José Bessa: Ciência e vivência na Amazônia

Próximo ao lançamento do livro 'Utopias Amazônicas', do qual é colaborador, o professor fala sobre pesquisas, vivências e sua mais nova obra

José Bessa
Foto: Marcos Colón
José Bessa

Foto: Marcos Colón

De uma maneira cativante, o amazonense, doutor em Literatura Comparada e coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), José Ribamar Bessa Freire nos conta sobre suas origens e caminhada em busca de conhecimento.

Bessa relembra com orgulho de seu bairro, Aparecida, em Manaus (AM), e dos tempos de escola, onde era praticamente o único homem numa turma de mais de 60 mulheres. “Fiz [a modalidade] Normal, no Instituto de Educação do Amazonas, numa época que só mulheres estudavam lá. E foi um curso muito importante para mim, porque me deu uma noção do que é ação dentro da sala de aula, da necessidade dos recursos didáticos e etc.”

Saindo da região Norte para o Sudeste, Bessa cursou Jornalismo e Direito, ambos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele acabou trancando Direito, devido ao exílio da ditadura, que foi marcado por oito anos de residência no Chile, no Peru e na França.

Com uma risada fraca, José relata sua volta para o Brasil, que foi acompanhada de uma prisão de mais de 20 dias. Logo depois, ele fez um concurso para a Federal do Amazonas (UFAM) e lecionou de 1977 a 1980 no curso de Comunicação.

Indo para a França para fazer um doutorado que não concluiu, e ficando de 1980 a 1983 por lá, o professor voltou para a UFAM já no curso de História. Contando de forma alegre, após mais de 30 e poucos anos, defendeu ali sua tese sobre a História das Línguas na Amazônia.

Trabalhando há mais de 50 anos rodando o Brasil ministrando cursos de formação de professores indígenas, o educador fala também sobre seu blog e viés de criação. “O Taquiprati, que o pessoal que não é da Amazônia acha que é uma coisa carinhosa, era uma coluna que pegava pesado em cima da corrupção e da ‘burrice’ no poder. Era, sobretudo, uma crítica permanente ao poder, porque, como disse Millôr Fernandes, ‘o jornalismo é a crítica ao poder. O resto é uma loja de secos e molhados, uma taberna’”, opina.

Amazônia Latitude: Em que momento, durante sua trajetória acadêmica, você percebeu que falarmos sobre nossa história e a origem dela era necessário?

José Bessa: Sempre fui interessado na Amazônia. Quando escrevi minha tese de doutorado em 1972, na França, com o professor Ruggero Romano, o tema era “a origem e a formação do proletariado agrícola na Amazônia”. Aí quando eu voltei do exílio, sem a defesa de tese ainda, uma antiga professora de História, que também foi exilada, me convidou para coordenar, na região do Amazonas, o programa de levantamento de fontes para a história da agricultura do Norte e Nordeste. E naquela época, a história tinha um peso enorme no curso de Jornalismo.

Pesquisando nos arquivos, descobri que o tema da minha tese não existia. Eu estava lendo a literatura marxista na França, que trabalhava com a noção de proletariado agrícola. Aí voltei para o Amazonas sem ter muita noção do que era o seringal e como estava organizado.

O conceito de proletariado agrícola implica na existência de salários. E no seringal não existia trabalho assalariado. No momento que comecei a pesquisar, vi a quantidade da presença indígena nas documentações dos arquivos do Amazonas do século XIX, que eu não sabia que existia.

Nessa mesma época, passei a editar o Jornal Porantim, que era um jornal do Conselho Indigenista Missionário, dedicado exclusivamente à questão indígena. E fui aprendendo mais sobre essas questões pelo que eu lia e pelo contato direto que passei a ter com esses indígenas.

Então passei a pesquisar nos arquivos europeus e encontrar dados sobre línguas. E acabei mudando o tema de minha tese para “a história das línguas da Amazônia”, porque isso me interessou de perto. A língua é como Deus para quem tem fé, a gente sabe que ele existe, mas nunca vê.

Não sei qual foi a formação que você recebeu em sala de aula, mas eu fiz todo meu curso primário, secundário e universitário sem nunca ter ouvido falar absolutamente nada sobre as línguas indígenas. Parecia que os portugueses chegaram aqui e todo mundo começou a falar português, mas não foi bem assim. Descobri, por exemplo, que até a Cabanagem, a maioria da população da Amazônia falava o nheengatu, a língua geral. Isso nos foi tirado.

Também descobri que, em 1860, o jornalista e etnólogo Gonçalves Dias foi comissionado por Dom Pedro para o Amazonas, para recolher objetos de arte indígena para uma exposição que o Dom Pedro queria organizar. Aí o presidente da província do Amazonas, Manuel Carneiro da Cunha, o contratou para fazer uma avaliação das escolas na região. E ele produziu dois relatórios, chegando à seguinte conclusão: a escola no Amazonas não funcionava porque o professor utilizava uma língua que não dominava muito bem e que os alunos não entendiam, que é o português. Isso me assustou.

Quando você fala de linguagem na Amazônia, nos remete à voz de um povo que é silenciado. Como é para você participar do lançamento do livro Utopias Amazônicas, num evento como o Sialat, que tem o conhecimento como o centro do debate?

Meu artigo para o livro é uma espécie de apresentação sobre o mesmo. O Utopias foi organizado pelo Marcos Colón e pelo Lúcio Flávio Pinto, que são duas figuras muito importantes para a Amazônia. Eu acompanho o Lúcio desde sempre, com uma admiração total por sua coragem, lucidez e integridade. E esse livro também vai ser uma forma de homenagem ao Lúcio. Nessa apresentação, para contextualizar o livro, cito um caso da minha experiência pessoal.

Quando estava na França, pesquisando, eu tinha pouquíssima experiência em termos de trabalhos acadêmicos, por ser vítima de um currículo escolar deficitário. Então para sanar minha ignorância, passei a ler a revista do Journal de la Société des Américanistes, que até hoje publica artigos de pesquisadores de diferentes partes do mundo e que vinha estudando o continente americano, incluindo a Amazônia.

Assim, na escola eu aprendi: “Pinheiro me dá uma pinha, pinha me dá um pinhão, menina me dá um beijo, que eu te dou meu coração”. E nunca soube o que era um pinheiro. Então digamos que o material didático era todo centrado no Sul. Acho que isso é importante para um amazonense, mas não deve ser mostrado como se fosse a única cultura no Brasil. Como eu queria trazer elementos da Amazônia para o currículo, passei a ler. E ali, passei um pente fino na revista, peguei o primeiro número, de 1895, e saí lendo. Passei quase um ano lendo.

No contexto histórico, os fatos e dados vão se modificando. E percebi que os artigos de arqueologia, linguística e história que fiz fichamento naquela época foram tendo novos significados. Então 20 anos depois, na mesma revista, vi outro artigo dizendo que aquele que eu li precisava ser atualizado. Me sentia um pouco inseguro: “poxa, eu pensava que sabia, agora o cara está dizendo que não é isso”. E 40 anos depois, [saiu] um novo artigo dizendo que o artigo que criticava o primeiro estava errado, o terceiro que criticava o segundo estava desatualizado.

Levei um certo tempo para entender que a cada 20 anos a visão da ciência sobre a Amazônia era alterada, negada, criticada, enriquecida, atualizada. E por que? Porque, na verdade, a ciência não é um corpo de conhecimentos definitivos e absolutos. A ciência é uma construção. E a história social da ciência mostra isso. Mesmo se eu fosse um gênio, daqui a 20, 30 anos, meu trabalho iria ser questionado.

O Utopias Amazônicas, que vem com 18 autores, têm garantido sua qualidade por, pelo menos, um par de décadas. No entanto, ele também vai ter um prazo de validade para ser contestado. Afinal, o conhecimento científico tem prazo de validade, porque ele é verificável. Se é verificável, é falível, o que torna a ciência permanentemente inacabada. E temos no livro pesquisadores vinculados a várias instituições de diferentes países. Peru, Venezuela, Equador, Brasil, que estão investigando e discutindo a região amazônica e trazendo questões importantíssimas.

O livro aborda desmatamento, incêndios florestais, barragem, catástrofe climática, estradas, garimpo ilegal, envenenamento dos rios, invasão de territórios indígenas, domínio do crime organizado sob extensas áreas da região e as demais temáticas que se tornaram urgentes em nosso território. Tudo isso por ângulos diferentes, por teorias diferentes. É isso que traz riqueza ao livro, essa diversidade.

O Utopias Amazônicas não é só uma reflexão sobre a situação atual, ele discute propostas para impedir essas tragédias.

Que impacto você espera que o Utopias Amazônicas cause?

Espero que esse livro possa ser discutido, possa circular em bibliotecas de nossas universidades e em diferentes programas de ensino de nossas universidades. Que seja discutido por professores e alunos. Que possa contribuir para novas pesquisas. Que possa despertar o interesse por novas pesquisas.

Também espero que o livro consiga chamar a atenção para a importância desses saberes indígenas, que, em geral, foram discriminados, porque são “povos atrasados”, povos que não têm escrita. Era o que se dizia quando, na verdade, os povos indígenas não eram gente de escrita, eram independentes da escrita. Não precisavam da escrita para reproduzir seus saberes e suas culturas.

 

O livro Utopias Amazônicas terá um pré-lançamento no dia 24 de abril, às 16 horas, no Centro de Eventos Benedito Nunes, da UFPA.

 

Produção: Yris Soares
Edição: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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