Pico da Neblina: de Baker Street a Maturacá

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Jorge Bodanzky fotografa Ortwin Brukner, que financiou a expedição ao Pico da Neblina. Reprodução/David Pennington/Amazônia Latitude

[RESUMO] Esta é a quarta edição da coluna Roteiros da Amazônia, parceria com o cineasta Jorge Bodanzky. Dessa vez, o destino é o Pico da Neblina, com a expedição financiada por Ortwin Brukner para refazer os passos do professor Challenger, personagem de ‘O Mundo Perdido’.

Maturacá, no Amazonas, é um dos últimos lugares povoados antes do maciço da Neblina, já na fronteira entre Brasil e Venezuela. Em linha reta, fica a cerca de 8.300 quilômetros da rua Baker Street, em Londres, capital da Inglaterra.

Quem uniu o Pico da Neblina e a residência do detetive fictício Sherlock Holmes foi o criador do personagem, Arthur Conan Doyle. No conto ‘O Mundo Perdido’, do escritor que nunca pisou na Amazônia, o professor Challenger vai à floresta para provar a existência de dinossauros, incluindo um pterodátilo que acaba por escapar, ao fim da história, pelos céus da capital inglesa.

Sir Arthur teve ajuda, com psicografia, do professor Challenger para conceber a história e os detalhes geográficos que foram reunidos na obra de 1910. Foi o que sua filha, Lady Jane Doyle, contou ao jornalista alemão Ortwin Bruckner Rogge, que decidiu montar uma expedição para ir ao local.

O repórter concluiu, de acordo com as descrições e coordenadas a partir de Manaus, que o local da aventura de Challenger era o Pico da Neblina, que de fato guarda registros da era mesozóica. Para montar a equipe, Ortwin procurou Jorge Bodanzky. O ano era 1987.

Lady Jane Doyle e Ortwin Brukner em Londres. Os detalhes da aventura do professor Challenger levariam o jornalista a organizar a expedição ao Pico da Neblina. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude

Preparativos para a subida

Maturacá tinha forte presença do Exército — ainda tem — por ser região de fronteira com Colômbia e Venezuela. Além disso, fica dentro da Terra Indígena Yanomami. O ano era 1987. Apesar disso, o cineasta não lembra de sequer ter conversado com militares.

A autorização que levavam e garantiu o trânsito fora concedida por padres salesianos que atuavam na região, conseguida por ação da esposa de David Pennington, técnico de som que organizou a logística da expedição e ajudaria nas gravações.

Além disso, o documento facilitou a negociação com o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), que exigiu que todos tomassem as vacinas necessárias para entrar na região.

Autorização do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal para que David Pennington e mais seis pessoas visitassem o Parque Nacional do Pico da Neblina, em 1987. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude

A equipe era composta por sete pessoas: Jorge Bodanzky, David Pennington, os técnicos Gustavo Martinelli e Sil Sá, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, o cinegrafista francês Serge Guitton; e os alemães Ortwin e Hans Rogge — este último esteve com Amyr Klink na África, de onde o velejador partiu para cruzar o atlântico a remo em 1984.

Já habituado a trabalhar na floresta, Jorge achou cômica a chegada dos alemães, completamente aparelhados para um safari: roupas de explorador, binóculos, redes de nylon e um barco inflável com motor, além de comida e água para muitos dias de viagem.

Para chegar a Maturacá, era necessário subir o Rio Negro por 15 dias, até São Gabriel da Cachoeira. A viagem foi bem aproveitada pelos alemães, que fotografavam diversos locais, além das paradas, conversas e das caronas. A partir dali, parte da carga foi sendo descartada.

Por fim, tudo foi acomodado num caminhão para seguir até a base salesiana, incluindo espingardas de caça como presente para os indígenas.

Em Maturacá, o grupo seria auxiliado pelo Padre Carlos, que tinha bom trânsito e falava a língua dos indígenas, e indicou, com a permissão do chefe Yanomami, três jovens como guias.

“O padre parecia completamente enlouquecido. De origem italiana, falava muito bem yanomami, conversava com os índios e nos contava histórias absurdas. Muito falastrão e engraçado”, lembra o cineasta.

Estão chegando os garimpeiros

Com a ajuda dos guias yanomami, a equipe multilinguística partiu em duas canoas pelo Rio Cauaburi.

“E engraçado que, enquanto subíamos o rio, desceu uma canoa enorme, o pessoal falou ‘olha, são os garimpeiros, os garimpeiros estão chegando’, já naquela época”, lembra Bodanzky.

Por ali também circulavam guerrilheiros colombianos do M-19, traficantes de cocaína e mineradoras, fazendo da região um local em constante tensão. A partir de uma localidade no Cabuari, era preciso seguir a pé para iniciar a subida. Ou era isso que eles achavam.

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Um grupo, muitos países: a expedição contava com um brasileiro, três yanomami, um neto de ingleses, dois alemães e um francês. E todos se entendiam. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude

Para atingir o platô da Neblina, é preciso caminhar por um constante sobe-e-desce de morros. Parte do equipamento foi enterrada, para que a viagem, que exigia muito esforço pela mata fechada, pudesse prosseguir, sob a bruma de uma floresta fechada e gotejante. Até o motor do barco foi escondido.

“A vegetação, que muda à medida que vamos caminhando, a presença da chuva constante e do nevoeiro permitem apreciar uma luz muito bonita. Em termos paisagísticos, é uma coisa única”, diz um trecho de artigo publicado por Jorge Bodanzky na Folha de São Paulo, em 1987.

Foram seis dias de caminhada até a base do platô. Quanto mais próximo do maciço, mais chuva, neblina e umidade. O Pico da Neblina é sagrado para os Yanomami, ao qual deram o nome de Pei Mac e prestam respeito mantendo distância.

A conta-gotas

“E o que aconteceu foi que os alemães foram se despindo, tirando camisa, chapéu, bússolas e todas essas bobagens que o dono da loja os convenceu a comprar”, diz Bodanzky. “A gente foi andando, foi até divertido, parava bastante para comer, beber água, se coçar e tentar secar roupa e câmeras em alguma clareira”, lembra.

Cada vez mais difícil, o ponto final foi a cerca de mil metros de altitude, no início do platô. Até ali, os equipamentos foram se deteriorando. Filmes inchados, metal oxidado e provisões escondidas no mato para garantir a volta.

As únicas câmeras que resistiam eram as duas câmeras Vídeo-8, que Bodanzky e Pennington carregavam com muito cuidado. Ortwin, grande entusiasta e financiador da expedição, desistiu no quarto dia. Ficou com um índio em um acampamento improvisado.

Guitton, o câmera francês, se perdeu em dado momento. Em círculos, os índios conseguiram achá-lo e levá-lo de volta ao grupo, mas a situação ficava cada vez mais difícil.

Em determinado momento, o grupo viu algumas botas no chão, que os indígenas identificaram como restos de uma expedição militar que havia chegado até ali e voltado. Foi a última de muitas gotas d’água que caíam das árvores amazônicas.

Rede não se empresta

A volta foi tão extenuante quanto a ida. De pouca altura, os Yanomami abriam a trilha com facões muito abaixo da estatura média dos europeus da equipe, dificultando a caminhada com o equipamento restante.

Após encontrarem Ortwin, feliz e deitado numa rede, enquanto seu companheiro índio pescava o almoço, o grupo calculava mais um pernoite até a chegada em Maturacá.

Os alemães, querendo ser muito agradáveis com os Yanomami que acompanharam a viagem, resolveram presenteá-los com suas redes. Foram prontamente alertados por Bodanzky.

“Os índios pegaram as redes e sumiram. Havia mais um pernoite, numa aldeia abandonada, e havia umas canoas que eles usavam para fazer farinha, eles dormiram nessas canoas”, lembra o diretor aos risos. “Os alemães ficaram tão fedidos que ninguém conseguia chegar perto”.

De volta a Maturacá, os viajantes conseguiram recuperar os pertences escondidos na mata. Descansaram, se alimentaram e passaram mais tempo com o Padre Carlos, quando assistiram a um estranho jogo em que ele mastigava tabaco da boca de um amigo yanomami.

A trupe conseguiu carona em um avião da Força Aérea Brasileira, mas a bússola quebrou e a aeronave voltou ao solo em poucos minutos. Dois dias depois, a viagem deu certo em outro avião e os sete pousaram em Manaus.

Ainda na trilha de Conan Doyle

Finda a expedição, os alemães precisavam de um desfecho para sua história, que, afinal, não chegou ao Pico da Neblina. Os botânicos Martinelli e Sá sugeriram que a pedra da Gávea, no Rio, seria o cenário perfeito para simular uma chegada ao destino de ‘O Mundo Perdido’. Dito e feito.

O diretor perdeu o contato com Ortwin, frustrado ao tentar seguir os passos do fictício professor Challenger na Amazônia. Martinelli — hoje pesquisador no Jardim Botânico do Rio — e Sá conseguiram as amostras que buscavam. E a ideia ainda permanece no horizonte de Bodanzky.

“Estou desenvolvendo com um produtor e um roteirista um projeto grande, voltar a fazer essa expedição. O Instituto Socioambiental (ISA) organizou com os Yanomami um projeto de ecoturismo. E uma das facetas desse projeto seria o Pico da Neblina.”

O cineasta quer acompanhar essa trilha e recriar a expedição como se integrasse um grupo de turistas, projeto suspenso por causa da pandemia de Covid-19.

“Na minha cabeça eu queria fazer um filme de ficção em cima [da história]. A ideia seria terminar em Londres, como a do Conan Doyle, em que ele entra na Sociedade Geográfica e, com o pterodátilo, prova que chegou ao mundo dos dinossauros”.

Assim, para o sucesso do projeto, é vital encontrar o dinossauro.

Roteiros da Amazônia é uma parceria entre o cineasta Jorge Bodanzky e a Amazônia Latitude. Confira todas as edições aqui. Jorge Bodanzky fotografa Ortwin Brukner, financiador da expedição ao Pico da Neblina. Reprodução/David Pennington/Amazônia Latitude

 

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