Sandra Godinho

Paulista radicada no Amazonas, é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB), e tem 10 livros publicados.

O bolo

Para Myriam Scotti, inspirada pelo livro “Receita para explodir bolos”, de sua autoria.

Tá sobrando sapato pra tão pouco pé! Disse-o assim, sem mais nem menos. Foi o tom, sabe? O agudo estridente escapando pelos dentes cobertos de ouro e de erros de Sebastiana, que ficou olhando a criança se equilibrar nos saltos, como malabarista de circo, enquanto eu trabalhava no bolo de macaxeira, jogando farinha na cuia, quebrando dois ovos dentro, amanteigando e moldando a massa às tentativas de ocupar meu espaço dentro daquela casa. Evidente que lhe era grata, a mulher me aceitou como cozinheira para trabalhar no flutuante de sua propriedade, que funcionava como restaurante durante o dia e como brega à noite, no meio do Madeira, à beira do fogão cozinhando para marmanjos com uma criança recém-nascida no colo, mesmo que o volume das músicas não deixasse nenhum de nós dormir.

Sebastiana não perguntou de onde vim, o que fazia ali com um bebê tão novo, se era fugida ou abandonada. Aqui cê vai trabalhar com garimpeiros que têm gosto em tomar pinga e não têm medo de levar pólvora no lombo, acha que dá conta? Se trabalhar direitinho leva dez gramas de ouro por mês. Não pestanejei. E como poderia? Não tinha nem pano pra enrolar a criança, só o dedo para servir de chupeta e o leite que pingava dos seios a cada par de horas para oferecer. Vai ouvir as histórias de valentia e bamburro, levar cantada e insolência, mas não quero enxerimento com eles, não quero cozinheira minha fazendo programa, pra isso os homens vão ao meu Esfrega-bucho, dormem com minhas meninas e me pagam, tá entendendo? Sou eu que promovo tudo por aqui, sexo, beberetes e rega-bofes. Não queira dar uma de esperta comigo, já botei muita menina como tu pra correr, tá entendendo?

Claro que entendia. A mulher tinha sido criada no trabalho e na precisão, cansou de comer terra do cerrado, se embrenhar nas selvas ou nas barrancas dos rios. Bem, isso Sebastiana ainda fazia, na época da seca, quando o Madeira baixava e o garimpo voltava a funcionar à plena força, vivendo nas corrutelas. Sem correnteza brava, era mais fácil as dragas e as balsas apurarem o ouro do cascalho colhido no leito dos rios. No inverno, com as chuvas, as águas subiam demais, a correnteza batia forte e o risco de topar com as toras que desciam era grande, no perigo de afundar draga e sonho. Nesse intervalo entre as estações, eu seguia para a casa de Sebastiana na cidade, ela na frente, comandando o batalhão; eu e a criança atrás, marchando a carne para outro confinamento. Estamos entendidas?

Teu bebê gosta mesmo é de mexer nas tuas coisas. Qualquer hora põe teus penduricalhos no pescoço! Foi o gesto, sabe? Podia jurar que o canto da boca de Sebastiana se contorceu em ironia ao observar a criança. Gênio de jararaca. Ficou lá, na cozinha, me vendo fermentar, o guizo de cascavel nos lábios. Dizia que era seu jeito de ser, gostava de pilheriar sem maldade, mas a maldade sempre vinha, eu conhecia a cobra. Guardava uma espécie de boroca, com as pedrinhas de ouro dentro do sutiã, no meio dos peitos. O lugar de apreço com as coisas que importava, dizia. Aprendi com ela a guardar meus dez gramas, entregues todo final de mês com cheiro de limão azedo. Não vá gastar por aí, pirralha. Quem guarda tem. A persistência é que faz boa raça.

Eu tinha a fartura dos peitos e Sebastiana, a mão de vaca. Gostava de regatear com os fornecedores, caçava ovos de tracajás na areia e, nos igarapés, carne de jacaré e tartaruga só para economizar no rancho para os homens. Comprava só o de necessidade. Pescaria de candeio ela conhecia como ninguém, fazia os ajudantes entrarem na água à noite para procurar o bicho que, ao ver a luz das lanternas, estatelava no lugar, ofuscado pela claridade. Era só vir com um facão na cabeça para garantir o almoço e a janta. Eu era como os bichos, me aguentava, estatelada. Suportava o cheiro do diesel, o sol escaldante, os mosquitos, a malária, os pegas dos federais, as febres do garimpo que não eram somente pelo bamburro, as saliências dos dragueiros, as despescadas que contaminavam o rio de mercúrio, amolecendo os peixes e o ânimo da gente.

A falta que me fazia um corpo para chamar de meu, enquanto as peles de todos os tons que se misturavam sob o sol. Pó de chocolate, mel e canela. Pão de minuto para eu sovar de vez em quando, sentir a macieza da massa. Essência de baunilha para adoçar a cama e os dias. Tome tento, menina. Sina de garimpeiro é não esquentar lugar. Quer outro filho no bucho pra criar sozinha?

Nem vou me admirar se algum dia o menino vestir tua roupa e sair rebolando por aí. Disse-o assim, se acabando de tanto rir, enquanto o bolo tufava no forno com as misturas das gentes, ingredientes de tantas raças que nos impregnavam naquela fofoca1Fofoca é o acúmulo de balsas e dragas. Pode significar garimpo, de acordo com Ilko Minev em “A filha dos Rios”., gente que tinha prazer em ver o suor lambuzar a terra, porque a Natureza não era como certas mães, capazes de rejeitar lamento e lágrima, aceitava de tudo e suportava outro tanto. Uma mãe se recheava mesmo é de rancores e mil humores, amargando, azedando, salgando a vida sem nunca poder adoçar. Só tinham os bolos para corcovear as vontades. Sovando, fermentando, tufando até explodir as crostas na quentura dos dias. Uma mãe, com o sol descambando o mundo, esturricando as matas de gente simples. Uma mãe, embuchando de boto, filho de um Cão malparido. Foi o gesto, sabe? O risadeiro frouxo de Sebastiana que solou o bolo e me perturbou a tarde. A cascavel se embalava na rede quando percebeu o fogo devorando a cozinha, tomando a sala, se ardendo e se acabando. Acabando com a pasmaceira da tarde e daquele desacerto todo. Vi de longe. O menino, dentro da canoa comigo, bracelete no braço, viu também. E rimos, dentro daquele rio que só vivia em andança.

Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com “Orelha lavada, infância roubada” (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com “Verso do reverso” (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance “Tocaia do Norte” (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, “A morte é a promessa de algum fim”, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Seu mais recente romance é “Estranha entre nós”, publicado em 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, “Memórias de uma mulher morta” (inédito) e “A Secura dos ossos”.

 

Produção: Isabella Galante
Revisão: Filipe Andretta
Direção: Marcos Colón

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