Relatos de uma expedição científica na Amazônia do século XIX

Foto aérea da Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre/Crédito: Lilo Clareto

[RESUMO] Autor explora os feitos do alemão Franz Keller-Lëuzinger narrados no livro Os rios Amazonas e Madeira – esboços e relatos de um explorador (Vom Amazonas und Madeira), que agora recebe tradução ao português. Explica-se a expedição científica na Amazônia do século XIX, apresentando tanto contribuições relativas a ilustrações dos lugares visitados, quanto contradições de Franz frente à modernização do Brasil e aos povos nativos

Capa do livro "Os Rios Amazonas e Madeira". Há uma imagem em preto e branco de explorador, com barba longa e roupas formais.

Os rios Amazonas e Madeira – esboços e relatos de um explorador
Autor: Franz Keller-Lëuzinger
Editora: Dialética Editora
Tradutor: Adriano Gonçalves Feitosa
Ano: 2021

Depois de quase 150 anos, os leitores da língua portuguesa finalmente terão em mãos uma tradução inédita dos relatos de uma importante expedição científica que percorreu a Amazônia no século XIX.

“Vom Amazonas und Madeira” publicado originalmente em 1874, de Franz Keller-Lëuzinger (1835-1890), com tradução agora publicada em português pela Editora Dialética (Belo Horizonte), registra a passagem do autor pela floresta amazônica, acompanhado de seu pai Joseph Keller, além de um engenheiro brasileiro, um ajudante-geral alemão e inúmeros indígenas que auxiliaram na empreitada.

Embora os mapas e ilustrações da expedição sejam amplamente conhecidos e referenciados pela comunidade acadêmica, até o momento os relatos da comissão jamais haviam sido traduzidos para a língua portuguesa.

Deve-se mencionar que em nosso vernáculo houve apenas a publicação de um Relatório Técnico bastante sucinto, datado de 1869, apresentado ao Ministério da Agricultura brasileiro por Joseph Keller, que à ocasião era o engenheiro-chefe da missão.

Ademais, a revista Ilustração Brasileira, em edição debutante de 1876, publicou uma breve tradução para a língua portuguesa de alguns poucos excertos resumidos da edição alemã, dedicando apenas duas páginas e um terço à memória da obra, com maior ênfase na exposição de três monumentais ilustrações (a Serra dos Órgãos e o Corcovado, ambas no Rio de Janeiro, e um trecho das margens do rio Madeira, no Amazonas).

Ao longo de 1876 e 1877, algumas outras gravuras da obra original foram sendo publicadas, geralmente acompanhadas de uma página de texto traduzido, de forma a contextualizá-las aos leitores.

Da mesma forma, também o periódico O Vulgarisador, que circulou no Rio de Janeiro entre 1877 e 1881, divulgou a publicação original em alemão, destacando a ilustração e o relato do encontro da comitiva com os temidos índios Caripunas, como apontou a pesquisa da Prof.ª Dr.ª Moema de Rezende Vergara (2013, p. 93), pesquisadora titular do Museu de Astronomia e Ciências Afins.

Jamais houve, portanto, edição integral da obra de Franz Keller-Lëuzinger na língua portuguesa. Nem mesmo os excertos mencionados acima foram considerados para subsidiar a presente tradução, uma vez que muitas das expressões e termos originalmente utilizados pelas revistas na década de 1870 poderiam dificultar a compreensão desse importante gênero literário e afastar o interesse de eventuais novos leitores das gerações atuais.

O autor e sua obra

Nascido em Manheim, em 30 de agosto de 1835, o engenheiro, explorador, desenhista e fotógrafo alemão Franz Keller passou a assinar “Keller-Lëuzinger” após se casar com Sabine Christine Lëuzinger, filha do célebre editor suíço radicado no Rio de Janeiro, Georges Lëuzinger. Junto ao seu pai, Joseph Keller — engenheiro-chefe —, percorreu o Brasil a serviço do Império, planejando e executando obras viárias a partir da década de 1850.

Os projetos comissionados pelo governo imperial permitiram a Franz Keller presenciar in loco as condições, particularidades e contradições das principais províncias brasileiras, além das mais remotas e inacessíveis, como à época era o caso do Amazonas, cuja navegação internacional apenas seria aberta por decreto imperial em 1867.

Uma curiosa descoberta ao longo da tradução

No decorrer das pesquisas para a tradução, ao analisarmos registros de movimentação portuária em periódicos contemporâneos à expedição, surpreendemo-nos ao descobrir que Franz e Joseph viajaram ao Pará e ao Amazonas acompanhados das senhoritas Sabine Christine Lëuzinger (esposa de Franz) e Pauline Keller (presumivelmente, irmã de Franz).

Inicialmente, cogitamos se as duas mulheres não teriam acompanhado toda a extensão da jornada, o que não seria incomum, porém pouco frequente, a exemplo da célebre Elizabeth Agassiz, que acompanhara o marido Louis Agassiz em expedição prévia, e a quem devemos os meticulosos registros dos acontecimentos daquela expedição.

Entretanto, encontramos um despacho do governo provincial amazonense no periódico Amazonas, Ano II, N.º 104, p. 2, de 30 de maio de 1868, determinando a concessão de “passagens de Estado” a Sabine e Pauline em embarcação da Companhia do Amazonas, de Manaus rumo a Belém do Pará. Na mesma edição, despacho determinava que a Tesouraria da Fazenda cobrisse (às custas do Ministério da Agricultura) as despesas de Joseph e Franz, que em 25 de maio de 1868 requisitavam passagens em vapor de Manaus a Serpa, de onde a comitiva então seguiria até o rio Madeira.

Em 26 de maio, são mencionados os engenheiros “que seguem em desempenho de sua comissão exploradora do Rio Madeira” “José Keller”, “Francisco Keller” e “José Manoel da Silva”, acompanhados de dois assistentes, a quem se concedem as passagens requisitadas no dia anterior. Em 27 de maio, noticia-se a partida da comissão, oficiando-se as autoridades de Serpa, Borba, Crato e Santo Antônio, e o comandante do forte do Príncipe de Beira, para prestarem apoio e auxílio na consecução dos trabalhos.

Embora não tenham acompanhado a viagem de exploração pelos rios Amazonas e Madeira, o deslocamento de Sabine e Pauline até Manaus já parece demonstrar por si só uma efetiva participação feminina nos feitos deste importante núcleo familiar surgido da união dos Keller aos Lëuzinger, hipótese essa que poderia ser elucidada com outras pesquisas nesse mesmo sentido.

Lastimamos somente o fato de o autor não ter mencionado Sabine ou Pauline nos relatos do trajeto do Rio de Janeiro ao Amazonas. Posteriormente, as senhoritas retornaram sozinhas ao Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1868, com desembarques registrados no periódico carioca Correio Mercantil, Ano XXV, N.º 170, p. 3, de 20 de junho de 1868. Franz e Joseph apenas retornariam ao Rio de Janeiro no ano seguinte.

Ilustrações

Os leitores que almejam ter contato primário com os escritos de Franz Keller-Lëuzinger encontrarão apenas um único livro de sua autoria, publicado em alemão e inglês em 1874 (com uma reedição em 1875), condensando as observações e reunindo os esboços da passagem da expedição pela Amazônia, quando realizaram alguns dos estudos e levantamentos topográficos e medições necessárias para embasar os estudos prévios e projetos de construção de estradas de ferro na região.

Capa da edição alemã do livro. Há uma serpente desenhada embaixo de raios de luz.

Capa do livro Vom Amazonas und Madeira de 1874. British Library/ Arquive

Na edição londrina, com a qual se trabalhou para a presente tradução, contam-se sessenta e oito ilustrações esboçadas por Keller, recompostas e gravadas em madeira na oficina gráfica de Adolf Cloß (1840-1894), em Stuttgart, como ficou registrado na folha de rosto da edição alemã de 1874.

As quase 200 páginas da edição de 1874 impressionam pelas pequenas descobertas em cada gravura: a precisão dos detalhes no tracejado, os sombreamentos primorosos, a exatidão das representações da fauna, da flora e dos tipos humanos com que a comitiva de Keller vinha a interagir em suas paradas.

À medida que se avança na leitura atenta de suas descrições, observações e digressões, o conjunto das ilustrações aviva a imaginação. Mesmo nas ricas passagens e trechos que, infelizmente, não são premiados por ilustrações, com um pouco de empenho e criatividade os leitores também enxergarão com a mesma vivacidade os eventos narrados e, principalmente, verão tomar forma os personagens que cruzaram o caminho do nosso narrador, como os passageiros do vapor Belém:

o vendeiro português, incapaz de tomar gosto por qualquer coisa que não fosse a contagem de seu lucro”, o “colono americano, de um dos estados do sul dos Estados Unidos, que, desgostoso, emigrara logo após a derrota dos Confederados”, o “oficial da marinha peruana, que, discretamente à paisana, viera com ‘intenções amigáveis’ para ter conta do estado das coisas no país vizinho e para reportar ao seu governo os avanços, ou recuos, do Brasil nos esforços de embate a qualquer ofensiva surpresa dos peruanos”, ou o “monge capuchinho, de longas barbas, certamente saudoso dos tempos em que a batina e o escapulário dos religiosos serviam de fronteira intransponível entre o governo e os índios.

Se por um lado alguns trechos dos escritos de Keller esboçam a associação das paisagens amazônicas a uma monotonia maçante e tediosa, da qual o autor fala em mais de uma passagem, por outro, essas representações, principalmente as da fauna e flora amazônicas, resgatam o deslumbramento pioneiro dos primeiros cronistas e um engrandecimento muitas vezes passional e exagerado das belezas naturais das terras brasileiras. Com diferencial de à época já se revestirem do discurso integracionista e modernizador a serviço do capital industrial.

Como o próprio Keller esclarece na ampla introdução aos seus relatos, sua narrativa tem como principal propósito chamar a atenção das autoridades brasileiras para algumas ações prioritárias que, segundo ele, favoreceriam o real progresso e desenvolvimento do Brasil: (i) a abolição da escravatura, então em progressivo estágio de superação embrionária em nações ditas desenvolvidas, que gradualmente a substituíam por mão-de-obra livre; (ii) maiores incentivos à imigração de colonos alemães para o desenvolvimento da agricultura brasileira, assegurando-lhes melhores condições de vida e paridade na aquisição de terras em relação aos grandes latifundiários brasileiros; e (iii) a modernização dos meios de transporte e comunicação que serviriam à integração do vasto território brasileiro, dentre os quais Keller destaca a interiorização das estradas de ferro para o melhor escoamento dos gêneros coletados ou bens produzidos longe das zonas litorâneas.

Quando tangencia a temática social sob a perspectiva identitária da jovem nação em vias de formação, Keller o faz de modo incidental, não deixando de reproduzir as simplificações e reducionismos correntes à sua época.

Se o autor dedicou mais tinta a um fim específico, foi tentando convencer os leitores da viabilidade de seu projeto, aproveitando-se de uma brasilidade incipiente e disforme para incentivar iniciativas estrangeiras em solo brasileiro, de forma a europeizar e modernizar o Brasil. Todavia, o conjunto da obra não perde valor e registrou para a posteridade aspectos humanos, sociais, econômicos e políticos dos lugares por onde a comitiva passou.

Suas observações quanto à Amazônia, embora embasadas quanto aos aspectos naturais, físicos e geográficos (com anotações que demonstram um domínio virtuoso sobre os dados disponíveis à época, coletados por diversas expedições antecedentes devidamente referenciadas no texto original), não deixam de ser superficiais quanto à análise das populações inseridas naquele contexto.

Em especial os povos indígenas, ora infantilizados e romantizados, ora vistos sob o olhar ocidental inclemente, intolerante e por vezes preconceituoso.

Considerado o curto tempo em que se deteve no Amazonas, e a ausência de interesse e formação específicos de Keller para a interpretação de tradições indígenas e seus estilos de vida, por mais valiosos que sejam seus registros para reconstruir parcialmente costumes e conhecimentos esquecidos, nesse tocante não se sustentam em base exclusivamente científica, nem constituem uma etnografia precursora.

São, em verdade, a típica miscelânea dos naturalistas e viajantes dos séculos XVIII e XIX, arautos das ciências universais (e muitas das vezes não mais do que verdadeiros generalistas), a quem se permitia emitir opiniões acerca de todo e qualquer aspecto da realidade.

O que de mais marcante resulta da análise dos escritos de Keller-Lëuzinger são, sobretudo, as suas próprias contradições. Afinal, de um modo de outro, toda obra reflete não apenas a personalidade e os interesses de seu autor, como ainda as influências externas que o moldaram.

Ao tratar dos tipos humanos, é com frequência que se notam esboços de um humanismo solidário que, não muitas linhas em seguida, é contestado por preconceitos gritantes e anticientíficos que o autor parece reproduzir irrefletidamente, ou talvez como estratégia de adequação de seus escritos (demasiadamente técnicos em sua forma original de relatórios com fins específicos) ao mercado literário de viagens muito em voga à época.

É possível reconhecer um espírito aparentemente democrático, justificado em interesses afinados aos do capital industrial europeu, a pretexto dos benefícios da modernização e do progresso civilizadores, mas que contrasta e conflita com a preservação de quaisquer regimes de pensamento e estilos de vida divergentes, sempre fadados a sucumbir diante da marcha irretratável da civilização.

Franz Keller-Lëuzinger foi, sem dúvida, um viajante multitalentoso que merece destaque por sua persistência desbravadora nas expedições de que participou, em uma aparente demonstração de desprendimento material típico dos exploradores mais virtuosos em seus encargos.

Seus relatos de viagem são um manifesto de seu tempo, de suas contradições internas e das iniquidades históricas e sociais do século em que viveu, certamente nos cabendo uma leitura crítica associada a uma interpretação compreensiva.

Não fosse a resiliência e a coragem humanas de se sujeitar a perigos e obstáculos de terras distantes e desconhecidas, aos desconfortos e dificuldades de línguas e costumes diferentes, e a severas restrições de recursos com que se manter, a mente coletiva da humanidade pouco teria avançado em matéria de autoconhecimento.

Homens e mulheres que, desde tempos muito remotos, rumaram ao desconhecido motivados tão-somente pela curiosidade em alcançar o horizonte, a despeito de quaisquer riscos, merecerão sempre a admiração e o respeito por seu legado.

Referências

Adriano Gonçalves Feitosa é mestre pelo Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/UFAM). Bacharel em Direito (FD/UFAM.

 

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