Conflitos socioambientais: Exército e comunidades tradicionais amazônicas

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Comunidade ribeirinha na Amazônia. Crédito: Amazônia Latitude

[RESUMO] O conflito territorial que envolve o Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), em Manaus, se arrasta há mais de três décadas e afeta, de um lado, os interesses das comunidades em permanecer e ter a titularidade da terra. De outro, soberania e interesses da União, ligados à preservação do meio ambiente. As terras já eram casa de famílias tradicionais antes de sua doação pelo governo do estado do Amazonas à União, na década de 1960, que as destinou para servir ao Exército. A iniciativa para solucionar o conflito partiu do Comando da 12ª Região Militar sediada em Manaus (AM), através da aplicação do princípio da ponderação no equilíbrio de interesses, escolhido por haver, no entendimento da instituição, colisão entre direitos fundamentais.
O caso das comunidades existentes dentro do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) do Exército, na área do Puraquequara, nas proximidades da cidade de Manaus, revela um problema de incompatibilidade entre direitos relativos a meio ambiente, territorialidade de povos tradicionais e defesa nacional.

Diferentes identidades coletivas emergem no Brasil, revelando nas últimas décadas a existência de diversos grupos étnicos, organizados em movimentos sociais, que buscam garantir e reivindicar direitos que lhe foram negados pelo Estado. Novos atores sociais surgem destas demandas, como bem afirma Antonio Carlos Wolkmer, em “Constitucionalismo e direitos sociais no Brasil”:

“O novo sujeito histórico coletivo articula-se nas exigências de dignidade, de participação, de satisfação mais justa e igualitária das necessidades humanas fundamentais de grandes parcelas sociais excluídas, dominadas e exploradas das sociedades.”

Antes de tentar resolver questões fundiárias na Amazônia, é preciso refletir sobre os ensinamentos de Antônio Carlos Witkoski, em “Terras, florestas e águas de trabalho: os camponeses amazônicos e as formas de usos de seus recursos naturais”, quando diz que:

“Tentar compreender homens e mulheres, as terras, as florestas e as águas de trabalho no interior do Amazonas é buscar o desvendamento da realidade. Porém, é necessário cautela, pois a realidade não pode ser compreendida apenas desvendando-se o dia a dia, mas numa dimensão em que este se inclui na totalidade. Esse dia a dia tem que ser compreendido no contexto em que o espaço Amazônico é produzido, não sendo apenas a soma mecânica de atividades diversas, mas a totalidade que os engloba”.

No caso em questão, as autoridades competentes e os atores interessados que participaram e ainda participam da análise do caso são: Ministério Público Federal (MPF), Secretaria de Patrimônio da União (SPU), Procuradoria da República no Amazonas (PGE), Advocacia Geral da União (AGU), Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), Comando da 12ª Região Militar e representantes das comunidades. Buscaram uma solução harmônica aos interesses, através do princípio da ponderação, que trata da equidade, necessidade e justiça social.

A iniciativa de composição na solução do conflito partiu do Comando da 12ª Região. Com diversas atividades de preparo: reconhecimentos especializados, levantamentos topográficos, cadastramento das famílias e realização de audiências públicas, entre outras, o comando tentava resolver problemas sociais e patrimoniais das comunidades ribeirinhas residentes em terras da União sob a responsabilidade do Exército.

“Urgia a necessidade de regularização das áreas utilizadas pelas Comunidades. Assim, foram promovidas várias reuniões e assembleias de conciliação, entre o Comando do Exército representado pelo Comando da 12ª RM, MPF, AGU e representantes das Comunidades, no sentido de encontrar uma solução para o problema”, diz um trecho do relatório emitido pela Seção de Patrimônio e Meio Ambiente da 12ª Região Militar.

Na tentativa de esclarecer o conflito e sua composição é que passamos a expor a localização geográfica e temporal, os modos de vida das comunidades, a origem do conflito e as mazelas deixadas pelo Estado, em franca desconsideração aos entes coletivos e aos direitos fundamentais. A visibilidade social e o reconhecimento de direitos desses grupos são frutos de sua própria articulação. Esse movimento tem gerado novos paradigmas e normas no campo jurídico até então desconhecidos ou ignorados por tratarem de “povos originários”.

Populações tradicionais

Para entendermos melhor a categoria das “comunidades ribeirinhas” envolvidas no conflito, vale resumir um estudo do termo a partir de cientistas sociais e ambientais. Partimos do pressuposto de que “populações tradicionais”, conceito desenvolvido pelas ciências sociais e incorporado ao ordenamento jurídico, somente podem ser compreendidas com base na interface entre biodiversidade e sociodiversidade.

Segundo Juliana Santilli, em “Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e cultural”, a categoria “populações tradicionais”, já é relativamente bem aceita e definida entre os cientistas sociais e ambientais.

Para Philippe Marie Lèna, em “Dinâmicas socioculturais na Amazônia: identidades, territorialidades e relações interétnicas”, existem outras dificuldades para a mesma categoria:

agricultor ribeirinho

Pescador no Lago do Maicá, em Santarém-PA. Comunidades ribeirinhas
dependem diretamente do ecossistema em que vivem

“A categoria “populações tradicionais” formada por vários grupos humanos (quilombolas, ribeirinhos, jangadeiros, sertanejos, indígenas, etc.) constituem ambiguidades, pois misturam categorias nativas, sociológicas e políticas. Essas ambiguidades dificultam a definição de políticas adaptadas. Sendo assim, certas populações parecem ter um estatuto bem definido hoje, como é o caso das populações indígenas, dos seringueiros e dos quilombolas, outras nem tanto, como é o caso dos ribeirinhos. São construções elaboradas para fins jurídicos”.

Vamos considerar aqui populações tradicionais, sociedades tradicionais, comunidades tradicionais, ou ainda, comunidades (populações) ribeirinhas, como possuidores de uma mesma conotação.

Assim, utilizamos neste estudo a noção de “comunidades tradicionais” para definir grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e em relações próprias com a natureza. Essa noção refere-se tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional que desenvolveram modos particulares de existência adaptados a nichos ecológicos específicos.

Algumas vezes, também será utilizado o termo “camponês amazônico”, que segundo Antônio Carlos Witikoski em “Terras, florestas e águas de trabalho: os camponeses amazônicos e as formas de usos de seus recursos naturais”, a utilização da categoria camponês é adequada e se aplica à produção familiar existente na várzea amazônica.

O conflito e a territorialidade

Na ótica legal dominante, a posse de terras dos ribeirinhos que vivem dentro do CIGS é apenas posse de fato, dado que essas terras são de propriedade da União. No entanto, isso não impede que eles vivam, trabalhem, se reproduzam socialmente e sintam como se o espaço realmente fosse seu, o seu território.

Sobre a posse de terras, a migração na Amazônia se aprofundou nos anos 1970 devido a grandes programas de colonização e da construção da Transamazônica durante a Ditadura. No período, a Amazônia já era povoada por tribos indígenas, quilombos, seringueiros e população ribeirinha, que pescavam e plantavam sua subsistência. Esses grupos começaram a perder suas terras com o início da regularização fundiária proposta pelo governo, embora a Constituição Federal priorize a posse das terras para comunidades tradicionais.

Amparados pelo Decreto Federal nº 6.040 de 2007, os povos e comunidades tradicionais se reconhecem culturalmente diversos: possuem formas próprias de organização social. Além disso, eles ocupam e usam os territórios e os recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

O problema teve origem na década de 60, quando o governo do estado do Amazonas, através da Lei nº 672, de 1967, doou à União as terras situadas na região do Puraquequara, com destinação específica para o funcionamento do CIGS, contando com confrontações e limites devidamente definidos. Em seguida, a Lei nº 939, de 1970, ampliou a área, doando terras ao longo da margem direita da estrada do Puraquequara, também com limites definidos. Deste modo, a área total ficou sob a jurisdição do Exército, sendo classificada como de interesse da segurança /defesa nacional, prevista na Constituição Federal.

Ocorre que o governo do Amazonas, ao doar as terras para a União, que instalou bases do Exército, ignorou a população tradicional que lá vivia há mais de 50 anos — e ainda vive até hoje — de atividades de economia extrativista, lavoura de subsistência e pesca artesanal, sendo que alguns ainda possuem títulos do terreno com mais de 100 anos.

É preciso entender o envolvimento do camponês amazônico com seu território (extensão de terra, floresta e água), que pode pertencer de direito ou de fato à ele e sua família. Witkoski no mesmo livro supracitado, responde essa questão: “A primeira característica desse território é que ele possui e não possui fronteiras. Quando se trata de atividades agrícolas, o “território” camponês pode ser reduzido à sua propriedade – a várzea baixa e \ ou alta e, às vezes um pedaço de terra, no ambiente de terra firme. Quando se trata das atividades desenvolvidas na floresta de terra firme, pelo fato da floresta não possuir fronteiras demarcada, o camponês amazônico transforma-se num trabalhador nômade. Quando se trata de águas de trabalho, a plasticidade do território fica condicionada ao ambiente “aquático público” (rios) e aos “aquáticos coletivos” (os lagos)”.

Isso acontece porque a noção de território que as populações tradicionais têm em relação à natureza possui singularidades.

O governo do Amazonas, na ocasião das doações, se comprometeu a realocar ou indenizar os moradores de acordo com seus títulos e posses. Entretanto, o que se conseguiu apurar é que apenas poucos proprietários, melhor orientados na década de 1980, processaram o estado do Amazonas e foram indenizados – o entendimento foi que houve apropriação indireta em benefício da União. O restante permaneceu, até o final do século passado, no mais completo esquecimento.

Verifica-se, nas últimas décadas, que a única presença do Estado na região tem sido a das Forças Armadas, que auxiliam na preservação do meio ambiente, na segurança dos ribeirinhos e prestam apoio de saúde em Ações Cívico Sociais (ACISO).

Ocorre que as comunidades foram aumentando e as famílias se ramificando. Onde antes existiam pai, mãe e três ou quatro filhos, hoje, acrescidas de noras, genros e netos, há cerca de 190 famílias (aproximadamente 800 pessoas). Construção de moradias e expansão das roças, da pesca e do extrativismo ultrapassam limites estabelecidos pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU).

Com a proximidade da zona urbana, surgem especuladores, pescadores que utilizam a pesca para fins comerciais e outras pessoas estranhas às comunidades. Todos esses acontecimentos acabam ensejando uma postura mais rigorosa do Exército (CIGS) na localidade.

O conflito de interesses entre os moradores das comunidades e o Comando Militar da Amazônia ficou mais evidente — e se tornou público — em 2009, com diversas reportagens na mídia local. O relatório de 2013 do Comando da 12ª Região Militar destaca a participação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), com ideologias contrárias à Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), como fonte de desentendimento dos ribeirinhos com o Exército e com outros atores sociais. E a CPT teria aproveitado para legitimar outros interesses, que não os dos Ribeirinhos.

As comunidades protestaram e, com a repercussão na imprensa, o caso foi parar no Ministério Público Federal, na Assembléia Legislativa e no Instituto de Terras do Estado do Amazonas (ITEAM). O ITEAM propôs, em nota, que a melhor forma de regularização fundiária seria a CDRU.

A negociação entre as comunidades e o Exército vem sendo acompanhada ao longo dos quatro últimos anos por Advocacia Geral da União (AGU), Ministério Público Federal (MPF) e Procuradoria da República do Amazonas (PGA).

O território onde o ribeirinho vive, a terra, a floresta e a água participam de modo decisivo na sua forma de viver com plenitude. Trata-se da porção da natureza que lhes fornece e garante os meios de subsistência, de trabalho e produção, bem como de produzir as relações sociais. O ribeirinho vive em perfeita harmonia com a natureza do seu entorno, faz parte do todo.

A localização e Identificação das Comunidades

O conflito centra-se especificamente nas áreas de treinamento do CIGS, após a Vila Puraquequara (zona leste de Manaus), ao longo das margens do Rio Amazonas, numa extensão de 40 km, Beiradão do Rio Amazonas, zona rural do Município de Manaus e no afluente do Rio Preto da Eva – igarapé do Tiririca. Na área do CIGS, delimitada conforme escrituras anteriormente citadas, localizam-se as cinco comunidades, situando-se as quatro primeiras no Beiradão do Rio Amazonas e a última no afluente do Rio Preto da Eva, assim identificadas em ordem de chegada, saindo da cidade de Manaus.

O modo de vida das comunidades e a sustentabilidade

Os ribeirinhos, seres humanos instalados às margens dos rios, desenvolvem permanentemente uma estreita relação com o ambiente. Isso pode ser revelado em diversos aspectos do cotidiano: na conservação do solo, da água, da fauna e da flora, caracterizando a condição sociocultural das comunidades tradicionais. O fato de ocupar as margens dos rios Amazonas e Solimões possibilitou-lhes adaptações às condições ecológicas existentes. Nesse sentido, uma estreita relação inclui os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente.

No geral, as comunidades destas localidades vivem com a renda que geram por meio de agricultura de subsistência, pesca artesanal, extrativismo vegetal, de eventuais caças e do exercício esporádico de turismo. Uma parcela bem pequena possui emprego público.

Segundo relatório do Ministério Público federal, a comunidade do Mainá fica em meio a uma grande área de floresta conservada, à direita do lago do Mainazinho, rico em pesca e com entorno bem conservado, com presença de floresta densa. As demais comunidades se apresentam visivelmente mais devastadas, devido a grandes áreas desflorestadas por atividade pecuária.

As comunidades ribeirinhas que habitam os CIGS são reconhecidas pelas características atribuídas por Antonio Carlos Diegues, em “O mito da natureza intocada”, para culturas e sociedades tradicionais: modo de vida próprio, dependência e até simbiose com a natureza, os ciclos naturais e os recursos naturais renováveis; conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos que se reflete na elaboração de estratégias de uso e manejo dos recursos naturais.

Nesse contexto, optamos pela seguinte definição, que está em “Homens anfíbios: etnografia de um campesinato das águas”:

“Os povos ribeirinhos que habitam a várzea do rio Solimões- Amazonas apresentam características tradicionais em seus sistemas de produção agroflorestal, oriundos de práticas indígenas e caboclas de produção. Onde a terra e água se complementam, buscando o equilíbrio da vida. Esse grupo tem as peculiaridades de dependência e simbiose com a natureza, conhecimento tradicional transferido de geração a geração, noção de território ou de espaço, onde o grupo se reproduz econômica e socialmente, moradia e ocupação desse território por várias gerações, o trabalho com a terra é de policultivo de subsistência com técnicas de retroalimentação do solo, etc”.

Os exemplos revelados pelas comunidades ribeirinhas, no que se refere ao funcionamento de apropriação, uso e gestão dos recursos naturais, podem ser adotados como referência. As pesquisas têm mostrado que, se o respeito pelo uso sustentado dos recursos for compartilhado pela comunidade, aumentam as chances de êxito das formas de gestão capazes de favorecer o alcance de uma distribuição mais equitativa da riqueza gerada e de aumento das margens de sustentabilidade dos recursos da comunidade.

O Relatório Brundtland da Comissão Mundial do Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), publicado em 1988, foi a primeira fonte oficial a conceituar e sistematizar a ideia de Desenvolvimento Sustentável, definindo-a como o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de satisfazerem as suas próprias necessidades.

Nas comunidades ribeirinhas, a ideia se desenvolveu por meio de comportamentos éticos, nos seus aspectos culturais, mantendo uma preocupação na conservação e preservação da vida e do ambiente. É um processo que implica em um ajuste social e econômico com métodos para que a natureza atenda às necessidades básicas da comunidade.

As comunidades ribeirinhas caracterizam-se pela diversidade de suas atividades produtivas, atributo que assegura sua sobrevivência, contanto que essa diversidade produtiva esteja relacionada com o padrão de necessidades e recursos disponíveis no local. Sustentabilidade, de um modo geral, é buscar soluções locais aos problemas globais, maximizando as potencialidades de cada ecossistema, os recursos específicos do mesmo e as contribuições de cada cultura.

Portanto, são consideradas populações tradicionais aquelas comunidades que dependem culturalmente do extrativismo dos recursos naturais e que ocupam ou utilizam-se de uma mesma área geográfica há várias gerações, de forma tal que não provocam alterações no meio ambiente, isto é, são partícipes da natureza. Essas comunidades são consideradas, por suas peculiaridades sociais e culturais, capazes de transmitir saberes e vivências no uso de recursos naturais, baseado no conhecimento acumulado e na permanente relação com a natureza.

O estudo dessas comunidades revela a multiplicidade de dimensões da sustentabilidade ambiental, que é dada pela complexidade natural, evidenciando a inter-relação dos seus componentes: estrutura social (a comunidade e suas gerações), instrumentos sociais (as escolas e associações) e biodiversidade (uso, patrimônio, conservação e importância).

O relacionamento harmônico das comunidades ribeirinhas e a colaboração dos militares do CIGS desempenham fundamental papel na conservação da biodiversidade do território em questão, principalmente se forem consideradas as constantes alterações decorrentes da ação de grupos econômicos, grileiros, madeireiros, fazendeiros, industriais e mesmo do próprio turismo no entorno.

Percebe-se que, nessas comunidades, seu conhecimento tradicional, o comportamento ético com a natureza e o apoio do exército na proteção do meio ambiente, assegurando a distância de invasores, desempenham importante papel na conservação da biodiversidade local. É visível a preservação ambiental com um mínimo de degradação.

Alcançar a sustentabilidade ambiental requer a integração de esforços em diversos setores e uma troca radical de condutas e estilos de vida, incluindo padrões de produção e consumo.

pescador lago do maicá santarém

Em Santarém, ribeirinhos no Lago Maicá dividem a rotina entre práticas tradicionais e
mobilização contra a construção de um porto – Foto: Amazônia Latitude

Direitos fundamentais em tensão e o princípio da ponderação

Neste estudo, analisa-se a colisão dos direitos fundamentais na perspectiva do Supremo Tribunal Federal (STF). Definir direitos fundamentais é difícil, pois existe vasta terminologia para o tema, até mesmo na própria Constituição de 1988, que versa sobre: direitos humanos, direitos e garantia fundamentais, direitos e liberdades constitucionais e direitos e garantias individuais. Pode-se falar que direitos fundamentais são aqueles constitucionalmente válidos.

É importante ressaltar que os direitos fundamentais não são apenas os que foram expressamente previstos na Carta Política, mas também aqueles implicitamente deduzidos.

Dentro do tema direitos fundamentais, comumente se discute a diferença entre direitos humanos e direitos fundamentais. Ingo Wolfgang Sarlet, em “A eficácia dos direitos fundamentais”, confere ao aspecto espacial da norma o primeiro fator preponderante de distinção: “o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano, reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional”.

Uma das principais características dos direitos fundamentais é a sua relatividade, ou seja, por se tratarem de princípios constitucionalmente previstos, os direitos fundamentais não se revestem de caráter absoluto, em caso de tensão entre eles cabe o sopesamento de um sobre o outro para que se decida pelo mais adequado.

No exemplo citado, por não existirem princípios superiores a outros, apenas a análise do caso concreto é que decidirá o mais adequadamente aplicado. George Marmelstein, em Curso de direitos fundamentais, afirma que o STF, assinalando a possibilidade de limitação dos direitos fundamentais, decidiu que não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto.

O STF tem tratado questões dos povos e comunidades tradicionais, como o recentemente caso de demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol (Roraima) e análise da constitucionalidade do decreto de reconhecimento dos remanescentes de quilombos, conforme Decreto 4.887 de 2003, resultado da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº3239.

Para Alexandre de Moraes, em “Direitos humanos fundamentais”,“os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (princípio da relatividade)”.

O caso em questão, semelhante aos da terra indígena Raposa Serra do Sol (Roraima) e da base aérea de Alcântara (Maranhão), bem representa a colisão entre direitos fundamentais entre interesses territoriais das comunidades tradicionais de um lado e Exército brasileiro de outro.

Com o aumento populacional nessas áreas, o Exército começou a restringir o acesso a maiores trechos de lagos e florestas, dando como justificativa a própria segurança dos moradores; estes por sua vez, passaram a se queixar e a se mobilizar, denunciando que não tinham livre acesso no uso de suas terras.

Foi então que os ribeirinhos começaram a tomar conhecimento de que, na realidade, não tinham titularidade alguma de seus terrenos, e as que existiam já estavam há muito caducas. Tanto pelo tempo quanto por obra do estado do Amazonas, que doou as terras para a União.

A insegurança se instaurou entre as populações locais, ao descobrirem que não tinham qualquer garantia legal de que eram donos da terra em que nasceram, viveram e trabalharam, e que não poderiam fazer com elas o que quisessem. Assim surgiu a necessidade de terem reconhecidas, pela proteção estatal, sua titularidade e delimitação fundiária.

Por outro lado, o Comando Militar da Amazônia (CMA), em resposta à Procuradoria no Amazonas, disse que o Exército precisa ter o controle da área do CIGS, de acordo com suas necessidades, interesses e funções. Essas seriam evitar a invasão de novos moradores, impedir o desmatamento, preservar a flora e fauna e manter em atividade efetiva e permanente o treino de forças estratégicas de defesa nacional.

O local em questão atende às diretrizes da política de defesa nacional e goza de proteção legal específica, dada a importância estratégica e da riqueza que abriga, uma vez que a Amazônia Brasileira é considerada área prioritária. Assim, o Exército também cumpre comandos constitucionais e as terras do conflito são bens públicos da União com destinação específica, além da preservação ambiental.

O conflito exigiu diálogo de diferentes entes, como ITEAM, PRA, MPF, Exército, comunidades e CPT, na busca de uma solução pacífica e proveitosa para todos.

É possível concluir que a relatividade da qual são revestidos os princípios torna possível que, em caso de choque entre eles, haja ponderação e que se decida pela aplicação do mais adequado ao caso concreto.

Considerar direitos fundamentais como princípios significa, assim, aceitar que não há direitos com caráter absoluto, já que são passíveis de restrições recíprocas. Vale lembrar que o Brasil é signatário de documentos internacionais sobre direitos humanos e de proteção a comunidades tradicionais que podem assumir natureza constitucional ou supralegal.

Princípio da ponderação

O século XXI começou fundado na percepção de que o Direito é um sistema aberto de valores. O constitucionalismo moderno promoveu uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e Direito. No entanto, a novidade das últimas décadas está no reconhecimento, pela ordem jurídica, da existência dos princípios.

Os princípios constitucionais passaram a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos e seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. Os direitos e garantias fundamentais, cuja proteção foi destacada na Carta de 1988, têm as mesmas características dos princípios, à medida que atuam como uma forma de concretização da dignidade da pessoa humana.

Na colisão entre os direitos fundamentais, será aplicado o princípio constitucional fundamental da proporcionalidade, que garantirá a prevalência coerente e segura da norma constitucional, através de juízos comparativos de ponderação dos interesses envolvidos no caso concreto.

Considera-se existir uma colisão autêntica de direitos fundamentais, conflito de direitos, quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colidir com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular.

De acordo com o princípio acima, delineado como princípio da concordância prática, os direitos fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados, por meio de juízo de ponderação, que visa preservar e concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionalmente protegidos, mediante concessões mútuas, para que se produza um efeito favorável com o mínimo de sacrifício dos princípios contrapostos, buscando o bem estar social com fundamentos na dignidade do ser humano.

Jovens da comunidade do Lago Maicá, em Santarém-PA. Moradores são ameaçados
por empreendimento de porto – Foto: Amazônia Latitude

Válida é a leitura das premissas de Robert Alexy, em “Constitucionalismo Discursivo”:

“Ocorre que, em uma ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de princípios, portanto, não é só possível, como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância. À vista dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis, como os que existem entre a liberdade de expressão e o direito de privacidade, a livre iniciativa e a intervenção estatal, o direito de propriedade e a sua função social. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação”.

A ponderação consiste, portanto, em método para se tomar decisões jurídicas nos denominados “casos difíceis”, nos quais tenha restado insuficiente ou impossibilitado o juízo de subsunção, principalmente quando a situação exige a aplicação de normas da mesma hierarquia jurídica, mas que indicam direções completamente opostas. Neste caso, é preciso identificar com clareza o núcleo essencial de cada um dos bens jurídicos protegidos.

Aplicado o princípio da ponderação, chegou-se a conclusão que a melhor forma de regularização fundiária é a CDRU. Desta forma, será concedido às famílias, ou comunidades residentes, dentro das delimitações do CIGS, um título legal (a CDRU), pois esta delimita o terreno de cada um, permite a permanência das famílias em suas terras e o repasse a seus herdeiros, bem como plantar em áreas previamente demarcadas, caçar e pescar na região, desde que fora do período de treinamento militar, além de conceder a possiblidade de crédito, entre outros ganhos. No entanto, ambos os lados deverão respeitar as regras para convivência, principalmente as ambientais. Também foi determinado que é proibida a entrada de novos moradores.

Considerações finais

Este estudo, conforme os delineamentos jurídicos apresentados, oferece uma proposta de solução para comunidades tradicionais, que lutam em ver seus direitos reconhecidos.

Não há como concluir este artigo sem se reportar ao julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, pelo STF, norteador de outros casos de sobreposição. Este julgamento, que teve menos repercussão na mídia, por se tratar de populações em menor número e, por isso, mais invisíveis à proteção do Estado, também padece da mesma problemática: a sobreposição territorial em terras da União.

Aqui, os envolvidos (União e comunidades) tiveram por mérito estudar o problema, as dimensões de ambos os lado, os interesses conflitantes, fazer esforços de hermenêutica pelo viés da norma constitucional, sopesar e ponderar, até chegar a uma solução que beneficiasse a ambos e fizesse justiça social.

A discussão enfrentada, que opunha as reivindicações dos ribeirinhos (em ter demarcado o seu território e a titulação deste) aos anseios do Exército (em exercer sua função constitucional de preservação do meio ambiente e defender a soberania da nação), permite concluir que o direito agrário na Amazônia pode e deve usar o arcabouço normativo citado neste texto para se adequar à realidade local. Para unir teoria e prática do Direito na Amazônia, deve-se abandonar a visão positivista, passando a uma compreensão plural (multicultural) do problema e das demandas por regulação normativa eficiente.

Na solução do conflito ocorreram negociações intermediadas por autoridades competentes, tendo como consequência a indicação da CDRU, o que demonstra que houve preocupação com a dignidade humana, que foram respeitados direitos fundamentais de ambos os lados, e que foram adotados os princípios da proporcionalidade e da ponderação, além da compatibilização dos interesses ligados ao meio ambiente, à territorialidade dos ribeirinhos e à defesa nacional.

Nas sábias palavras de Edson Damas da Silveira, em “Meio ambiente, terras indígenas e defesa nacional: direitos fundamentais em tensão nas fronteiras da Amazônia Brasileira”: interpretar o direito em solo amazônico requer uma grande dose de inteligência e boa vontade com o futuro da humanidade.

Interessante ressaltar que a concessão da CDRU, embora seja um documento antigo, neste caso, destaca-se pelo seu pioneirismo ao ser aplicada em um caso de comunidades tradicionais.

Assim, embora direitos venham a ser relativizados, percebe-se que a convivência do atores pode ser harmônica e proveitosa. As Forças Armadas podem contribuir para a defesa das comunidades ante possíveis invasões e/ou agressões externas, sem deixar de respeitar seus costumes e tradições. Da mesma forma, as comunidades ribeirinhas podem entender e respeitar suas limitações, compreendendo quais atividades são próprias do Exército.

Importante, ainda, assegurar que os interesses de conservação do meio ambiente são semelhantes. A sustentabilidade ambiental dos povos e comunidades tradicionais tem direta relação com o respeito a direitos e territórios.

Therezinha J.Pinto Fraxe é doutora em Sociologia Ambiental pela Universidade Federal do Ceará e diretora do Centro de Ciências Ambientais da Universidade Federal do Amazonas. Engenheira Agrônoma, é professora titular do Departamento de Agronomia da UFAM.

 

Rosane M. Brum Vargas é mestranda em Ciências Ambientais e Sustentabilidade da Amazônia (CCA/UFAM), advogada na área de Direito Socioambiental, licenciada Matemática e Bolsista CNPq.

 

A imagem em destaque é de pescadores da comunidade ribeirnha no entorno do Lago Maicá, em Santarém. Leia a fotogaleria aqui. Crédito: Amazônia Latitude.

 

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