Jorge Mautner: navegar é preciso – Roteiros da Amazônia
“A floresta tem sons, o ruído das plantas, do vento, o Curupira. E tudo aqui é música. Até o silêncio é cheio de ruídos”. Jorge Mautner ia proferindo essas poesias enquanto passava de barco por vilarejos, rios e igarapés no Pará. O ano era o de 2005.
O passageiro estava acompanhado de seu parceiro de longa data, Nelson Jacobina, e da equipe do Navegar Amazônia, que era também o nome do barco em que todos viajavam. A equipe era composta por Jorge Bodanzky, Roberto Lacerda e Evaldo Mocarzel, entre outros. O equipamento era um laboratório multimídia na própria embarcação, com sinal de internet, e fez sua primeira viagem em 1996.
Naquele ano, o projeto Navegar Amazônia estava no seu sétimo ano — durou até 2011. Tudo começou em 1995, quando João Capiberibe, ecologista e então governador do Amapá, decidiu levar internet a comunidades ribeirinhas.
O alvo dessa primeira viagem era o arquipélago do Bailique, distrito ao norte de Macapá. O único jeito de promover internet nos anos 1990 era com o GSAT, sistema patrocinado pelo Governo para fomentar projetos de educação. Capiberibe falou com Roberto Lacerda, chefe da empresa de processamento de dados do estado, que convidou então Jorge Bodanzky para essa grande aventura.
“A gente equipou um barco regional com esse laboratório multimídia, conectado à internet, e eu tive a ideia de levar oficinas à população do Bailique. Não apenas oficinas de vídeo, mas de música, de arte, do que a gente conseguisse. Cada viagem tinha um destino diferente e um grupo de oficineiros”, conta o cineasta.
Freelancer experimentado, Bodanzky também optou por não comprar um barco — pagava aluguel apenas quando havia recursos para o custeio e para aquela viagem específica.
O Navegar embarcou em um projeto do Ministério da Cultura, chefiado na época por Gilberto Gil. A ideia era financiar projetos que desenvolvessem práticas culturais de cada região. Bodanzky seria o divulgador da ideia na Amazônia, e o barco foi transformado em um grande Ponto de Cultura, que ligaria o projeto a outros pontos espalhados pelos rios.
Tem a arte, tem a arte
O ministro Gil e sua equipe sugeriram Jorge Mautner para a viagem do Navegar como Ponto de Cultura. A ideia era fazer oficinas de música com o artista e Nelson Jacobina. A viagem começou em Belém e foi para a região de Abaetetuba, no Pará. E originou o roteiro do documentário “Navegaramazônia – Uma Viagem com Jorge Mautner”, lançado em 2006.
Com recursos do Ministério para divulgar o programa dos Pontos de Cultura, o filme virou um média-metragem com registros das oficinas e as trocas entre os artistas do barco e os das ricas comunidades.
Dona Mariquinha me contou uma anedota/Que a cobra grande mora na ilha da Pacoca/Muita gente sabe, muita gente viu/Que a ilha da Pacoca se transforma em um navio”
Pacoca era uma moça que não quis se casar com o filho do pajé. Possesso, o líder jogou um feitiço sobre a jovem, que se transformou em réptil e foi deslizando, deslizando, até formar a ilha afastada do continente. Jorge Mautner ouvia todas essas lendas que explicavam a geografia da região, completamente embevecido.
“É essa figura fantástica. Onde ele vai, ele interpreta, filosofa, pensa, brinca, passa a sabedoria e a música dele. Onde chega, tira o violino dele e pronto: já encantou”, diz Bodanzky.
O cineasta e o músico dublê de escritor e filósofo se conhecem desde a juventude, frequentando os mesmos teatros, cinemas e participando ativamente da cultura dos anos 1960. O compositor era admirado por seu livro ‘Deus da Chuva e da Morte’, romance de 1962 que lhe rendeu um Jabuti, o maior prêmio literário do Brasil.
“O Mautner é uma figura ímpar”, lembra Bodanzky. A viagem transcorreu sem grandes exigências, os shows não precisavam de complicados requisitos técnicos. As apresentações e oficinas eram sempre muito harmoniosas, independentemente do cenário em que aconteciam.
“Ele diz isso no filme, ‘ensino e também aprendo’. E, flexível como sempre foi, deixou-se imbuir muito pela musicalidade da Amazônia. Admirou isso e incorporou ao seu repertório, não impondo absolutamente a música dele, isso fica muito evidente nas suas aparições e oficinas com o Jacobina.”
Navegar é preciso
A viagem com Mautner rendeu o filme e foi a mais extensa de todo o ciclo, cerca de três semanas, mas o projeto durou mesmo sem o apoio do Ministério da Cultura, com financiamento privado, o que permitiu a elaboração de um site, o TV Navegar, com mais de 100 vídeos produzidos durante as suas viagens.
Uma nota: a burocracia teve problemas para lidar com a cultura e a região amazônicas. “Nós mesmos tivemos dificuldades, porque foi lá uma auditoria, ‘vamos ver o que faz o Navegar Amazônia’, e não tinha endereço. O endereço era o barco!”, ri o cineasta.
Outro filme que ganhou vida com o Navegar, “No meio do rio, entre as árvores”, dirigido por Bodanzky e com fotografia de David Pennington, foi lançado em 2009, com material de uma viagem pela região do Alto Solimões, no Amazonas.
A inovação era, tanto na fotografia quanto no vídeo, motivá-los a fazerem seus próprios vídeos, uma forma até então pouco explorada de olhar a pluralidade da realidade amazônicas “O barco era um hiper radiador de cultura”, lembra o diretor.
Eterno mistério
“Eu acho que é sempre um convite da mata. O mistério dessa floresta verde-esmeralda nos chama constantemente. E, por cima dessa emoção, a emoção das pessoas que moram aqui”, diz Mautner enquanto o Navegar era recebido numa comunidade quilombola em Abaetetuba.
Além do ritmo, a religiosidade também encantou o músico, já que é parte fundamental da vida e foi intensamente transformada no território amazônico. “É uma impressionante dissonância, e ao mesmo tempo a manutenção de coisas tradicionais, cantos gregorianos, de um latim inventado, mas é esse som”.
“A religião é o coração do mundo sem coração. Agora aqui consegue se fabricar o coração através da ladainha.”
Muito interessado no ambiente e nas lendas, Jorge Mautner figura como um passageiro ilustre e atento espectador das diversas produções culturais que encontra. Se num momento conta histórias sobre a origem da música — como um artifício para chamar a atenção do grupo de jovens para a pré-história, em outros ele apenas se senta num canto e observa.
Silêncio e harmonias
Afinal, a Amazônia é ruído. E também é silêncio. “Eu podia lembrar que Shakespeare dizia que a vida é apenas som e fúria. Mas aqui é som, fúria, dissonâncias e harmonias”, diz Mautner no filme.
Para o compositor de ‘Maracatu Atômico’, muitas águas rolaram, desde o pragmático “viver não é preciso, navegar é preciso”, concebido numa ideia romana de que é preciso fazer as coisas, até o cenário de hoje.
“Nasceram depois interpretações poéticas incessantes, que foram alimentar o sebastianismo, até Fernando Pessoa, Caetano Veloso e todos nós, até chegar aqui à Amazônia, onde seu significado se diluiu e se transfigurou em aparições de eterno mistério.
“Eu fiz essa conversa com ele já no final da viagem. Mas eu achei tão bonito o texto que inseri nas imagens do barco navegando”, lembra Bodanzky.
Galeria
Roteiros da Amazônia é uma parceria entre o cineasta Jorge Bodanzky e a Amazônia Latitude. Confira todas as edições aqui.
Imagem em destaque: Jorge Mautner e Nelson Jacobina durante viagem do Navegar Amazônia no Pará, em 2005. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude