A Amazônia foi colonizada pelo Brasil?
Nos 200 anos da adesão do Pará à Independência do Brasil, questões sobre o passado e para o futuro da região
Montagem: Fabrício Vinhas
Em 2023, celebrou-se os 200 anos da adesão do Pará à independência do Brasil, marco histórico que incentivou a realização de uma série de debates sobre história, resistência e patrimônio na Amazônia. No ano anterior, o país teve uma agitada agenda de publicações, inaugurações e eventos relacionados ao bicentenário de sua independência, não sem intensas disputas políticas em pleno crepúsculo do governo Bolsonaro. A adesão do Pará, porém, pareceu estar menos inserida na construção dessa memória nacional e mais à vontade nas preparações da próxima Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP-30), que ocorrerá em Belém em 2025.
Na ordem do dia estão questões como o racismo ambiental e o crescimento do salvacionismo sobre a região e seus povos. A imensa violência que marcou a anexação do Grão-Pará pelo Estado brasileiro no século XIX retorna na forma de mártires e de uma genealogia da resistência contra o imperialismo. Como, então, podemos pensar nas limitações e possibilidades daquele episódio para a formação do que hoje chamamos de “Amazônia”? E especialmente como um território incorporado ao Brasil? Reviso, neste texto, alguns argumentos de intelectuais nesse sentido que abrangem categorias como “anexação”, “colonização” e “invenção”.
É importante considerar, sempre que discutido esse tema, que a colonização portuguesa na América do Sul teve a forma administrativa de duas unidades: Estado do Brasil, com capital em Salvador e depois no Rio de Janeiro, e Estado do Maranhão e Grão-Pará, cuja capital era São Luís, depois transformado em Estado do Grão-Pará e Maranhão, com a transferência da capital para Belém. A economia e o governo de ambos eram independentes entre si e dependentes de Lisboa, e a conjunção só se deu através do processo de independência que incluiu a fuga da família real portuguesa com sua Corte no começo do século XIX. Nesse episódio, a cidade do Rio de Janeiro passou a ser o centro político de todo o mundo colonial português.
Belém se destacou como um local de debates e conflitos que iam desde a recepção de ideias liberais ou de pensamentos revolucionários dos centros europeus e de outros pontos coloniais como a francesa Caiena, como salientou Vicente Salles em seu livro “Memorial da Cabanagem”. Inicialmente, contornou-se a resistência em aderir ao Brasil pelo blefe de um suposto ataque a Belém pelos militares mercenários contratados pelo novo Estado nacional em agosto de 1823. A isso seguiram-se saques a Belém e São Luís, e o episódio mais emblemático: o massacre do brigue Palhaço, no qual aprisionaram 256 pessoas rebeladas em uma embarcação sem ar e água.
Problemas que eram centrais nas disputas da época, como a escravidão e a manutenção dos privilégios sociais de portugueses reapareceram nas inúmeras revoltas tiveram lugar no vale do Amazonas nas décadas seguintes, culminando na Cabanagem, considerada a maior revolta popular da história do Brasil. Como a numerosa bibliografia sobre o tema vem apontando, a Cabanagem foi um evento histórico de proporções continentais, que envolveu os mais diversos setores da sociedade local e provocou distúrbios de ordem internacional.
“Integrar para não entregar”
A anexação forçada e violenta desses espaços coloniais pelo Brasil significou a conversão à sua soberania de uma imensa área administrada a partir de Belém, que se estendia ao norte rumo às Guianas e subindo pelos rios Negro e Branco, ao sul pelos resistentes e profundos territórios dos rios Tocantins, Xingu e Tapajós, e ao oeste pelo curso do Amazonas e do Madeira até a encosta da Cordilheira dos Andes.
Não usavam a palavra “Amazônia” na época para nomear essa enormidade de paisagens e povos, mas é a categoria geográfica que arqueólogos e historiadores utilizam. Em “A incorporação da Amazônia ao Império”, artigo publicado em 1950 no primeiro volume da Revista de História da USP, Arthur Cezar Ferreira Reis faz a importante consideração de que a anexação ainda estava em curso pelo império colonial português, e que o império brasileiro viu em seu próprio surgimento a concorrência das novas repúblicas da Venezuela e do Peru, que avançavam sobre as suas pretensas fronteiras. A Amazônia, para Reis, ainda estaria por ser integrada.
É difícil dizer se esse argumento já estava elaborado dessa forma na época, como estava no regime ditatorial de 1964 que se seguiu à publicação do artigo. A política violenta e desastrosa da ditadura para a região baseava-se no estranho discurso de que a Amazônia, que o Brasil administrava há mais de um século, ainda precisava ser “integrada”. A suposta ameaça da intervenção externa permanecia, depois de tanto tempo, como um argumento para sua ocupação. Os povos locais não deixam de reagir. Muita coisa tem sido escrita e discutida sobre os impactos socioambientais dos grandes projetos, a violência no campo, as políticas de imigração e o genocídio indígena, e, ainda que raramente, algumas afirmações separatistas aparecem em eventos ou espaços de debate.
No recente livro “Amazônia, colônia do Brasil” (Valer, 2022), a socióloga Violeta Loureiro argumentou que a região amazônica converteu-se em uma colônia brasileira. Segundo ela, o acirramento da intervenção do governo federal sobre as atividades econômicas e a autonomia administrativa na Amazônia a partir da década de 1960 mudaram o estatuto da região em relação ao Brasil. Se a ideia soa radical, a pesquisadora lembra que o próprio Brasil, quando colonizado por Portugal, tinha a qualidade administrativa de “Estado”, o que permite pensar relações de colonização que não necessariamente se definem nesses termos juridicamente. Para Loureiro, a região seria não apenas a mais afetada pela exploração de recursos naturais como também seus estados são os mais penalizados pela legislação que incentiva e regula a tributação relacionada a ela.
Outro ponto importante é o sequestro do espaço amazônico pela União, que diminuiu drasticamente a área administrada pelos estados durante a ditadura. O caso do Pará, em que pelo menos 70% de suas terras ficaram nas mãos do governo federal, é tão espantoso quanto a criação dos territórios federais de Guaporé, Amapá e Roraima, cujos governadores recebiam a nomeação em Brasília. Ainda que tenham conquistado a posição de estados (tendo Guaporé se tornado Rondônia), essa experiência administrativa não se tornou um modelo totalmente abandonado pela república brasileira, cuja Constituição Federal de 1988 ainda prevê a criação de territórios e especifica o número (mais baixo) de parlamentares aos quais eles têm direito. A experiência é semelhante, aliás, àquela do atual departamento do Amazonas na Colômbia, que foi um “território nacional” até 1991.
Como nasceu a Amazônia?
Em seu livro, Loureiro mostra-se bastante preocupada com a questão do modelo de desenvolvimento socioeconômico do Brasil e, em especial, da Amazônia, dependente da produção de matérias-primas para o mercado internacional. A preocupação é justa, uma vez que a região concentra os municípios com mais baixos índices de desenvolvimento humano (IDH) do país e a sua destruição ecológica já é considerada muitas vezes como iminente. Há, porém, uma premissa a se ponderar para aprofundar-se na questão elaborada por ela. Em determinado trecho do livro, a socióloga afirma:
A História mostra que a Amazônia tem sido vítima de um enorme, penoso e permanente esforço para modificar a realidade original da região e o que dela ainda perdura — indígenas, caboclos, quilombolas, modos de vida; e a floresta. (p. 156-157)
Qual seria a “realidade original” amazônica? Ainda que eu não pretenda atribuir uma noção naturalista da Amazônia a Loureiro, a imagem da mata virgem e de povos vivendo em comunhão com ela, sem afetar sua paisagem, pode dar margens a interpretações naturalizadas de uma ideia de região. Pensando com Bourdieu, podemos nos perguntar como as relações de poder e desigualdade produzem uma noção de região amazônica, em vez de apenas afetá-la. E a nos perguntar por que a Amazônia ainda é compreendida ou se espera protegê-la a partir de uma certa associação com a natureza e com determinadas formas de se relacionar com ela.
Afinal, debates realizados nas últimas décadas em publicações de Eidorfe Moreira, Arthur Cezar Ferreira Reis e muitas outras, evidenciaram a dificuldade de definir uma região amazônica, especialmente em relação a seus aspectos naturais. A ideia de comunhão com a natureza vem sendo complexificada por estudos recentes da arqueologia e da etnobotânica sobre a produção de paisagens florestais pela presença humana e sobre indícios de sociedades populosas e estratificadas nos últimos milênios. A Amazônia, assim, seria muito mais do que o reduto da “natureza virgem”, e não poderia ser pensada sem considerar a história de seus diversos povos.
O clássico livro de Neide Gondim trouxe uma contribuição inovadora e que ainda tem seus desdobramentos políticos e teóricos a serem efetivamente apropriados. Como o próprio título sugere, “A invenção da Amazônia” apresenta um panorama de imagens e ideias que permitem pensar a região amazônica como uma produção discursiva. Para Gondim, uma produção discursiva do imaginário europeu quando da expansão capitalista. Mulheres guerreiras (que deram nome ao rio Amazonas), cidades de ouro, homens sem cabeça e animais fantásticos que apareciam nas crônicas de exploradores coloniais e seus mapas seriam já conhecidos da literatura de viagem sobre a Índia no século XIV. A Amazônia, assim, não corresponderia a um limite geográfico que podemos verificar em limites naturais ou reconhecer em limites definidos, mas à importação de um imaginário de uma terra exuberante passível de exploração.
De forma mais precisa, textos publicados nos últimos anos pelo historiador paraense Roberg Januário dos Santos apontaram os primeiros esforços de definir essa enorme área geográfica como uma região em si com o desdobramento do Grão-Pará após a Cabanagem. Segundo ele, a criação da província do Amazonas em 1850 (uma estratégia para aprimorar o controle daquele território e impedir novas revoltas) foi o marco das primeiras menções à palavra “Amazônia” por parlamentares e jornais da época.
Em vez de um Grão-Pará com uma economia, uma sociedade e uma natureza distintas do Brasil, como aparecia na literatura científica e de viagem, agora se tratava de uma cisão no que antes era o grande “Norte” do Brasil. Argumentando pela abertura do rio Amazonas à navegação internacional e ao incentivo à florescente economia da borracha, o Pará e o Amazonas buscaram se diferenciar das províncias que sofriam com a decadência da economia colonial do açúcar, o atual Nordeste (ao qual o Maranhão se associaria gradativamente).
Análises originais como essa precisam, ainda, se multiplicar. Para além da política institucional, deve considerar-se e investigar-se com interesse coletivo a participação da ciência e da literatura na formação de uma ideia de “Amazônia” desde o século XIX. E, se o Brasil tem suas conhecidas dificuldades de interlocução com os vizinhos sul-americanos, a urgência do debate sobre a proteção da Amazônia e de seus povos nos coloca também a insuficiência do conhecimento que temos de nossa história como uma história integrada.
A Amazônia nunca esteve isolada, e nunca foi uma questão própria apenas do Brasil. Mas sempre pareceu estar relacionada a uma dificuldade de integração, como um devir que constitui a própria ideia de região e o lugar que ela tem para o imaginário brasileiro e internacional. Em tempos de desastres socioambientais, parece que mais uma vez ela parece ter sido recém-descoberta por um mundo que sente que precisa dela.
O argumento de que a região amazônica foi colonizada nos provoca a seguir procurando outras relações do mundo com ela. E a refletir sobre os limites de nosso pensamento sobre a história e sobre a natureza. Também é importante avançar nesse debate para evitar que se cristalize uma imagem da Amazônia como um território sem história, sinônimo de natureza virgem, ou que se esqueça que se trata de uma região transnacional. O que argumentei aqui, a partir dessa provocação, é que pode ser mais interessante pensarmos mais em como a Amazônia foi “inventada” por meio desse processo de incorporação, que não é menos violento e traumático quando visto dessa forma.
Inácio Saldanha é historiador licenciado pela Universidade do Estado do Pará (UEPA) e mestre e doutorando em antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Tem estudado e publicado sobre memória ribeirinha, gênero e (bis)sexualidade.