Marizilda Cruppe/WWF.