‘Lá era bom’. Espaço e agentes no Igarapé do Quarenta, em Manaus

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[RESUMO] Autora discute aspectos do espaço e como este é percebido pelos que vivem nele. O artigo trata da região do Igarapé do Quarenta, em Manaus. Além da poluição, que atinge esses cursos d’água, outros problemas e reflexões são revelados nas entrevistas.

Manaus, capital do Amazonas, está situada na microrregião chamada Médio Amazonas, na margem esquerda do rio Negro. O clima é tropical úmido, com chuvas abundantes. Seu fuso horário equivale a uma hora de atraso em relação ao horário oficial de Brasília.

A paisagem é caracterizada pela presença marcante de igarapés de pequeno curso d’água que cortam a cidade. As formas topográficas da região são caracterizadas por baixo planalto, com uma amplitude altimétrica que varia entre 20 a 30 metros acima do nível médio do rio Negro.

José Aldemir de Oliveira disse, em “Cidade de Manaus: visões interdisciplinares”, de 2003, que “Manaus revela, de um lado, territórios pretéritos que se caracterizam pelapredominância de movimentos lentos a serviço de atividades tradicionais e, de outro,territórios novos que comportam movimentos rápidos com atividades fluidas impostas pela modernização”.

Seus igarapés apresentavam uma profundidade de 7 a 12 metros de barrancas laterais com vales que isolavam os blocos urbanos da cidade, demonstrando o vigor dos entalhes.

O declínio das águas durante a estiagem transformava os igarapés em modestos ribeirões, mal conservavam sempre o nível d’água com profundidade que possibilitava a circulação de toda a sorte de pequenas embarcações, numa extensão aproximada de 2 quilômetros, a partir da barra do rio Negro. Tratava-se de um tipo especial de vias internas de água doce.

Historicamente, Manaus recebeu grandes levas de migrantes nordestinos e brasileiros de outras regiões, bem como imigrantes ingleses, franceses, judeus, gregos, sírio libaneses, portugueses, italianos e espanhóis, um crescimento demográfico que obrigou a cidade a passar por mudanças significativas.

De acordo com Maria Luiza Ugarte Pinheiro, em “A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no Porto de Manaus – 1899-1925, de 2000, “no período de efervescência em Manaus, chegavam grandes contingentes de população pobre à procura de trabalho. O pouco dinheiro direcionava-os para hospedagem em em hotéis de terceira categoria,para onde eram ‘arrastados’ pelos rebocadores”.

Os nordestinos tiveram suas razões para sair de suas cidades. Um dos fatores diz respeito à grande seca que assolava o Nordeste na segunda metade do século XIX. Um outro fator está associado à ilusão do enriquecimento rápido na região amazônica, em função das atividades de exploração do látex da seringueira.

Benchimol manteve contato próximo durante quase dois anos com os cearenses que chegavam a Manaus, no período que vai de 1942 a 1944, possibilitando a coleta de centenas de entrevistas. Isto lhe permitiu documentar histórias, flagelos, modos de vida e como se sentiam os migrantes na chegada à região.

As palavras, a força de expressão, o rico linguajar sertanejo, o passado de suas vidas, as esperanças e as “frustrações de vida constituíram-se em critérios utilizados para classificar as mais diferentes categorias de tipos humanos e revelar diferentes estados de alma, sentimentos de revolta, desespero, mágoa, afeição, sofrimento e arrependimento, mas também, fé, esperança, coragem, fascínio e redenção”, como diz no livro.

Elenca setenta e sete perfis e tipos humanos daqueles personagens-migrantes para compor uma antologia social, cultural e psicológica desses retirantes.

Mudanças e mudanças

Com a implantação da Zona Franca, em 1967, a cidade cresceu vertiginosamente. Atraiu milhares de migrantes que ocuparam de forma desordenada a periferia da cidade. Sydney da Silva, em “Migrantes em contextos urbanos: uma abordagem interdisciplinar”, de 2010, considera que:

“Com a criação da ZF, Manaus experimentou uma nova fase de crescimento demográfico, atraindo particularmente migrantes do interior do Amazonas, de outros Estados das regiões Norte e Nordeste”

Isso possibilitou o aumento crescente e desordenado do número de habitantes na cidade. Para tanto, o IBGE (2010) aponta o número de 1.802.525 habitantes na cidade.

Maria Luiza Pinheiro lembra que “boa parte desses migrantes acabava a meio caminho, engrossando as fileiras de elementos pauperizados que vagavam sem rumo pelas cidades do caucho, imprimindo-lhes sua marca, fazendo com que Manaus fosse perdendo um pouco de sua fisionomia tapuia”.

A capital amazonense passou a sentir os diferentes e crescentes impactos dessa ocupação irracional. Novos bairros foram surgindo sem nenhuma infraestrutura de saneamento básico, sem a menor qualidade de vida que seja condizente com a condição humana.

Devido à inadequada interferência humana nesses lugares, surgem problemas como a alteração nas águas dos igarapés, causada pelo acúmulo constante de lixo, poluindo-as e tornando-as imprestáveis para qualquer uso. O verde é subtraído dessas áreas e animais silvestres são extintos, tanto pela perda de seu habitat natural, como pelas queimadas.

Nas partes da cidade atingidas por essas ocupações, as áreas desmatadas modificam bruscamente o ambiente natural e ainda provocam alterações climáticas. Surgem construções de barracos, casebres e outras improvisações de moradia (palafitas) com alto risco de desabamento devido à construção precária, sem nenhuma segurança aos moradores.

A grande maioria das pessoas migra para outro lugar sempre em busca de melhores condições de vida. Essa população específica vinda não só do interior do Estado do Amazonas, mas também de outros Estados vão formando na cidade uma espécie de aglomerado humano em torno de uma área, que geralmente são as calhas de igarapés.

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Enchente levou lixo ao igarapé no bairro da Matinha, em Manaus. 2019. Edmar Barros/Amazônia Latitude

A vida no ritmo da água

O termo igarapé vem do Tupi-guarani e significa curso d’água, braços estreitos de rios ou canais existentes em grande número na bacia da Amazônia. Os rios, como já disse Leandro Tocantins comandam a vida na região; não só são seu símbolo
maior, como também possuem uma função social expressiva na vida dos habitantes locais, com suas leis de enchente e vazante das águas.

O rio está instituído no imaginário social como um bem. Como no ensaio de Gaston Bachelard, de 1997, “se o sentimento pela natureza é tão duradouro em certas almas é porque, em sua forma original ele está na origem de todos os sentimentos. É o sentimento filial. Todas as formas de amor recebem um componente do amor por uma mãe”.

Morar às margens do igarapé é culturalmente significativo porque o regime das águas está instituído na memória daquelas pessoas. Os rios têm cânones sociais: não só é o lubrificante do organismo, como rege as relações sociais.

Vale mais um trecho de Bachelard, de “A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria”:

“a água leva-nos. A água embala-nos. A água adormece-nos. A água devolve-nos a nossa mãe. […]. É ao pé da água, é sobre a água que se aprende a vagar sobre as nuvens, a nadar no céu. […]. A água convida-nos à uma viagem imaginária”

Os moradores das áreas de igarapés ficam perto da água porque eles lembram dos seus locais de origem. O rio está muito ligado às suas vidas, imbricado na tríade natureza-sociedade-cultura. Destaque para Leandro Tocantins, em “O rio comanda a vida”, de 1968:

“O homem e o rio são os dois mais ativos agentes da Geografia humana da Amazônia. O rio enchendo a vida do homem de motivações psicológicas, o rio imprimindo à sociedade rumos e tendências, criando tipos característicos na vida regional. […]. Os rios asseguram a presença humana, embelezam a paisagem, fazem girar a civilização – comandam a vida no anfiteatro amazônico”

O rio é uma espécie de continuação do viver dessas pessoas na área ribeirinha. É por isso que, quando o Poder Público retira as populações das áreas de igarapés, algumas acabam voltando, mesmo que seja para viver em péssimas condições, porque querem ficar perto do rio, perto da água.

Com isso, a cidade vai engendrando problemas do ponto de vista ambiental, urbanístico e social, não só porque os barracos e as palafitas enfeiam a cidade, mas também porque são geradores de doenças. Degradantes, comprometem a qualidade de vida dessas pessoas e o meio ambiente.

Com uma população alcançando o patamar de dois milhões de habitantes, Manaus chega à posição de sétima cidade mais populosa do Brasil, depois de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Brasília, Fortaleza e Belo Horizonte. Segundo dados do IBGE de 2010, de 1.802,525 habitantes, 50,4% são homens e 49,6%, mulheres; 99,36% vivem na área urbana e 0,64%, na área rural. Seu crescimento populacional é 10% superior à média das capitais brasileiras.

A maior parte da população está nas regiões norte e leste da cidade, sendo a Cidade Nova o bairro mais populoso, com mais de 300 mil moradores. O rápido crescimento populacional de Manaus não foi acompanhado pela infraestrutura necessária, nem por controle do uso e da ocupação do solo.

A ausência de políticas de moradia urbana acessíveis, principalmente para as populações de baixa renda, provocou a aparição de assentamentos informais com precariedade e sem titularidade do solo sobre áreas ambientalmente vulneráveis, como é o caso das margens dos igarapés.

Água e espaço

A cidade de Manaus é entrecortada por mais de 130 igarapés cuja extensão supera 200 km distribuídos em 13 bacias, abrigando cerca de 800 mil habitantes. Os principais são os igarapés de São Raimundo e Quarenta. A região deste último é a mais densamente povoada.

Cerca de 580.000 habitantes ocupam a área mais antiga e central da cidade. A área da Bacia Hidrográfica de Educandos é entrecortada por uma vasta rede de drenagem. Os canais dos principais igarapés, como o Quarenta, Mestre Chico, Bittencourt, Manaus e Cachoeirinha drenam para o rio Negro e esses canais, além de alguns outros, complementam o quadro hidrográfico local.

Importante chamar a atenção para o fato de que a expansão da cidade de Manaus, a partir da segunda metade do século XIX, impulsionada pela economia da borracha, foi um dos fatores condicionantes da extinção de muitos igarapés em Manaus, considerados um obstáculo ao avanço urbano.

Nesta, que foi conhecida como Belle Èpoque, iniciaram as primeiras intervenções nos igarapés.

Com a instalação da Zona Franca de Manaus, na segunda metade do século XX, os igarapés novamente representaram um obstáculo, não mais por impor limites físicos à cidade, mas por abrigar nas suas margens os migrantes que vieram para o trabalho na indústria.

“Essa cidade continua atraindo migrantes internos, em sua maioria, do interior do próprio estado para vários setores da sua economia, porém, com menor intensidade que em décadas anteriores e, cada vez menos, para a atividade industrial”, diz o livro de Sidney Silva.

Na pesquisa com os moradores do Igarapé do Quarenta, apesar da maioria ser da capital, aparecem locais diversos de origem, como interior do Amazonas como Carauari, Parintins, Maués, Presidente Figueiredo e Autazes. O fato instigante é que há jovens, adultos e idosos, o que mostra ser o movimento migratório intenso e pujante ainda nos dias atuais.

Esse êxodo migratório se justifica, em parte, pelo fato de essas pessoas buscarem melhores condições de vida na capital. A Zona Franca é a principal atrativo do deslocamento para Manaus. No entanto, esses migrantes acabam engrossando os bolsões de pobreza às margens dos igarapés.

Os igarapés sempre foram considerados áreas sem valor para a especulação imobiliária, mas não para os migrantes que encontraram neles o lugar ‘ideal’ para suas moradias. Essa situação aprofundou ainda mais a degradação de seus recursos hídricos.

A ocupação destas zonas de alta vulnerabilidade gera externalidades negativas para a área central (inundação, maus odores, mosquitos e roedores), resultando na deterioração e abandono das áreas vizinhas, com a consequente perda de ativos públicos e de valor imobiliário, promovendo a degradação das edificações e dos espaços públicos nas proximidades.

A retirada da cobertura vegetal nativa para a ocupação de terras em Manaus aumenta o poder erosivo das águas pluviais nos terrenos, devido à perda da proteção natural do solo. Ela também permite a rápida lavagem do material superficial e seu consequente carreamento para o fundo do vale, causando, muitas vezes, o assoreamento dos canais de drenagem.

As cidades constituem-se no palco das relações existentes entre seus moradores e suas vivências. Homens e mulheres precisam cuidar do ambiente onde se inserem, pois isso contribuirá para a construção de uma cidade saudável e com a participação de todos.

O espaço é uma dimensão universal, enquanto o lugar comporta uma dimensão mais particularizada. Em “Espaços de esperança”, de 2004, David Harvey diz que “o novo urbanismo deseja pensar as regiões como um todo e buscar a realização de um ideal bem mais holístico e orgânico com respeito ao caráter que podem ter cidades e regiões”.

Para ele, esse urbanismo está relacionado ao fato de se tentar transformar grandes cidades em aldeias urbanas, em contraposição à imagem que se tem da cidade enquanto “desordem social, colapso moral e mal irredimido”.

“A cidade é também lugar de ansiedade e de anomia. É o lugar do estranho anônimo, da subclasse […], espaço de uma incompreensível alteridade […], o terreno da poluição e de terríveis corrupções, o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados, o que torna ‘cidade’ e ‘cidadão’ politicamente opostos na imaginação pública na medida mesma de sua ligação etimológica”.

“A água é encanada, mas vai embora todo dia. A partir das 11 horas da manhã, ela vai embora. Só chega quatro horas da tarde, cinco horas”, disse JDSP (nome protegido), 38 anos, sobre a precariedade dos serviços prestados à comunidade.

“Bem, o maior problema é a água, né? A gente sofre muito pela água, porque, olha, num caso desse, numa quentura dessa, você quer tomar um banho… aí, não tem água. Só tem água parada e essa água parada causa doença. Então, é difícil. Esse é o problema”, complementa.

Henri Lefebvre também fala, em “O direito à cidade”, de 2001, que este se não refere apenas à natureza, mas à vida urbana renovada e transformada.

O espaço urbano dentro da perspectiva do direito à cidade é muito mais amplo do que somente morar na cidade. Deve estar relacionado com todos os outros direitos inerentes às necessidades do ser humano. José Aldemir de Oliveira também se debruça sobre este ponto: “compreender o espaço urbano significa identificar não apenas os mecanismos que colocam em funcionamento o sistema social, mas também as várias dimensões por meio das quais o sistema social se espacializa na cidade.”.

No Quarenta

A microbacia do Igarapé do Quarenta comporta uma área com aproximadamente 38 km de extensão, uma largura média de 6 metros e profundidade média de 50 cm. É a principal formadora da bacia hidrográfica de Educandos, que possui uma área total aproximada de 4.320 hectares.

Seu leito corre de nordeste para sudoeste e se encontra com os igarapés da Cachoeirinha e do Mestre Chico, que juntos formam Educandos, que deságua no rio Negro.

Esta bacia hidrográfica, que possui uma área de 44.87 km2, da foz até a Av. Presidente Castelo Branco, nas proximidades da Av. 7 de Setembro, recebe a denominação de Igarapé de Educandos e, a partir desse limite até a nascente no bairro do Zumbi, a nordeste da cidade, é denominada de Igarapé do Quarenta.

Percebemos nas entrevistas que o tempo em que as pessoas moram no local varia de menos de cinco a mais de 30. Assim, compreende-se que a migração é um movimento incessante. Nosso campo de pesquisa abrange duas áreas do Igarapé do Quarenta, no trecho situado entre a Ponte Juscelino Kubitschek e a Avenida Maués.

Do lado direito, o Parque Residencial Professor José Jefferson Carpinteiro Péres. Do lado esquerdo, o Parque Residencial Professor Gilberto Mestrinho. O Parque Professor José Jefferson está no bairro Morro da Liberdade, enquanto o Gilberto Mestrinho fica na Cachoeirinha, ambos bairros da Zona Sul da cidade.

As áreas pesquisadas contém a seguinte infraestrutura: área verde, bancos, rampas e escadas de concreto, estacionamentos, área de ginástica, praças, área de recreação infantil, sistema viário, rede de distribuição de água potável, rede de distribuição elétrica de alta e baixa tensão, sistema de esgotamento sanitário e estação elevatória de esgoto.

Após o processo de revitalização do Igarapé do Quarenta nessas áreas, cada prédio habitacional possui um bloco com seis, 12 ou 24 residências. O padrão de habitação só pode chegar até três pavimentos em função da densidade requerida e da capacidade de carga do solo em que a mesma foi assentada.

O padrão de construção corresponde ao de alvenaria tradicional. As moradias são construídas com material cerâmico adquiridos no local, obedecendo às normas no tocante ao número e ao tamanho dos cômodos, a saber: dois quartos, uma sala de estar, uma cozinha, um banheiro e uma área de serviço, a qual dispõe de uma área útil de 54m².

Um dado interessante que deve ser registrado é o fato de o estado do Amazonas, com o financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ter implementado uma política urbanística de revitalização dos igarapés conhecida como o Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (PROSAMIM).

O PROSAMIM reúne um conjunto de intervenções do governo do Amazonas de revitalização ambiental e urbana, que possui uma atuação direta nos igarapés da cidade.

O programa é voltado para a resolução de problemas socioambientais na cidade de Manaus, com foco na urbanização e consequente retirada dos moradores das áreas urbanas degradadas do entorno dos igarapés.

O governo deu início às obras em março de 2006 e já concluiu a primeira fase de suas ações. Atualmente, encontra-se em fase de assinatura do segundo financiamento para assegurar a continuidade do programa no restante da Bacia do Educandos e início da Bacia do São Raimundo.

Este foi concebido mediante uma ampla articulação institucional envolvendo órgãos estaduais, municipais, federais, o governo do estado, o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), a sociedade civil organizada e a CEF (Caixa Econômica Federal).

O ciclo de reassentamento obedeceu as seguintes fases: 1) casa identificada no igarapé; 2) cadastro físico territorial; 3) entrega da documentação do imóvel e de seu titular; 4) reuniões informativas sobre o processo de remanejamento; 5) mudança dos benefícios para a moradia transitória; 6) visita na obra com beneficiários de Unidade Habitacional; 7) escolha da unidade habitacional; 8) recebimento do título definitivo da Unidade Habitacional; 9) recebimento da chave da casa nova; e, 10) acompanhamento de pós-ocupação nos Parques Residenciais.

O financiamento de recursos do BID para a área urbana é pautado na diretriz do desenvolvimento dos chamados países emergentes, como é o caso do Brasil.

Dentre os Planos e Programas apresentados no EIA/RIMA do PROSAMIM, estão o Plano de Reassentamento, Desapropriação e Readequação; Programa de Controle de Processos Erosivos; Programa de Controle de Vetores; Programa de Educação Ambiental (PEA); Plano de Contingência para Situação de Incêndios, Plano de Contingência de Enchentes, dentre vários outros.

O programa pretende promover o saneamento, o desassoreamento e a utilização racional do uso do solo às margens dos igarapés, associada tanto à manutenção do desenvolvimento socialmente integrado e do crescimento econômico ambientalmente sustentável.

Algumas áreas sofrerão a intervenção direta do Programa, classificadas como “Área de Influência Direta (AID)”, e receberão a maioria das soluções de engenharia para macro e micro-drenagem, água e esgotamento sanitário, sistema viário, habitação e urbanismo.

Há na região da bacia de Educandos duas unidades de ocupação urbana: a dos bairros densamente povoados e a do Distrito Industrial de Manaus, especificamente a área da Suframa, estendendo-se até os bairros de Educandos, Colônia Oliveira Machado e Japiim.

Com a implantação do Programa, estão sendo beneficiadas diretamente aproximadamente 21.326 famílias ribeirinhas, totalizando cerca de 102.365 habitantes.

Deste universo, cerca de 35.827 habitantes moram em situação de alto risco. De forma indireta, toda a população da Bacia do Educandos ganhará em qualidade de vida com a melhoria das condições ambientais, sanitárias e urbanísticas.

Este ganho será extensivo aos habitantes de Manaus que passarão a usufruir de uma cidade mais humanizada.

O Programa estimula a participação da comunidade como uma estratégia no campo social para assegurar o bem-estar e a melhoria da qualidade de vida da população que mora no entorno dos igarapés de Manaus. A participação da comunidade ocorre em forma de consulta pública como ação direta.

“Lá era muito difícil. Nós morávamos num beco muito pequeno, muito feio. O Igarapé era horroroso, cheio de bichos e próximo a uma boca de fumo. Horrível. É, nisso foram 48 anos nesse sofrimento”, afirmou um morador de 55 anos em 2011 sobre morar no Igarapé do Quarenta antes da reforma.

Para outra moradora, uma mulher de 49 anos, falar sobre seus tempos idos e vividos no Igarapé do Quarenta antes da reforma significa não apenas lembrar do espaço dividido, mas também de seus amigos de vizinhança. Era com eles que partilhava o ambiente, as esperanças e as desilusões.

“Lá era bom. A vizinhança, todo mundo era unido. E o espaço não tinha muito não. Tinha uma casinha uma do lado da outra”, disse E.F.R. em 2011. Edgar Morin fala dessas percepções em A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, de 2009.

“A compreensão humana nos chega quando sentimos e concebemos os humanos como sujeitos; ela nos torna abertos a seus sofrimentos e suas alegrias. Permite-nos reconhecer no outro os mecanismos egocêntricos de autojustificação, que estão em nós, bem como as retroações positivas que fazem degenerar em conflitos inexplicáveis as menores querelas”.

Cultura no espaço

A percepção e a representação dos moradores adultos aparecem de formas distintas. É notável perceber que, ao relatarem esses fatos, sempre se mostraram muito envolvidos com um passado que vai ficando distante. Para alguns deles, foram bons e velhos momentos vividos juntos aos seus familiares, vizinhos e amigos.

José Luiz dos Santos diz que “a cultura passa, assim, a ser entendida como uma dimensão da realidade social, a dimensão não material”. Essa realidade social pode ser vista aqui como o relato desses moradores composto por diversos fragmentos lembrados e constituintes de uma história individual e em coletividade.

Todos temos memórias recentes ou antigas sobre um lugar. É um exercício de lembrar de fatos pretéritos juntamente com uma relação subjetiva entre o que vivemos e o que guardamos conosco. A memória aparece como uma construção feita pelo sujeito a partir de coleções de fatos, acontecimentos e experiências vivenciadas, que auxiliam nas recordações de vida.

Pierre Nora afirma que “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”. E, assim, ela é composta de pontos de referência que são ao mesmo tempo materiais e simbólicos. A memória social sustenta-se nas lembranças coletivas permitindo sua transmissão. Essa memória é também simbólica porque contém
acontecimentos e experiências vividos.

Sem dúvida ainda há muito para Manaus tornar-se uma cidade completamente desenvolvida, sobretudo no que diz respeito à qualidade de vida de sua população. Porém, não podemos deixar de reconhecer seu crescimento, saltos urbanísticos e infraestruturais importantes nos últimos tempos.

Karla Patrícia Palmeira Frota é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Este artigo foi publicado originalmente em 2013.
Imagem em destaque: Igarapé do Quarenta. Ione Moreno/Prefeitura de Manaus

 

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