“A hora do xibé”: comunicação e juventude indígena no Baixo Amazonas
[RESUMO]Um dos estratos mais suscetíveis ao Estado empresarial, a juventude é o foco dos autores pela apropriação que faz dos circuitos de comunicação como forma de organização e resistência . A partir da aliança entre o neoconservadorismo e o neoliberalismo, discute-se a vulnerabilidade dos povos originários do Baixo Amazonas. A análise aborda o programa “A Hora do Xibé”, veiculado na rádio rural de Santarém-PA desde 2007. Pelo viés dos hibridismos identitários, autores tratam da dialética da luta cultural e da comunicação como espaços estratégicos de ação.
As questões indígenas não podem mais ser compreendidas de forma desvinculada da problemática aliança entre as normatividades práticas do neoliberalismo e o avanço do neoconservadorismo da cultura. De um lado está o discurso político desenvolvimentista, atrelado aos interesses privados (mineradoras, hidrelétricas, madeireiros, agronegócio) e à suposta necessidade de se rever o vínculo do país com as terras indígenas.
De outro, ideias como “não existem mais índios no Brasil”, “cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”, entre outras, declaradas, em diferentes momentos, pelo atual presidente Jair Bolsonaro, que denotam o quão aguda se tornou a articulação do viés da cultura com a agenda econômica.
A rigor, a questão não é exatamente recente. Em 1985, Habermas chama atenção para um novo tipo de conservadorismo cultural. Diferente do anterior, que se caracterizava pela oposição a todos os ganhos da modernização cultural — “processos coletivos de aprendizagem”, incluindo o Estado de direito, o espaço público ampliado e o processo de democratização continuada, o novo conservadorismo estabelece uma conciliação seletiva com os processos de modernização.
Tal como o velho conservadorismo, ele acirra o enfrentamento aos processos de modernização cultural, porém como forma de justificar o próprio incremento da modernização social. Em outras palavras, ele inverte o jogo de causas e efeitos com relação ao diagnóstico da crise contemporânea.
Para os neoconservadores, a origem de problemas econômicos e sociais está na singularidade da cultura como elemento explosivo da modernidade. Nas suas diferentes inteligibilidades — étnicas, formativas e estéticas — a cultura teria implodido toda sorte de eticidades convencionais que nos caberia restaurar, pois elas seriam a solução para as atuais crises econômicas.
A máxima implicaria reconhecer, primeiro, que vivemos na direção de um tipo de modernização social supostamente inevitável, espécie de destino histórico. Segundo, que sua condição de possibilidade seria a restauração de toda sorte de tradicionalismos cívicos como forma de combater a tragédia da cultura como produção de alteridade histórica.
Sonho ou pesadelo?
Embora as questões indígenas sejam frequentes na arena pública, em pequenos grupos ou até mesmo nos grandes meios de comunicação de massa, não parece forçoso afirmar que, em grande parte dos discursos produzidos, estamos longe da real compreensão da realidade vivida por esses grupos étnicos.
Lideranças indígenas declararam: “o que Bolsonaro chama de ‘sonho’ é, para nós, o pior dos pesadelos”, referindo-se à declaração do presidente sobre o projeto de lei (PL 191/2020) que autoriza a exploração de terras indígenas para atender aos interesses privados ser um sonho.
Segundo o relatório “Ameaças e violação de direitos humanos no Brasil dos povos indígenas isolados”, apresentado à Organização das Nações Unidas em março, dados investigados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam um aumento de 80% nos índices de desmatamento e invasão de terras indígenas (TI) em 2019, em comparação aos de 2018.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) registrou, entre 2003 a 2017, mais de mil assassinatos de indígenas no Brasil. Também cabe lembrar a atual política anti-indígena, que instaura o fundamentalismo religioso no órgão público de proteção aos indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Para o antropólogo Viveiros de Castro, “Estamos assistindo a uma ofensiva final contra os povos indígenas”. Uma tentativa de eliminar todo o aspecto cultural, identitário e material dos povos tradicionais. “Destruir o que há de indígena nos povos indígenas”.
Emblemática, nas palavras do pesquisador, é a sentença do Judiciário brasileiro que alegou inexistentes as etnias Borari e Arapium, situadas na região do Baixo Tapajós, oeste do Pará. A justificativa foi a concepção de que não haveria mais tradicionalidade nos modos de vida desses povos. A miscigenação a teria eliminado e estaria entre os fundamentos para a negação da identidade indígena. Em síntese, em todas as situações, chama atenção o tipo de protagonismo do Estado brasileiro.
Em vez de se constituir instância de efetivação dos direitos, respeitando a plurietnicidade e promovendo o respeito às diferenças, ele atua na produção de retrocessos, como a própria ideia de integrar indígenas à comunhão nacional, que vai contra a Carta Magna de 1988 que, pela primeira vez, reconheceu a identidade indígena como algo a não ser superado e assimilado.
Além de atrofiar processos histórico-culturais, dificultando a compreensão das diferentes identidades étnicas como constituintes da formação brasileira, a atual combinação neoliberal com o neoconservadorismo da cultura amplia o chamado estado de exceção sobre os povos que se opõem ao avanço do capital. Tais aspectos, portanto, merecem especial atenção.
Eles emergem do contexto em que, diferente da fobia do Estado e da defesa de um funcionamento natural do mercado, o neoliberalismo investe num amplo processo educacional que supõe fundamentalmente adaptação ao fatalismo do mercado, assim como a um Estado forte capaz de “purificar o mercado concorrencial através de um enquadramento jurídico cuidadosamente ajustado”.
Juventude indígena e estereótipos
A edição 134ª do programa “Copiô, Parente”, o primeiro podcast com notícias de Brasília produzido para os povos indígenas e da floresta, traz informações sobre o grau de vulnerabilidade e de sofrimento dos ameríndios ao serem submetidos à integração forçada.
“Os Nambikwara, que vivem entre o Mato-Grosso e Rondônia, antes do contato, a etnia contava com cerca de 10 mil indivíduos, 9 mil morreram em decorrência de epidemias, sarampo, gripe, coqueluche e gonorreia”, diz um trecho.
Para além da particularidade dos povos ameríndios, o programa introduz dois aspectos centrais à análise aqui empreendida. A vulnerabilidade de povos indígenas, já mencionada no tópico anterior, especialmente no contexto do protagonismo do Estado empresarial e com impacto entre a juventude; em segundo, a centralidade das narrativas midiáticas na divulgação de tal condição.
De fato, numa época obscura, que amplia o estado de exceção sobre os povos indígenas, a juventude torna-se um estrato social sensível. Ela carece de formas de resistência capazes de frear a agressividade do capital desenvolvimentista. Todavia, representa também um dos segmentos de maior responsabilidade na luta para que direitos indígenas não retrocedam.
Trata-se de um grupo estratégico no desafio de construir formas de organização que mantenham no horizonte indígena cosmologias que os representem. Daí, como afirma Gersem Baniwa, a importância da criação de canais de diálogo que garantam a participação dos movimentos de juventude indígena.
Segundo o antropólogo, “uma nova democracia só será efetiva se conseguir incorporar essas vozes”. Afinal, “os jovens indígenas são atores fundamentais para a inovação política e social, não somente como críticos, mas também como construtores de novos modelos”.
Apesar de ser uma das categorias que mais absorve e expõe conflitos sociais, a juventude é marcada por uma intensidade e vontade de viver, cuja curiosidade a inclinaria ao revolucionário.
De acordo com Angelina Peralva, em “O jovem como modelo cultural”, publicado na Revista Brasileira de Educação em 1997, trata-se de um grupo social em que “o desvio é inerente à experiência (…), o jovem é aquilo ou aquele que se integra mal, que resiste à ação socializadora, que se desvia em relação a um certo padrão normativo”.
Dentre essas novas formas de organização destacam-se o uso e as apropriações dos meios de comunicação por parte da juventude indígena. De fato, não parece restar dúvida de que vivemos uma época em que o capital simbólico dos diferentes grupos sociais passa em boa medida pela apropriação dessas redes e circuitos.
Tomadas pela intensificação do sensorialismo generalizado, marca do hiper-realismo contemporâneo, quando nossas percepções sensoriais passam a ser mais reais que o próprio real, as tecnologias de comunicação (sejam elas tradicionais, como rádio, televisão e jornal, ou mais recentes, como internet e satélites, entre outras) constroem práticas sociais que moldam cada vez mais nosso sentido de realidade.
Falamos do contexto em que esse último resulta menos de um tipo de percepção geográfica e mais de uma nova topologia eletrônica. Trata-se agora de inteligibilidades fundadas nos regimes de visibilidade midiáticos, que plasmam territórios aos protocolos digitais, fazendo da comunicação lugar central.
Desde já, portanto, a questão aponta para uma leitura crítica acerca do tipo de discursividade produzida nos meios de comunicação, especialmente, naqueles de ordem hegemônica.
A rigor, apresentam uma imagem indígena estereotipada, que reforça o preconceito e uniformiza as identidades, criando, dessa forma, um protótipo de índio. Quando ele não é tratado de forma pejorativa pelos programas jornalísticos, é colocado — por meio de filmes, novelas e outros gêneros — na perspectiva folclórica, reforçando o senso comum de que a juventude indígena é homogênea, não reconhecendo, assim, suas diferenças.
De fato, tal tendência é reforçada pelos próprios estudos sobre o tema, que não dão conta dessa diversidade em face da pouca literatura sobre a juventude do campo, principalmente quando se trata de juventudes indígenas. Há mais pesquisadores especializados na origem e no desenvolvimento da juvenilidade produzida nas grandes cidades do que no campo, aldeias, quilombos etc.
Tal invisibilidade, portanto, intensifica o preconceito acerca desses segmentos sociais. Trata-se de narrativas que suprimem saberes, principalmente dos povos colonizados, colocando-os em espaços de subalternidade, retirando do cenário participações, resistências, formas e vozes. Em suma, as narrativas midiáticas hegemônicas se constituem distintas formas de racismo em que “a história colonialista se recicla nos discursos públicos contemporâneos”.
Todavia, não obstante tal predominância, novas formas de comunicação e modos de resistência se desenvolvem segundo uma concepção dialógica, que contempla a diversidade e complexidade dos diferentes atores sociais, apresentando, portanto, rupturas na construção linear e padronizada da informação. A mídia alternativa, ou, para John Downing, a mídia radical, constrói uma narrativa contra-hegemônica nas temáticas que envolvem as questões indígenas.
No espaço de disputa entre o consumo de produtos e informações dominantes versus a construção da imagem de si pelos próprios sujeitos, mediante estratégias e expressões de transgressão, destaca-se o que Stuart Hall, ao tratar do processo de codificação/decodificação da mensagem, chama do lugar decisivo da recepção no processo comunicativo.
Para o autor, apesar do discurso hegemônico construir códigos informativos poderosos, com base nos grandes conglomerados empresariais, o caráter dominante, que garante a interpretação de sentido, não é único. Isso porque o lugar de recepção é polissêmico. São as práticas sociais que decodificam os códigos da mensagem e que constroem novas significações.
Daí a força das experiências de comunicação que não necessariamente ocorrem no regime discursivo hegemônico. No caso da juventude indígena, elas têm o potencial de desconstruir discursos, de realizar a apropriação dos meios e ressignificar mensagens a partir de seus repertórios étnico-culturais.
Como exemplo, pode-se citar a Rádio Insurgente, pertencente ao movimento mexicano zapatista, que nasceu com o objetivo de fortalecer os processos de autonomia das comunidades indígenas, provendo, assim, a difusão de suas culturas. Aqui no Brasil, temos a rádio web Yandê, considerada a primeira rádio web indígena do país, que foi criada em 2013 por um grupo de jovens comunicadores e que também tem como objetivo a difusão da cultura indígena.
Mais recente, em 2017, durante o Acampamento Terra Livre (a maior reunião de povos indígenas no Brasil, que na atualidade está em sua 16ª edição), surgiu o Mídia Índia, um projeto de comunicação “feito por jovens indígenas e para jovens indígenas”. Com o slogan A voz do povo, a Mídia Índia ocupa a internet com diferentes tecnologias comunicacionais, como rádio/áudio, texto, fotografia, vídeo, , entre outros.
A “Hora do Xibé”
Na mesma trajetória dessas mídias radicais citadas acima, temos “A Hora do Xibé”, programa de rádio veiculado, desde 2007, na rádio rural de Santarém (uma emissora católica com concessão pública educativa), que também integra o projeto de extensão “Patrimônio Cultural na Amazônia” na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).
Com a participação de jovens estudantes de diferentes etnias e estudantes quilombolas e transmissão pelas mídias sociais, o programa vai ao ar todo sábado, a partir de 10h, com duração de uma hora, aproximadamente. A programação conta com a valorização e a divulgação dos saberes, crenças, mitos, história, cultura e identidade dos povos originários da região amazônica, especialmente da região do Baixo Amazonas.
“A Hora do Xibé” tem gestão coletiva desenvolvida pelos próprios estudantes. São os jovens participantes do projeto de extensão que produzem, dirigem e escrevem o roteiro. O nome do programa significa o momento de tomar o xibé, alimento de origem indígena feito com farinha de mandioca e água, que pode ser consumido em diferentes momentos, entre eles as longas assembleias políticas dos povos indígenas.
Os programas trazem em seu conteúdo notícias locais e nacionais que envolvem os povos tradicionais da Amazônia, músicas da região, como carimbó, cantorias autorais de grupos indígenas, alguns hits de sucesso da indústria fonográfica, além de entrevistas com lideranças de comunidades e trocas de mensagens entre os ouvintes. Em abril de 2019, “A Hora do Xibé” trouxe para as ondas do rádio a temática do abril indígena, referente ao 19 de abril, Dia do Índio no Brasil.
No primeiro programa da série, uma das locutoras cita, logo na abertura, uma música da banda de rock Legião Urbana ao mencionar que “todo dia é dia de índio” e, mais adiante, informa: “no programa de hoje vamos falar da luta dos povos indígenas aqui do Baixo Tapajós”. Em outra edição, a variedade de linguagens é ressaltada, termos indígenas são constantemente usados, lendas amazônicas são interpretadas e referências à Semana Santa, uma das manifestações religiosas mais importantes para a Igreja católica, são destacadas.
“Ser indígena neste país não é fácil, se assumir indígena não é fácil”, comentam os locutores na manhã de um sábado. Ainda debatendo as causas dos povos da floresta, a entrevistada de mais um programa conta como foi a participação dos indígenas da região no maior encontro indígena do país, o Acampamento Terra Livre.
Reivindicação dos direitos indígenas, denúncias de opressão por parte da polícia e da Força Nacional, relato sobre as lutas indígenas referentes à saúde e à educação, descrição da capacidade organizativa/criativa dos povos indígenas e a consciência política da juventude foram os destaques da edição, que também abordou a proximidade do mês das mães.
Notamos na construção dos programas a dialética da luta cultural, que ora oferta elementos da cultura dominante, ora percorre as linhas complexas da resistência, transformando o espaço da cultura “em uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se tem vitórias definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas”, segundo Hall.
Talvez mais do que antes, os jovens participantes da rádio, especificamente os indígenas, saem de suas aldeias para entrar na universidade, ou já ocupam o espaço urbano e trazem consigo elementos de suas tradicionalidades, construindo novas formas de ser e se colocar no mundo. As temporalidades, as histórias e as identidades são construídas e constituídas de interpenetrações e rupturas que se intensificam agora.
Vivemos num universo multicultural e plural em que diferentes comunidades culturais convivem e tentam (re)construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade “original”. Reconhecer essa intersecção introduz a problemática referente à aceitação das diferenças e ao reconhecimento da alteridade como eixo fundamental da construção das identidades indígenas na contemporaneidade.
Como afirmou Eduardo Viveiros de Castro, em parecer emitido para refutar uma sentença que negou identidades dos Borari e Arapium, “continuidade histórica não é identidade imóvel, tradição não é clonagem, indianidade não é genética, e mistura cultural não invalida o direito à escolha de referências privilegiadas”.
Nesse contexto, portanto, o rádio constitui um instrumento decisivo das lutas contemporâneas por autonomia. Sabe-se que ele é um veículo extremamente popular, de grande alcance de público e com imensas possibilidades de comunicação, tanto em relação à técnica quanto às questões que derivam de sua função social.
Brecht defendia que era preciso transformar o rádio de um simples aparelho de transmissão em aparelho de comunicação. O dramaturgo alemão conhecia seu potencial enquanto produtor de uma comunicação democrática, produzida não de maneira linear, vertical, mas de forma circular, em que os ouvintes não apenas recebessem a informação, mas que também a transformassem.
Nessa perspectiva, “A Hora do Xibé” procura investir em experiências dialógicas que apostam na força da oralidade do rádio e no impacto que ela encontra na maneira pela qual diversos grupos étnicos transmitem e produzem cultura. Tais aspectos têm, no contexto amazônico, um caráter indispensável.
De fato, no cotidiano das comunidades rurais, devido à grande extensão da Amazônia brasileira e a sua localização entre diversos rios, o rádio reduz distâncias, está mais facilmente presente que outros dispositivos eletrônicos e possibilita troca, difusão e aprofundamento de saberes entre os diversos povos amazônidas.
Identidade e hibridismos culturais
Pensar, portanto, o programa de rádio “A Hora do Xibé” é uma forma de reconhecer o crivo da comunicação na inserção dos povos originários da região amazônica, especialmente do Baixo Amazonas, no contexto das identidades juvenis.
Para Bauman, o tema das identidades implica controvérsias e ganha especial notoriedade em função dos avanços da globalização, dos desastres naturais, das mudanças climáticas, dos casos de trabalho escravo, migrações e deslocamentos presentes em todo o mundo.
Nesse debate, portanto, nos interessa particularmente a luta por reconhecimento da juventude indígena. E, nesse caso, é preciso afirmar a impossibilidade das premissas das culturas puras. De fato, o hibridismo é a denominação mais adequada para caracterizar as atuais culturas mistas e diaspóricas, segundo Stuart Hall.
“(…) O adolescente negro que é um dj de salão de baile, toca jungle music mas torce para o Manchester United; ou o aluno muçulmano que usa calça jeans larga, em estilo hip-hop, de rua, mas nunca falta às orações da sexta-feira, são todos, de formas distintas, “hibridizados”, disse o autor em “Da diáspora: Identidades e mediações culturais”.
O sujeito contemporâneo já não tem uma singular, abrangente e coesa identidade, mas múltiplas, que muitas vezes serão incompletas, fragmentadas, formadas e transformadas continuamente.
“A identidade é uma busca permanente, está em constante construção, trava relações com o presente e com o passado, tem história e, por isso mesmo, não pode ser fixa, determinada num ponto para sempre”, diz Ana Carolina Escosteguy em “Cartografias dos estudos culturais – Uma versão latinoamericana”, de 2010.
Com as culturas híbridas, fronteiras são diluídas e, agora, os diferentes processos sociais podem combinar-se e gerar novas estruturas e práticas. Isso não significa dizer que a propensão da modernização é instigar o sumiço das culturas tradicionais.
O problema não é simplesmente manter ou resgatar tradições que jamais podem ser alteradas. O desafio é indagar como essas tradições se transformam e interagem com a pós-modernidade.
Não é possível entender a tradição sem entender a inovação; autenticidade das culturas por si só já não faz mais sentido, mas sim o que elas formam de novo ao mesclar-se com o que já existe. A aproximação entre manifestações culturais e novas tecnologias da comunicação e da informação gera, portanto, novos processos culturais capazes de dialogar entre si.
Cabe lembrar aqui Canclini e sua noção de culturas híbridas. Para o autor, nosso presente é diversificado e opõe-se à lógica de uma identidade unitária hegemônica. Cultura é produção de sentido e não está ligada apenas a artefatos, mas a rituais da vida cotidiana, práticas sociais atravessadas invariavelmente pela globalização.
Nesse sentido, a teoria dos estudos culturais é importante para compreendermos que hierarquias culturais não funcionam e que a cultura não designa indivíduos com características artísticas e intelectuais, mas antes considera todo e qualquer sujeito dentro do coletivo da vida humana. A passagem nos ajuda a entender a própria miscigenação cultural presente entre os povos indígenas e a cultura popular, muitas vezes designada como perda de identidade.
A problemática compreensão está fundada em certas tradições que concebem cultura como erudição, em que predomina uma cultura escrita que subestima toda ordem de oralidade e memória popular. “Organizar a cultura privilegiando os meios escritos é uma maneira de reservar para minorias a memória e o uso dos bens simbólicos. (…) Temos na América Latina mais histórias da literatura das elites que sobre manifestações equivalentes das camadas populares”, disse Nestor Canclini em “Culturas Híbridas”.
De fato, a tentativa de compartimentar as culturas advém de uma tradição eurocêntrica, que tem como princípio norteador julgar outros povos a partir de um ponto único, que esvazia a alteridade do outro, porque a assimila pela redução das diferenças.
Considerações finais
As questões indígenas atuais demonstram que vivenciamos uma irrupção de contra narrativas, uma certa quebra de centralidade das epistemologias dominantes, o que provoca forte reação dos setores culturais conservadores.
Manifestações agressivas contra a diferença, tentativas de recuperar a dominação total do eurocentrismo como eixo do mundo ou de impor a hegemonia estadunidense, somadas aos ataques diversos ao multiculturalismo, são algumas realidades vividas e que apontamos inicialmente neste artigo. Nessa disputa entre subordinação e dominação se constituem as relações culturais.
É certo que a tentativa de padronização do indígena brasileiro continua presente nessa conjuntura histórico-político-econômica do capitalismo e da colonialidade do poder. Entretanto, os povos tradicionais continuam dando respostas com suas lutas diárias contra a opressão e o silenciamento, apropriando-se de novas formas políticas e de novas tecnologias para resistir, posto que, no caso desses sujeitos, segundo Viveiros de Castro, “existir é iminentemente um resistir, um rexistir”.
De fato, a apropriação dos meios de comunicação por parte da juventude indígena do Baixo Amazonas constitui uma estratégia de resistência e produção de alteridade.
Ela não só reinventa, como subverte narrativas hegemônicas. Os jovens participantes das redes de comunicação citadas neste artigo vão tecendo o que para Mario Kaplún é papel central do rádio: promotor de educação e cultura popular como base de qualquer projeto de desenvolvimento.
Com o programa “A Hora do Xibé” os jovens vão criando e (re)afirmando suas identidades, produzindo novas formas de resistência e racionalidades alternativas ao poder hegemônico, bem como renovando as bases desse conhecimento histórico-social.
Segundo documento feito por velhos caciques, durante encontro histórico na aldeia Piaraçu, “a juventude indígena presente no encontro reafirma o compromisso em dar continuidade à luta das lideranças em defesa [de suas] (..) vidas, (…) territórios e (…) direito de existir”.
Os povos indígenas são, sem dúvida, exemplo de um agir coletivo e de uma nova maneira de conjugar o futuro do Brasil.
Originalmente publicado na Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación — ALAIC, v.19, n.33 (2020).
Tiago Quiroga é jornalista pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), mestre em Comunicação e Cultura pela mesma universidade, doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), com pós-doutorado na Interdisziplinäre Zentrum für Historische Anthropologie, Freie Universität (FUB), Berlim, Alemanha.
Tatiana Castro é mestre em e Educação pela Universidade de Brasília e doutoranda em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma universidade.
Imagem em destaque: Hora do Xibé/Reprodução/Facebook