Terra e sangue: a crônica de Erasmo Teófilo
Ativista é uma das pessoas mais ameaçadas por milícias rurais na Amazônia
No dia 5 de setembro de 1850, o imperador Dom Pedro II criou por decreto a antiga província do Amazonas, data que também marca o Dia da Amazônia, em referência à maior e mais diversa floresta tropical do mundo.
Dona de inúmeras riquezas naturais e culturais, a Amazônia representa mais da metade do território brasileiro e reúne mais de 14 mil espécies de plantas e cerca de 20% da fauna de todo o mundo.
Mas afinal, com um histórico a cada dia mais tenso e preocupante de violências dirigidas aos povos e ao bioma — seja no campo ecológico ou social — o que há, de fato, a ser celebrado?
Neste contexto está inserido Erasmo Alves Teófilo, uma das muitas vozes que resistem — com o próprio corpo — à barbárie. Como presidente da Cooperativa de Agricultores da Volta Grande do Xingu, no oeste do Pará, é um dos defensores dos direitos humanos no município de Anapu, colocado no mapa após o assassinato da missionária católica Dorothy Mae Stang, ordenado por fazendeiros em 2005. A freira defendia a regularização fundiária e a preservação da floresta.
Nascido em Altamira e criado ali próximo, em Medicilândia — cidade fundada durante a ditadura militar e batizada em homenagem ao general Emílio Garrastazu Médici —, o ativista de 32 anos chegou em Anapu há uma década, depois que soube da oportunidade de adquirir terras em um projeto de assentamento.
Acometido pela paralisia infantil e sem acesso à vacina em Medicilândia, Erasmo se movimenta para resistir, sobreviver e liderar. Ele pertence a uma pequena parte do que é essa Amazônia violentada e, paradoxalmente, representa muito dela quando amplifica as histórias e anseios das pessoas de sua comunidade: cerca de 300 famílias de trabalhadores rurais e pescadores da região, que sofrem com invasões e o terrorismo de grileiros, madeireiros e fazendeiros em áreas que são por direito destinadas à reforma agrária.
Erasmo está marcado para morrer e acorda todos os dias sem saber se vai terminá-los. Com a presença da morte literalmente rondando sua rotina, o ambientalista relata que as ameaças se tornaram tentativas de homicídio e perseguições de grileiros e agentes públicos do Estado.
O ativista apenas conta com a proteção de movimentos sociais, como a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PA) e da Universidade Federal do Pará (UFPA). Se dependesse do Estado para o proteger, certamente já estaria morto.
Cerca 70% de Anapu foi (ou é) projeto de assentamento. Mas isso só aconteceu por vontade de pessoas como a irmã Dorothy Stang e o padre Amaro Lopes, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que lutaram contra os crimes desses agentes ilegais que tinham áreas gigantes tomadas das comunidades.
Stang defendia a floresta e criou os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança e Virola Jatobá para assentar as famílias sem-terra às margens da Transamazônica e do rio Xingu. Hoje, as regiões continuam sendo alvo de desmatamentos por grileiros e madeireiros ilegais.
Desde que chegou ao município, em 2010, os problemas vêm aumentando, apesar da incansável luta pelo direito à terra e ao trabalho. Erasmo explica que tornou-se um líder natural e foi eleito representante dos moradores em pleitos diversos.
“Não havia uma ideia unificada, organização, e nem gente que peitasse os interesses dos poderosos dali. Essa que é a merda, porque se eu fosse medroso, estaria tranquilo em casa”, diz.
Naquela época já existiam as brigas com os fazendeiros, madeireiros e grileiros da região. Em 2016, algumas porções de terra foram conquistadas judicialmente com a representação popular e transformadas em projeto de assentamento. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) chegou a indenizar o grileiro por ter perdido a suposta posse das terras.
Foi assim que o grupo permaneceu na Volta Grande do Xingu. Isso, conta Erasmo, reforçou as lutas e, consequentemente, houve uma reação mais agressiva dos agentes ilegais.
Nesse meio-tempo, o agricultor soube que um grileiro tentava tomar as terras de outras 54 famílias. Seus vizinhos lhe disseram que este era “mais tranquilo” e que não tinha documentos, o que poderia facilitar uma possível negociação.
Com um mapa das terras em questão, foi ao Incra e confirmou que, de fato, não havia titulação. Apesar disso, começou a ser ameaçado por vários grileiros, que ficaram com medo de perder dinheiro com a especulação ilegal.
Morte de ativistas
“Foi aí que iniciou essa história de ‘vamos eliminar o Erasmo’. Com três meses, registrei meu primeiro boletim de ocorrência por ameaça verbal. O sobrinho de um grileiro veio até meu carro quando eu estava na beira da balsa de Belo Monte, me fotografou e me disse que eu iria morrer se continuasse nessa”, diz.
A violência crescente culminou na morte de lideranças locais. Recentemente, em 4 de dezembro de 2019, o mototaxista Marcio dos Reis foi assassinado em Anapu por um homem que fingiu ser um cliente. Pai de quatro meninas, era testemunha de defesa do padre José Amaro Lopes — sucessor da irmã Dorothy — e sabia, como muitos, o que ocorre na região.
Antes do crime, Márcio denunciou fazendeiros que incendiaram casas, ameaçaram e expulsaram famílias sem-terra de um acampamento em uma área ainda disputada na Justiça.
Cinco dias depois, o ex-vereador e conselheiro tutelar Paulo Anacleto foi executado a tiros diante do filho pequeno na praça central da cidade, alvejado por dois homens em uma moto. Amigo pessoal de Márcio e Erasmo, foi testemunha do assassinato do companheiro e dizia saber quem havia sido o mandante do primeiro crime.
De acordo com os movimentos sociais da região, houve 19 assassinatos ligados a conflitos agrários em Anapu, dentro ou fora de zonas rurais. Essas mortes e as conexões dos crimes com a disputa de terras são investigadas pela Polícia Civil do Pará. Mas Erasmo afirma que há pressão e influência política sobre as autoridades, o que atrasa ou impede o processo, além do desinteresse do próprio do órgão em elucidar os casos.
Essa negligência institucional, somada ao medo de sofrer o mesmo destino de outros companheiros, causaram a dispersão de líderes locais, que saíram da cidade. Erasmo também fugiu, mas depois voltou para Anapu. Afinal, sua vida toda está ali e, ironicamente, a possibilidade da morte também. Prova disso são os três atentados diretos que sofreu de dezembro de 2019 a abril de 2020.
Tentativas de assassinato
Na noite de 12 de dezembro, quando estava na casa que compartilha com os pais, a mulher e os três filhos no interior de Anapu, ouviu um homem se aproximar. Ele disparou três tiros e exigiu que o ativista saísse da residência a fim de confrontá-lo, mas desistiu do atentado. A polícia foi acionada, mas apareceu apenas no dia seguinte. Os policiais buscaram o suposto pistoleiro e foram recebidos a tiros quando chegaram na casa do jagunço, que teria morrido em confronto.
O mais recente foi um dia antes da Páscoa, quando um homem, portando uma espingarda e fingindo estar bêbado, arrombou a porta da frente de sua casa. Ao entrar, o pistoleiro lutou com seu pai, que conseguiu desarmar o homem. “Foi tenso. Só não conseguiu atirar em mim porque me escondi, meu pai o desarmou e ele fugiu”, lembra. O homem posteriormente foi preso e a família ficou sabendo por terceiros que ele recebeu de um grileiro a quantia de R$ 500 para executar o “serviço”.
Mesmo sem confrontos diretos, os mandantes dos atentados não parecem querer trégua. No final de agosto, recebeu mais uma ameaça feita a mão armada. Desta vez, um homem apareceu à noite, chamando-o no portão de sua casa, pedindo pilhas para uma lanterna. Erasmo já o conhecia, mas nunca teve boas referências. Desconfiado, percebeu que o solicitante segurava um facão em uma das mãos. Com a negativa do agricultor, o homem aumentou o tom da voz, xingou-o e revelou um revólver.
A família tem o costume de registrar boletins sobre os casos, mas das últimas três vezes não conseguiram formalizar as denúncias. Não por falta de tentativa: o delegado da Polícia Civil em Anapu não quis recebê-los.
Quando está na cidade, é comum ver vários carros com vidro fumê parados, vigiando Erasmo em lugares públicos. Para conversar temas particulares, conceder entrevistas e falar com mais conforto em meio ao clima tenso, o agricultor prefere ir a locais afastados, mas relata sempre ser seguido aonde quer que esteja.
O ativista está incluído oficialmente no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, da Secretaria de Segurança Pública do Pará. Contudo, para Erasmo, é o mesmo que nada. Ele explica que só agora começaram a dar maior atenção a seu caso, após denunciar a falta de viaturas há mais de dois meses em sua casa. “É complicado. De dezembro pra cá eu não tô vivendo, eu tô passando”, desabafa.
Ele também prefere ficar distante de policiais, porque, conforme relata, muitos agentes fazem bicos como seguranças para os grileiros quando não estão em serviço.
O jeito da milícia
Teófilo detalha que os grileiros da região são vários e trabalham de maneira organizada, como uma milícia rural de pistoleiros.
“Grileiro aqui é aquela pessoa que tem muito dinheiro e compra um lote legalmente. Só que ele já tem um projeto: compra de pessoas pobres, que não têm condições financeiras”, explica. Na região, todos os grileiros vieram de fora do Pará. A maioria tem os nomes envolvidos em processos na Justiça Federal, alguns há mais de 40 anos.
Se na região há, por exemplo, 10 lotes, o grileiro compra um de forma legal e depois contrata pistoleiros para sondar a vizinhança. Eles abordam as famílias de camponeses, ribeirinhos, indígenas ou quilombolas dizendo que querem comprar as terras.
“Quando o produtor diz que não quer vender o lote, o grileiro dá duas opções — ou vende o terreno ou vai ter problemas. E aí começa o terror, começam as mortes. As outras famílias ficam assustadas e vendem as terras por preços muito baixos para fugir sem perder tudo. Se um lote vale R$ 30 mil, ele vende por R$ 3 mil, por exemplo. Esse é o sistema”, afirma Erasmo.
Com a prática, muita gente é expulsa. Eles fogem com medo e retornam quando a poeira baixa. Isso acontece praticamente desde o início da colonização, em 1970.
Algumas vezes o grileiro ou os “prepostos” — temidos, conhecidos e até denunciados pelas populações — se apresentam como os verdadeiros proprietários das terras, portando um documento e “cedendo” ao morador o direito ao uso do terreno, impondo certas condições.
Logo segue a sistemática: o invasor derruba a floresta, vende a madeira ilegal para acumular dinheiro, planta capim e enche o terreno com gado. Depois as terras dão lugar ao cultivo de grãos, geralmente soja, arroz e milho. O lucro é total e ainda conta com a “ajuda” de cartórios e órgãos fundiários, que facilitam a transferência para os agentes invasores. As áreas públicas sem destinação específica são o alvo mais fácil.
Faroeste paraense
A relação com a prefeitura é “amena”. Como o município optou por dialogar com os colonos, até chega a sofrer represálias dos grileiros. Entretanto, com a chegada do presidente Jair Bolsonaro ao poder, os grileiros estão empoderados e não apenas agem, mas se sentem no direito e na obrigação de serem violentos contra os adversários, que tacham de “vagabundos”, “bandidos” e de pertencerem ao Movimento Sem Terra, apesar de muitos e sequer terem vinculações partidárias ou políticas.
“Eles [grileiros] são poderosos, influenciam muito. O pior é que muitos apoiam e têm vínculos pessoais com o presidente Bolsonaro. Se nos últimos anos eu já estava inseguro, agora é bem pior. Eles acham que quem luta pelo direito à terra é criminoso e vão me eliminar. Anapu é como um faroeste antigo, uma terra sem lei. Aqui manda o financeiro”, compara Erasmo.
Em um país com um governo de tom e projeto autoritário, os lugares com casos históricos de violência e perseguição aos defensores dos direitos humanos são os que mais sofrem.
Ainda no início de setembro, Erasmo foi intimado a comparecer à Delegacia Especializada em Conflitos Agrários (DECA), em Altamira.
O delegado da cidade instaurou um inquérito para investigar o ativista. “Essa é outra forma que encontraram para me amedrontar. Todos sabemos que a polícia é especialista em criar situações incriminatórias, como fizeram com outros companheiros de luta”, diz.
“Desmoralizar e assassinar, esse é o padrão”, sentencia Erasmo. “Só estou falando agora por causa de gente como a Eliane Brum, que conseguiu colocar minha voz no mundo. É só por isso, não por outra coisa. Porque quando a irmã Dorothy morreu, houve uma grande comoção mundial e quebrou muita gente aqui financeiramente. Se não fosse essa atenção, eu já estaria morto há muito tempo”.
Soluções
Como defensor dos camponeses, Erasmo diz que não tem como se isentar da situação crítica em Anapu, mas afirma que cada vez a situação fica mais difícil. “Só não quero ser mais um, mas também não quero ser um corpo estendido no chão. Quero viver”, frisa.
Graduado em gestão ambiental, ele acredita que a realidade do local pode mudar com mais esclarecimento sobre a região amazônica e incentivos econômicos sólidos para os pequenos e médios produtores.
“Dá pra consorciar a vida no campo com a produtividade natural da floresta, isso é possível. Cada local desses tem a possibilidade de uma ‘Natura’, do turismo, é muito potencial. Mas falta incentivo. E se incentiva tudo na Amazônia. Mas não incentivam a família a produzir de forma consciente e responsável com o meio ambiente”, argumenta.
“Não estou falando de pequenos projetos de incentivo. Falo a nível macro. Precisamos pensar em como essas famílias podem se manter de maneira sustentável. Não adianta você manter as árvores de pé se as pessoas que estão lutando pra que ela não seja destruída também não conseguem”, finaliza.
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Imagem em destaque: Erasmo Teófilo, ativista de Anapu. Lilo Clareto/Amazônia Latitude