Insegurança e violação de direitos na trajetória dos quilombolas de Alcântara

A ambição do governo militar em entrar na corrida espacial fez com que este iniciasse uma busca por um lugar ideal para sediar o programa espacial brasileiro. A primeira tentativa se deu com a criação do Centro de Lançamento da Barreira do Inferno (CLBI), em 1965, localizado em Ponta Negra, no Rio Grande do Norte. Entretanto, no final da década de 1970, os planos mudaram e os militares conseguiram aprovar, junto ao governo do estado do Maranhão, o Decreto Desapropriatório nº 7.820 de 1980, que declarou como sendo de interesse público 52 mil hectares de terra ocupados por quilombolas, sob a justificativa de que a área se configurava em um vazio demográfico. Esse decreto fez com que eclodissem conflitos territoriais entre as comunidades quilombolas e o Estado brasileiro em Alcântara. Essa área seria ampliada em mais 10 mil hectares pelo presidente Fernando Collor, através de um decreto sem identificação numérica na década de 1990, agravando ainda mais o clima de insegurança territorial na região.

Os conflitos contemporâneos envolvendo disputas territoriais entre quilombolas e Estado brasileiro em Alcântara são motivados por uma política que insiste em não resolver a situação fundiária dessas comunidades, devido ao interesse do Estado brasileiro em colocar o programa espacial no mercado de commodities. A busca pelo lucro tem se colocado à frente dos direitos e da vida dos quilombolas, que têm domínio sobre o território em disputa por mais de dois séculos.

O conflito já se arrasta há quarenta anos e, em todo esse tempo, o Estado brasileiro simplesmente descumpriu todas as promessas e acordos firmados com as comunidades e suas entidades representativas. A principal demanda não atendida, e também a mais importante, é a titulação integral do território quilombola (cerca de 85 mil hectares). O Estado até reconhece o direito das comunidades sobre o território, entretanto insiste em fazer manobras, burlando o que reza a carta magna brasileira e os dispositivos internacionais dos quais o país é signatário.

Confira a versão ampliada do mapa aqui.

O imbróglio territorial causado pela desapropriação para a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara resultou, de imediato, no deslocamento compulsório de 312 famílias de 31 povoados para agrovilas entre os anos de 1986 e 1988. Além disso, o módulo agrário do município foi reduzido de 35 para 15 hectares pelo Decreto Presidencial nº92.571, de 1986. Ao longo desses quarenta anos de luta das comunidades quilombolas, o Estado brasileiro atuou na contramão do interesse das comunidades, para fazer valer seu direito sobre o território. Ao insistir na não titulação, colabora com a insegurança territorial.

Os quilombolas entendem a titulação territorial enquanto direito fundamental e inegociável. Entretanto, parece existir um consenso entre os governantes de direita e os progressistas em não ceder os títulos do território aos quilombolas. Em novembro de 2008, depois de uma audiência na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ocorrida em Washington, o Estado brasileiro chegou a publicar o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do território, mas a opção do então governo foi a sua não titulação, o que resultou na instalação de uma Câmara de Conciliação, onde o governo simplesmente negou o direito das comunidades de terem representantes. A tal Câmara de Conciliação consumiu dinheiro público durante praticamente 10 anos para concluir o óbvio. O governo tem duas saídas: titular o território quilombola, ou cometer crime contra as comunidades, ignorando a constituição brasileira.

Nesse contexto, a Resolução nº11, de 26 de março de 2020, faz bastante sentido, pois o Estado resolve assumir seu descompromisso com os direitos constitucionais e avança sobre mais 12 mil hectares de território quilombola, expulsando mais de 300 famílias de suas casas, além de importunar outras 500, ao tentar levar a cabo a expansão do CLA. A Resolução nº11 se constitui em mais do mesmo, na medida em que repete as violações e erros criminosos perpetrados contra outras 31 comunidades.

Ao insistir na “repetição” do passado, o Estado assume que desrespeita o direito e o desejo dos quilombolas em permanecer onde estão. Além disso, assume a usurpação do território, já que o deslocamento das comunidades também é imposto. A opção pelo deslocamento, de acordo com a Resolução nº11, não leva em conta o direito das comunidades ao processo de Consulta e ao Consentimento Prévio, Livre e Informado, como determina a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre outras violações.

Depois dos deslocamentos compulsórios ocorridos nas décadas de 1960-80, o clima de tensão nas comunidades localizadas no litoral do município se tornou recorrente, devido às várias ameaças de expulsão. A cada governo, novas ameaças surgem e muitas delas acabam por não se confirmar. Entretanto, causam violência, pressão psicológica, apreensão e constrangimento, contribuindo para criar um ambiente de insegurança entre os moradores. As ameaças de expulsão fazem parte da estratégia do Estado de aterrorizar as comunidades quilombolas, desmobilizando a luta política por direitos territoriais. Foi justamente pelas ameaças de novos deslocamentos compulsórios dos quilombolas que a Resolução nº11, documento oficial com essa finalidade específica, foi publicada no Diário Oficial da União.

 

Davi Pereira Júnior nasceu na comunidade quilombola de Itamatatiua, no sul do município de Alcântara. É mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e possui vasta experiência em pesquisa e produção de cartografias com Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil. Atualmente, é aluno de doutorado no Teresa Lozano Long para Estudos Latino-Americanos (LLILAS), Na Universidade do Texas em Austin.
A imagem em destaque é uma ilustração de Sandro Schutt, editor de conteúdo e ilustrador da Amazônia Latitude.

 

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