Obras Vivas: uma viagem em fotos

mae leva filho pela mão em margem de rio

Por trás de toda foto há uma história. Para o antropólogo Bruno Caporrino, que assina as fotos de Obras Vivas e rende créditos aos fotografados na Amazônia, é preciso contá-la. Guiar leitores é contar um pouco da história dos que vivem e transitam sobre as águas.

É contar também a história submersa — como e porquê falha repetidamente a tentativa de impor um projeto ou uma solução à Amazônia. Nas imagens que selecionamos junto com o autor, os rostos e lugares são acompanhados de uma breve descrição.

Até chegar a estes resultados, o fotógrafo precisa negociar. Este é um ato que exige extremo respeito e que está repleto de sentido político. É preciso que essas negociações sejam claras, mesmo que tácitas. No caso de Caporrino, são extensas e estão registradas em seus cadernos.

Além dos cadernos, o fotógrafo tenta imprimir a si mesmo nesse universo, que entende ser a fonte de sentido de sua própria existência. Daí vieram a inspiração e o fôlego para as mais de dez mil fotografias que compõem o portfólio Obras Vivas.

A seguir, uma breve seleção com as histórias que permitem ao leitor experimentar alguma sensação ligada à feitura e às viagens de barco. São contadas em fotografias analógicas em 35 mm, feitas com uma Zeiss Ikon Contaflex, em preto e branco.


1 — Carpinteiro Walmir posa para fotógrafo no estaleiro do Sargento, que fica no Igarapé das Mulheres, em Macapá-AP. Na ocasião (2011), estava fazendo uma embarcação cujo nome já tinha sido decidido pelo seu dono: piolho. Seria pequena, ideal para acompanhar a embarcação principal em pescaria na foz do rio Amazonas. Bruno Caporrino/Amazônia Latitude

 


2 — Registro de precioso trabalho artesanal, feito por Livaldo, na comunidade de São Francisco do Iratapuru, que fica dentro da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Iratapuru, no Amapá. Na fotografia, o carpinteiro está cavando um batelão, embarcação de fundo chato, com pequeno calado, própria para navegação em águas rasas. Trata-se de uma técnica muito trabalhosa, pois o barco é construído com a retirada de material do miolo de um tronco maciço. 2012. Bruno Caporrino/Amazônia Latitude

 


3 — Outro ângulo do mesmo batelão (em construção) registrado na fotografia anterior. Desta vez, no entanto, a estrela da foto é Mônica, um macaco-aranha. A macaquinha, querida pelos moradores da comunidade de São Francisco do Iratapuru-AP, costumava entrar na casa das pessoas e derrubar tudo. Morreu pelas mãos de um forasteiro que estava passando um tempo na comunidade e ficou bravo com a falta de decoro do animal. Todo mundo ficou muito triste. 2012. Bruno Caporrino/Amazônia Latitude

 


4 — No destaque, Dona Nazaré pescando manjubinha em Breves-PA (2012). Esta senhora, que cria sozinha 11 netos, para o fotógrafo, é o arquétipo do que representa a urbanização da Amazônia. Quando morava no interior, tinha uma vida muito mais fácil, tirando o açaí e tudo mais que precisava para sobreviver. Na cidade, mal tem um metro de corredor ao redor da casa, que não dá nem para plantar os temperos que consome, tendo, portanto, que comprá-los, coisa que lhe entristece. Hoje, pesca para sustentar os netos, após o sumiço dos filhos: uma foi para o garimpo e outro fugiu após ser acusado de homicídio.

 


5 — Carpinteiro natural de Garupá posa junto ao barco que está construindo no estaleiro do Amiraldo, em Breves-PA (2012). As embarcações de madeira consistem no meio de vida de muitas pessoas e comunidades. Sem gabarito escrito ou planta, que não seja aquela presente em suas mentes, os carpinteiros as constroem com as mãos, como artistas. Assim, cada canoa, lancha ou barco é único desde a madeira que lhe dá origem, até a sua flutuação nas águas amazônicas. Bruno Caporrino/Amazônia Latitude

 


6 — Crianças brincam no estaleiro do China, que fica na Ilha de Santana-AP, à beira do rio Amazonas (2011). O fotógrafo conversou brevemente com as mesmas, pois logo notou desconforto dos seus responsáveis, que trabalhavam próximo ao local. Com tantos casos de abuso, chamou a atenção dos locais a presença de um homem branco falando com as meninas. Bruno Caporrino/Amazônia Latitude

 

barco em construcao
7 — No detalhe, fotografia destaca o esqueleto de uma lancha em construção. As peças curvas, chamadas de cavernames, são esculpidas a partir de uma peça reta, muitas vezes utilizando uma ferramenta chamada enxó. O carpinteiro faz a curva na peça apenas retirando material, manifestando séculos de saberes socialmente construídos. Segundo Walmir, autor da obra feita no estaleiro do Sargento, no Igarapé das Mulheres-AP, o dono ainda não havia batizado a sua lancha. 2011. Bruno Caporrino/Amazônia Latitude

 

menino barco pará
8 — De olhar expressivo e desconfiado, Rodrigo encara fotógrafo em Breves-PA (2012). A criança estava com a mãe e a irmã em uma embarcação da prefeitura que presta serviço social. Estavam há semanas aguardando a regularização dos seus documentos para conseguirem receber o Bolsa Família, programa de distribuição de renda do governo federal. Sua mãe se dizia um pouco arrependida de esperar tanto tempo para receber R$170,00.

“É claro que o dinheiro ajuda, mas, nesse tempo, já teria cuidado da roça, tirado o açaí, pescado…”, afirma. Fica claro o quão contraproducente é, para as famílias do interior, interromper suas atividades para ter acesso ao benefício. É marcante a diferença entre igualdade e equidade. A política pública é a mesma para todo mundo e, por isso, não funciona muito bem. É preciso condições diferenciadas para que todos se igualem em direitos. Bruno Caporrino/Amazônia Latitude

 

homem conserta barco amazonia
9 — Carpinteiro refaz a calafetagem no casco de uma “canoa” no Estaleiro do Sargento, Igarapé das Mulheres, em Macapá-AP (2011). O estaleiro, onde diversos carpinteiros autônomos trabalham, consertando ou fazendo embarcações do zero, fica na grande e principal porta de entrada e saída de Macapá. Efervescente porto, é ali que as embarcações aportam, depois de deixar açaí, gado, melancia, banana, farinha, pupunha cozida, etc. na Rampa do Santa Inês. Bruno Caporrino/Amazônia Latitude

 

menina em barco no igarape das mulheres macapa
10 — Família aguarda a maré no Igarapé das Mulheres, Macapá-AP, para poder retornar à comunidade Furo dos Porcos, onde moram, em Afuá-AP (2012). Na lancha que leva o nome “Deus nos ama”, menina brinca, fazendo estripulias; passa da popa à proa, com agilidade e desenvoltura. Entrariam noite a dentro no rio Amazonas, carregando diesel, gasolina, sal, velas, redes e mosquiteiros recém adquiridos. Bruno Caporrino/Amazônia Latitude

 

senhor barco amapa amazonia
11 — Seu “China” avalia o serviço a ser feito nas “obras mortas” de uma lancha em seu estaleiro, que fica em Santana-AP (2013). Conta o fotógrafo que os carpinteiros navais da Amazônia costumam classificar as embarcações em obras vivas (parte do casco que fica abaixo da linha d’água ou em contato direto com ela) e obras mortas que, ironicamente, são as estruturas que se encontram sobre o convés e onde se passa toda a vida. O carpinteiro deixa a marca de suas digitais na obra flutuante que dá vida.

O fotógrafo, por sua vez, também deixa seu rastro no topo da fotografia, simbolizando se tratar de um projeto analógico: a tarja a preta é fruto de o filme não ter avançado completamente. Bruno Caporrino/Amazônia Latitude

 

idoso breves pará barco
12 — Tímido, carpinteiro observa fotógrafo de papo com as vendedoras de dindin (chup chup, ou sacolé) no Estaleiro do Amiraldo, em Breves-PA (2012). Diferente das mulheres, que se entusiasmaram com a câmera e a possibilidade de posarem para uma fotografia, o senhor apenas comunicava com os olhos a vontade do registro. Foi o dono do estaleiro que fez o pedido por ele, que assentiu com a cabeça, ao ser interpelado pelo fotógrafo. Encabulado, largou as ferramentas que tinha na mão e aprumou-se rijo, sorrindo nervosamente. Enquanto fotometrava, Bruno fez uma brincadeira, que o relaxou e, então, tomou seu retrato. Bruno Caporrino/Amazônia Latitude

 

irma leva filho pela mão em margem de rio
13 — Irmãs se banham no rio Amazonas, próximo ao Estaleiro do China, na Ilha de Santana-AP (2012). A mais velha supervisiona o banho de sua irmãzinha, entre arraias e candirus grandes, que fazem da diversão um tanto perigosa. Ao fundo, naus são erguidas por artesãos habilidosos. Os carpinteiros navais à beira do Amazonas costumam seguir a maré e só trabalhar nas embarcações quando ela baixa. Além da calafetagem, fazem o entalhe das belíssimas peças que compõem as embarcações: quilha, braçames, cavernames, cadastrinho, roda de proa (se for um iate ou canoa), vedove, falcas, talha mar, etc. Tudo é feito à mão, entalhado à enxó e arrematado no terçado ou na plaina. Bruno Cporrino/Amazônia Latitude

vendedor de sorvete ilha de santana amapá

14 — Sorveteiro aguarda a chegada de embarcações no Porto do Grego, Ilha de Santana-AP (2013). No calor sufocante do movimentado porto, de onde zarpam embarcações para Santarém, Almeirim, Óbidos e Belém, passageiros abandonam o conforto de suas redes, no precioso lugar conquistado no convés, e vão em busca de pipoca, banana frita, mingau, sorvete, salgadinhos e refrigerantes, enquanto aguardam a partida. Conta o sorveteiro que sorvete de buriti era da casa, feito por sua esposa, e que na Baixada do Ambrósio, onde mora, a coisa estava feia. “Muita violência… uma tristeza, meu filho”.

 

reparo estaleiro sargento macapá barco
15 — O trabalho é árduo no Estaleiro do Sargento, Igarapé das Mulheres, em Macapá-AP. Na imagem, carpinteiro refaz a calafetagem de uma lancha, com estopa de algodão e zarcão (produto com ação anticorrosiva que serve na uniformização de superfície). Calafetar é vedar entre cada duas tábuas do casco de uma embarcação, de modo a evitar a entrada de água pelas frestas ou buracos.

 

senhora arraiol arquipelago bailique amapá
16 — Senhora na porta de sua casa na comunidade de Arraiol, arquipélago do Bailique-AP (2016). O arquipélago do Bailique figura exatamente no encontro de dois titãs: o rio Amazonas e oceano Atlântico. As comunidades do Bailique, organizadas na Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique, assistem esse encontro e seus redemoinhos com o respeito que se têm àquilo que é sagrado. Organizadas, praticam o extrativismo e são pioneiras no Brasil na construção de um Protocolo Comunitário, graças à atuação da OELA (Oficina Escola de Lutheria da Amazônia), do Grupo de Trabalho Amazônico e de pessoas como Roberta Peixoto Ramos e o saudoso Rubens Gomes, Rubão. O açaí manejado das comunidades do Bailique foi o primeiro a receber a certificação FSC.

 

barco estaleiro macapá
17 — Na imagem, são exibidos cavernames de embarcação no Estaleiro do sargento, Igarapé das Mulheres, em Macapá-AP (2012). Ao redor dos estaleiros toda a vida se estrutura: filhos, filhas, netas e netos brincam, empinam pipa, se banham e ajudam seus pais e avós, aprendendo desde cedo o que são enxós, falcas, plainas e zarcão.

 

crianças barcos fotografia santana amapá
18 — Meninos observam a maré e o mau tempo que se avizinha da proa de um barco em Santana-AP (2011), enquanto aguardam seus pais fazerem compras no comércio Metralhadora. O porto da ilha é um fervilhante ir e vir de lanchas, barcos, iates e catraios (botes pequenos, tripulados por uma só pessoa). No entorno, navios estão a postos para levar a matéria-prima para fabricação de celulose, retirada de uma floresta de eucaliptos, ou o caulim, após ter devorado a terra, sem deixar qualquer imposto na região. Apenas destruição e poucos e precarizados empregos.

Imagem em destaque é o item xx desta galeria. Todas as fotos fazem parte do portfólio Obras Vivas e foram gentilmente cedidas por Bruno Caporrino para esta publicação. Veja outras galerias clicando aqui.

 

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