Aritana Yawalapiti, a morte de um bravo

Desde a manhã de quarta-feira, 5 de agosto, Aritana Yawalapiti, filho de Kanato Tepori, não respira mais sobre a Terra, onde esteve ao longo dos últimos 71 anos. Líder mais respeitado do Alto Xingu, dividindo prestígio com o primo Kotok, dos Kamaiurá, Aritana morreu vítima da epidemia de Covid-19, depois de uma longa e difícil batalha em que saiu derrotado.

Ele era uma espécie de esteio cultural de seu povo e por extensão de todo o Alto Xingu, ainda que sua atuação se estendesse por todo o parque, com seus 26.420 km², o dobro da Irlanda do Norte, mais de duas vezes e meia o Líbano e o triplo da ilha de Porto Rico.

Essa liderança natural, firme e pacífica do cacique foi identificada por Cláudio Villas-Bôas, um dos célebres irmãos criadores da reserva do Xingu para a proteção e sobrevivência de 16 etnias do centro do Brasil.

A morte de Aritana pode ser debitada à estúpida e criminosa recusa do governo em oferecer às populações indígenas, primeiras donas do que agora é o território brasileiro, um mínimo de garantia sanitária contra a contaminação que varre o planeta como um demônio enlouquecido. Yawalapiti permaneceu confinado suas últimas duas semanas de vida em uma unidade de terapia intensiva (UTI) num hospital de Goiânia (GO).

Até chegar lá, no entanto, gastou a energia que teria feito a diferença se tivesse recebido pronto atendimento, negado em um veto do presidente da República no plano de atendimento às populações indígenas contra as ameaças da pandemia.

Uma semana antes, ele estava em sua aldeia, junto ao rio Kurisevo, que forma o Xingu, quando teve uma forte crise respiratória, logo diagnosticada como Covid-19. Inicialmente ficou em Canarana (MT), uma das entradas para a reserva indígena pelo Sul, mas sua saúde piorou sem que os médicos do parque pudessem contar com socorro aéreo.

A partir da cidade, chegou à capital goiana após uma viagem de dez horas no interior de uma ambulância, respirando com ajuda precária de um cilindro de oxigênio. Segundo sua sobrinha Ana Paula Xavante, mais de 50% da capacidade pulmonar de Aritana já estava comprometida quando ele deixou a região.

A morte de Aritana, uma das memórias de seu povo, é mais uma nódoa na imagem internacional do Brasil, ao menos em relação às populações sensíveis à proteção que culturas mais ameaçadas devem merecer antes que se transformem em imagem apagada do passado. Além da língua de seu povo (do tronco Aruak), o cacique falava outras quatro, como a dos seus parentes próximos, os Kamaiurá (do tronco Tupi-Guarani).

Desde a infância, foi preparado pelo pai, Kanato Tepori, para o resgate de sua gente. E esse resgate é mais que figura de linguagem. Quando os Villas-Bôas chegaram ao Xingu, comandando a Expedição Roncador-Xingu para desbravar o Brasil Central — um dos desdobramentos geopolíticos da Segunda Guerra Mundial — os Yawalapiti estavam reduzidos a sete sobreviventes.

Aritana foi preparado desde a infância para o papel que cumpriu até o fim da vida. Foto: John Hemming/Arquivo pessoal

Orlando Villas-Bôas — e isso ouvi muitas vezes da própria boca dele — estimulou casamentos com os Kamaiurá e assim os Yawalapiti renasceram. Aritana passou cinco anos recluso em casa, recebendo ensinamentos do pai, tios e avós numa preparação para a tarefa que teria adiante. Sua gente havia minguado a partir dos anos 30 e só a miscigenação, que também incluiu os Kuikuro (do tronco Karib), permitiu essa dramática recuperação.

Ouvi isso mais de uma vez de Aritana, em especial durante um depoimento que ele me concedeu em 2011 para uma edição especial de Scientific American Brasil que comemorou os 50 anos da reserva.

O Brasil é cada vez mais associado a destruição, incêndio e morte no interior da maior floresta tropical da Terra, a Amazônia, majoritariamente concentrada aqui. E o falecimento de Aritana, divulgado por agências internacionais de notícia, apareceu nas páginas dos jornais e mídia social de todo o mundo. Há um fascínio e um profundo temor pelo que acontece por aqui, e isso não é mero acaso.

Ainda há sertanistas no país, gente especializada no contato com povos isolados da sociedade exterior, que parte da mídia chama de “civilização”. Como se as culturas originais, que permitiram a sobrevivência de nações inteiras no interior da floresta (e ainda hoje assegurem isso a pequenos grupos) não tivessem consistência e valores legitimados.

Certamente é o caso de acrescentar que os “povos isolados” não são gente sem qualquer contato com a sociedade exterior desde que Cabral desembarcou por aqui. Ao contrário. Eles tiveram e, traumatizados pelo que viram e sofreram, decidiram recuar e procurar abrigo na floresta profunda que agora é vítima do desmatamento, do fogo e de hordas de garimpeiros, também resultado de uma relação social desigual e marginalizante.

Por formação cultural e característica pessoal, Aritana era um líder conservador no sentido literal da expressão. Na longa conversa de 2011, comprimida em duas páginas da edição especial de Scientific American Brasil, ele falou do temor pelo turismo desenfreado, invasão de pescadores, represas de menor e grande porte, como Belo Monte, além do encantamento de jovens indígenas por motocicletas e pela vida na cidade, que ele associava à ameaça do alcoolismo e drogas em geral, além da dificuldade de seduzir essas novas gerações para uma função estratégica da cultura indígena: a pajelança — espaço ilimitado de reflexão e interpretação do que os “brancos” chamam de “realidade”.

Aritana não disse, mas deixou claro: a diferença entre uma sociedade mágica, espiritualizada e ritualística e uma sociedade, digamos, cartesiana, mas esvaziada até mesmo dessa possibilidade pelo consumismo, alienação e competição que um indígena é incapaz de imaginar como estilo de vida.

A morte de Aritana, em uma idade em que poderia fazer muito por seu povo e por todo o Brasil, ainda que muitos sejam incapazes de perceber essa possibilidade, é tanto um lamento quanto um alerta. Mais um. Cada dia mais evidente e dramático em uma sociedade submetida a um brutal processo de aniquilação.

Quem tiver interesse em conhecer os cenários possíveis por aqui, talvez possa encontrar resposta em um clássico: o livro “Enterrem meu coração na curva do rio”, do escritor e historiador Dorris Alexander “Dee” Brown, que relata a sanguinária aniquilação de populações indígenas nos Estados Unidos, mostradas em faroestes vivenciados por atores reacionários como John Wayne. Ah, sim! Essa também é a fonte da expressão “branco”, termo usado para se referir a quem não é indígena. Injustificada para um país como o Brasil.

Aritana, o corajoso e sábio conciliador, no sentido mais nobre dessa expressão, fará falta imensa. Ela já começa a se fazer sentir.

Ulisses Capozzoli é mestre e doutor em ciências pela Universidade de São Paulo (USP). Foi editor durante 12 anos de Scientific American Brasil. Autor de vários livros como “Antártida, a última terra” e “No reino dos astrônomos cegos”.
Imagem em destaque: John Hemming/Arquivo pessoal
Vídeo cedido gentilmente por Gabriel Villas-Bôas

 

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