Entenda o julgamento que pode definir o futuro da demarcação de terras indígenas
Assessora do Instituto Socioambiental, Adriana Ramos explica os pontos mais importantes para conhecer a tese do marco temporal, que será julgada pelo Supremo Tribunal Federal nesta quarta-feira(25)
Amazônia Latitude: O que será julgado no Supremo Tribunal Federal (STF)?
Adriana Ramos: O STF analisará uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à terra indígena Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem povos Guarani e Kaingang. É uma ação antiga em que Santa Catarina quer retomar terras contra o interesse dos índios. E o STF atribuiu ao processo o status de repercussão geral.
O que significa esse status?
AR: A atribuição de repercussão geral, que aconteceu em 2019, faz com que a decisão sirva de diretriz para toda gestão federal e todas instâncias da justiça. Ela passa a ser uma referência para todos processos administrativos que dizem respeito ao procedimento demarcatório de terras indígenas. Então, o julgamento alteraria a forma como governo e justiça analisam esses casos.
O que a tese do Marco Temporal tem a ver com esse julgamento?
AR: Segundo esta tese, apenas os povos que estivessem em suas terras ancestrais no dia da promulgação da atual Constituição – outubro de 1988 – teriam direito à posse do território. Caso não estivessem nas terras, esses povos precisariam demonstrar alguma disputa judicial ou conflito pelo território na mesma data.
Por que ela prejudica a demarcação de terras indígenas?
AR: Ocorre que muitos povos foram expulsos pelo uso da violência. Além disso, até 1988, os indígenas eram tutelados pelo Estado, não tendo autonomia para entrar na justiça de forma independente para lutar por seus direitos. Então, eles não têm como demonstrar situações de disputa judicial e conflito.
De onde veio essa tese?
AR: Essa tese do marco temporal foi inventada por setores interessados na exploração das terras indígenas, visando restringir os direitos dos povos indígenas. O momento em que uma terra passa a ser ocupada de modo tradicional é irrelevante para o estabelecimento dos direitos territoriais.
O marco temporal das terras originárias tem respaldo na Constituição Federal?
AR: No Instituto Socioambiental, entrevistamos vários constituintes [representantes que elaboraram a constituição] e todos foram unânimes ao dizer que o marco temporal não faz sentido, não sendo uma questão presente no debate da constituição na época. Portanto, o marco temporal descaracteriza o estabelecido na Constituição, que fala das terras originárias.
Como a Constituição trata essas terras?
AR: Ela reconhece a terra indígena independentemente do processo demarcatório, que é a forma como o Estado reconhece o direito que a constituição assegura. Além disso, o STF já reconheceu que não existe índio sem-terra. Por isso, a tese do marco temporal não tem embasamento na Constituição; vai contra seus princípios.
Por que os povos indígenas são contrários à tese do marco temporal?
AR: Porque é uma tese de uma interpretação equivocada da Constituição Federal, que fragiliza os direitos dos povos indígenas. Ela foi criada para atentar contra os direitos destes povos, podendo forçar revisões de processos de reconhecimento territorial. Essa tese também pode sinalizar uma flexibilização dos direitos, o que é perigoso e não desejável.
O marco temporal pode acirrar conflitos por terras na floresta Amazônica?
AR: Tanto o marco temporal quanto outros projetos de lei, como a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, que são pauta das políticas indigenistas no Brasil hoje, tendem a acirrar conflitos e gerar novos desmatamentos. A tentativa de alterar o marco regulatório dos direitos indígenas sinaliza para os que atuam na ilegalidade a possibilidade de regularizar invasões ilegais. O marco temporal pode forjar condições para que os indígenas tenham seus territórios questionados.
A quem interessa a tese do marco temporal?
AR: Às pessoas ligadas ao mercado de terras. O Brasil é um país com alto índice de concentração fundiária, por isso a questão agrária acaba sendo mais determinante nas relações de poder do que em outras atividades econômicas.
Por que o agronegócio é a favor desta tese?
AR: Até faz sentido os envolvidos no mercado de terras privilegiarem a disputa sobre os 13% do território destinado aos povos indígenas no Brasil. Mas não faz o menor sentido para o agronegócio-produtor, porque ele não precisa disso. É uma burrice atentar contra os direitos indígenas. Além de toda a diversidade sociocultural, é grande o benefício coletivo que as terras indígenas têm cumprido na Amazônia, com um papel relevante na manutenção de cobertura florestal, necessária para o equilíbrio climático e para o regime de chuvas. Fatores que favorecem a todos; inclusive ao agronegócio.
#MarcoTemporalNao https://t.co/17zaDAY4FS
— Adriana Ramos (@naosoumaismess) August 24, 2021
Adriana Ramos é assessora do Instituto Socioambiental desde 1995. Estudou comunicação social e atua no campo das politicas públicas socioambientais há mais de 25 anos. Representou o Forum Brasileiro de ONGs no Comitê Orientador do Fundo Amazônia de 2008 a 2013 e foi membro da Diretoria Executiva da Associação Brasileira de ONGs (Abong)
Foto de destaque: Mídia Ninja