Coronavírus se espalha e ameaça povos no Vale do Javari
[RESUMO] Na região com o maior número de povos isolados do hemisfério ocidental, a ameaça do coronavírus acelera e soa os alertas. Entre medidas de prevenção e invasões de garimpeiros e proselitistas, os autores falam sobre riscos, vigilância e prevenção na Terra Indígena Vale do Javari e nos municípios próximos, como Atalaia do Norte. Grupos como a Univaja e autoridades de saúde locais acompanham os casos, já que os leitos de UTI mais próximos estão em uma Manaus há semanas sobrecarregada.
Na fronteira do Brasil com o Peru está localizada a Terra Indígena Vale do Javari, com uma extensão de 8.527.000 hectares e um perímetro de aproximadamente 2.068 km². É a segunda maior área indígena do Brasil. Situada na microrregião do Alto Solimões, no sudoeste do estado do Amazonas, abrange áreas drenadas pelos rios Javari, Curuçá, Ituí, Itacoaí e Quixito, além dos altos cursos dos rios Jutaí e Jandiatuba.
Este território compreende cerca de 85% da área do município de Atalaia do Norte, assim como terras dos municípios de Benjamin Constant, São Paulo de Olivença e Jutaí. Além destes municípios, no entorno da TI Vale do Javari estão localizados os municípios brasileiros de Eirunepé, Ipixuna e Guajará, e as províncias de Requena e Mariscal Ramón Castilla, no Peru.
Nesta Terra Indígena vivem cerca de 6 mil habitantes dos povos Kanamari, Korubo, Kulina-Pano, Marubo, Matis, Matsés (Mayoruna) e Tsohom-Djapá, além de grupos isolados e autônomos localizados no Alto Jutaí, no Jandiatuba e no Quixito.
Conhecedores do impacto de diversas doenças — a cólera do início da década de 1990, as hepatites virais e a malária —, resolveram tomar três medidas ainda no início da disseminação do coronavírus no Brasil.
Por meio da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) elaboraram uma Resolução Conjunta para suspender todas as atividades e reuniões no interior do vale, além de criar uma barreira de vigilância epidemiológica. Foi acertada no dia 17 de março com participação de representantes da Funai, do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) no Vale do Javari e do Conselho Distrital de Saúde Indígena.
Em segundo lugar, a Univaja montou uma força-tarefa, também com DSEI e a coordenação regional da Funai, acrescida de representantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e do Centro de Trabalho Indigenista, para aquisição de combustível e de gêneros alimentícios e aluguel de barcos. Decidiram levar indígenas que estavam vivendo na sede de Atalaia do Norte — 780, de acordo com um Recenseamento colaborativo de 2018 — para suas respectivas aldeias.
Uma terceira estratégia de prevenção da Univaja foi a confecção de 2 mil máscaras faciais. Metade foi doada no dia 16 de abril para profissionais de saúde indígena do DSEI-Vale do Javari. A outra, para as famílias indígenas que voltaram para as aldeias.
A TI Vale do Javari integra um arco de conservação que conecta várias áreas, entre Unidades de Conservação e Terras Indígenas, numa porção do estado do Acre e do sudoeste amazonense, assim como de outras áreas protegidas do lado peruano. Esse arco soma mais de 24 milhões de hectares. Na fronteira Brasil – Peru está a maior concentração de povos isolados do hemisfério ocidental.
Numa escala de A, que significa vulnerabilidade crítica, a D, moderada, o risco apontado para a TI Vale do Javari foi C: vulnerabilidade alta. Os indicadores baseados em fatores geográficos e infraestruturais, como o , consideraram a relação entre a quantidade de pessoas idosas, a média de moradores por domicílio, as condições de saneamento, a proximidade com Unidades de Terapia Intensiva e a situação de regularização territorial.
As vizinhas Alto Rio Solimões e do Alto Rio Negro foram classificadas como “B – Intensa” e “A”, respectivamente. Uma análise de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz sobre o classifica o Vale do Javari entre as TIs da Amazônia Legal com alta probabilidade de introdução do vírus.
Em terceiro lugar na escala do IVDIC, que outros fatores aumentariam o risco para a vida e para a saúde dos povos do Vale?
As invasões. Garimpeiros, pescadores, caçadores, narcotraficantes e organizações religiosas. Enquanto povos indígenas e seus aliados se preocupam com a pandemia, estes grupos continuam suas missões predatórias, como reportado pela agência Amazônia Real e denunciado pelo Cimi.
“Estamos vivendo um momento de muita angústia por causa dessa pandemia causada pelo coronavírus, trabalhamos sem parar na tentativa de proteger nossas aldeias e nossos jovens que ainda estão na cidade de Atalaia do Norte-AM. É nesse momento tão delicado para nossas famílias e toda a sociedade brasileira que oportunistas criminosos insistem em invadir sorrateiramente nosso território, com a possibilidade de atingir os índios isolados no interior da Terra Indígena Vale do Javari.”, diz uma nota da Univaja de 7 de maio.
Na última quarta-feira, 3 de junho, foram confirmados quatro casos do novo coronavírus (SARS-COV-2) no interior da Terra Indígena. Uma mensagem do Comitê de Enfrentamento à Covid-19 de Atalaia do Norte informou que três profissionais da saúde indígena haviam sido contaminados. A mensagem também dizia que o DSEI Vale do Javari estava providenciando a troca imediata dos agentes.
Os três profissionais infectados estão na aldeia São Luís, às margens do rio Javari. Lá vivem indígenas Kanamari, cuja aldeia é um dos polos bases do DSEI na região. Além dos três casos informados pelo comitê, foi informada a contaminação de um quarto agente de saúde indígena na aldeia Flores, onde vivem Matsés (Mayoruna).
A notícia anuncia a repetição de trágico cenário de outras áreas indígenas. Foi por meio de um médico que atua no DSEI-Alto Rio Solimões que ocorreu a primeira contaminação na área, no município de Santo Antônio do Içá, no Amazonas. No Alto Rio Negro, há denúncias de que enfermeiros e médicos com Covid-19 mantiveram contato com os indígenas em São Gabriel da Cachoeira, conforme publicação do jornal O Tempo.
A responsabilidade desta situação não é dos profissionais que atuam na atenção à Saúde Indígena, mas da constante precarização do Subsistema de Saúde Indígena do SUS. Por falta de insumos, estas equipes são enviadas às áreas indígenas sem serem testadas e atuam sem equipamentos de proteção adequados ou suficientes.
O contágio em Atalaia do Norte está em franca ascensão. Entre 31 de maio e 3 de junho, o número de casos confirmados saltou de 16 (2 não indígenas) para 89 casos (sendo 12 indígenas). O número de óbitos manteve-se em dois.
O boletim oficial de Atalaia do Norte de 3 de junho registrou 12 indígenas contaminados. Dez pessoas desse grupo foram à Casa de Saúde do Índio (Casai) em Manaus, e encaminhadas em seguida para quarentena na Casa de Apoio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) em Tabatinga. De Atalaia do Norte, seguiriam em uma embarcação do DSEI até a Terra Indígena.
A viagem foi interrompida em uma abordagem do comitê municipal de enfrentamento, acompanhado por funcionários da Funai. Com testes rápidos, a contaminação foi confirmada. Ainda não se sabe como será o acompanhamento destas dez pessoas, hoje responsabilidade da Secretaria Municipal de Saúde.
O alerta de risco de espalhamento da Covid-19 no Vale do Javari foi acionado. É necessário que medidas emergenciais sejam tomadas, como a testagem de todos os indígenas que mantiveram contato com os profissionais de saúde infectados, o reforço da barreira de controle epidemiológico — de profissionais da saúde e de outros — e fiscalização rigorosa contra as ameaças de invasores.
Cabe ressaltar que, no caso da confirmação da contaminação de indígenas e de agravamento de sintomas, não existem leitos de UTI próximos. É necessária a remoção de pacientes para hospitais de Manaus, que já enfrenta sobrecarga há semanas.
Almério Alves Wadick é antropólogo pela Universidade Federal do Amazonas e Indigenista. Atua junto aos povos indígenas do Vale do Javari desde o final dos anos 1980. Trabalhou no Cimi em duas oportunidades: no Cimi Tefé, de 1995 a 1996, com os Deni no Rio Xeruā, e no Vale do Javari, entre 2011 e 2012. Atuou na Funai de 2102 a 2016, e acompanha a situação dos índios do Vale do Javari.
Rodrigo Oliveira Braga Reis é bacharel em Ciências Sociais pela Ufam, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco e doutorando em Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua desde 2006 como professor no Instituto de Natureza e Cultura da Ufam. Desde 2007 desenvolve atividades de extensão e pesquisa com povos e organizações indígenas do Vale do Javari, no Amazonas.
Imagem em destaque é na fronteira entre o Brasil e Peru no Alto Solimões Foto: Antonio Caldas / Amazônia Latitude.