Brasil e EUA pretendem criar fundo de US$100 milhões para desenvolvimento econômico na Amazônia

Uma carta de intenção entre o Ministério do Meio Ambiente e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), foi divulgada em 18 de março. Nela, os dois países afirmam ter colaborado para a preservação da Amazônia durante décadas e que “ambos os países compartilham a noção de que o engajamento e a parceria com o setor privado são pontos críticos para o desenvolvimento de um modelo de produção sustentável e voltado para o mercado na região da Amazônia”. Enfatizam que a falta de acesso ao crédito e financiamento impedem o empreendedorismo, o surgimento de cadeias de produção, inovação e start-ups na região. Para isso, pretendem criar um fundo de investimento com US$100 milhões provenientes do setor privado, que servirão para financiar empreendimentos que promovam a sustentabilidade, o crescimento econômico, a preservação das florestas e da biodiversidade, assim como o bem-estar de povos tradicionais.

Segundo o site da agência, sua presença no Brasil data de 1962, promovendo ações pela melhora da saúde, educação, segurança alimentar, saneamento básico, direitos das crianças e adolescentes, combate ao tráfico humano, desenvolvimento de micro empreendimentos e preservação do meio ambiente. O trabalho de maior destaque desenvolvido no Brasil pela USAID foi o auxílio à consolidação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), criada em 1972 para combater a fome no país. A agência afirma ter colaborado com o aumento de aptidões da EMBRAPA para o desenvolvimento de pesquisas.

A carta de intenção surge em um momento polêmico para a política ambiental brasileira – a demarcação de terras indígenas e quilombolas passou para o Ministério da Agricultura, em um claro desvio de competência; o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é acusado pelo Ministério Público de São Paulo de alterar ilegalmente o plano de manejo de uma área de proteção ambiental durante seu mandato como Secretário de Meio Ambiente do estado; as taxas de desmatamento e a degradação do meio ambiente na Amazônia têm batido recordes ano após ano. Vista a cadeia de fatos, é necessário compreender os motivos por trás dessa intenção de investimento na Amazônia Legal.

A USAID

USAID leva ajuda humanitária à Guatemala. Foto: divulgação.

Criada em 1961 durante o governo de John F. Kennedy, a USAID nasce do sucesso do plano Marshall, que consistia em dar suporte financeiro para que a Europa se reerguesse dos escombros após a Segunda Guerra Mundial. Operando nessa lógica, a agência diz captar verba do setor privado para levar ajuda humanitária e promover o desenvolvimento econômico e social de países alinhados aos Estados Unidos, criando mercados que possam absorver a produção americana e sociedades funcionais pautadas no capitalismo.

Classificada como uma agência não governamental, levou ajuda humanitária para diversas regiões ao redor do mundo, mais recentemente, aos conflitos no Oriente Médio.

Nos últimos 25 anos, esteve presente na América Central e Latina – dois casos muito polêmicos. Em 1996, durante o governo de Alberto Fujimori, no Peru, a USAID colaborou com as políticas de controle demográfico estabelecidas pelo estado. Proporcionou um fundo de US$40 milhões captados do setor privado para ONGs peruanas envolvidas no plano de emergência. Disfarçada de ação humanitária, ajudou essa política a esterilizar cerca de 300 mil mulheres – existem relatos de mulheres forçadas a fazer a operação. A USAID forneceu treinamento para médicos militares e civis para que estivessem aptos a executar as operações de vasectomia e laqueadura, além de suprir os materiais necessários.

O envolvimento com a campanha de esterilização de Fujimori foi negado e rebatido pela agência, classificando as acusações contidas no documento produzido pela investigação do Ministério da Saúde do país como “oficialmente descreditadas”. O relatório, porém, foi publicamente aceito e aprovado pela Comissão de Direitos Humanos do Congresso peruano.

Em 2009, a USAID esteve envolvida na criação de uma rede social semelhante ao Twitter voltada para Cuba. Segundo reportagem da Associated Press, a rede ZunZuneo tinha como objetivo influenciar seus usuários a organizar manifestações em oposição ao governo. O projeto executado na administração Obama durou cerca de dois anos e angariou dezenas de milhares de usuários, numa tentativa de contornar o rígido controle da internet feito pelo regime cubano. Primeiro, a rede levantaria público na ilha e depois incentivaria a dissidência – uma das estratégias usadas foi a suspeita aquisição de 500 mil números de celulares cubanos para compor as bases da rede social.

Os usuários do ZunZuneo, no entanto, não estavam cientes de que a rede estava vinculada ao Departamento de Estado Americano, e nem mesmo que “empreendedores” estavam coletando suas informações demográficas na esperança de um dia usá-las para fins políticos. É incerto se o projeto foi levado a cabo dentro das leis estadunidenses, que requer autorização presidencial por escrito de atividades sob cobertura e notificação ao congresso. Representantes da USAID se negaram a dizer de quem partiu a autorização e se a Casa Branca estava ciente da operação.

Amazônia internacional

Parauapebas, Pará (PA), 2017 – Complexo Carajás. Vista aérea da Mina N4E. Foto: Ricardo Teles

Em março, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, instituição internacional que tem como objetivo promover o pensamento crítico por meio de uma perspectiva emancipatória em prol das aspirações dos povo, publicou o dossiê Amazônia Brasileira: a pobreza do homem como resultado da riqueza da terra, onde expõe a atuação do setor privado na Amazônia e afirma que há um grande projeto para reeditar o papel da América Latina na geopolítica mundial como exportadora de matéria prima bruta, subordinada aos interesses de grandes centros industriais.

O documento aborda a questão em três tópicos: mineração, agricultura e biodiversidade. No quesito mineração, mostra que, de acordo com a receita líquida do ano de 2017, as maiores mineradoras no Brasil são: Vale (BR), HydroNorte (BR/HO), CBMM (BR), Magnesita (EUA), Anglo American (ING), Albras (BR/JP), Alcoa (EUA), Mineração Maracá (CAN), Kinross (HO/BR), Hydro Paragominas (NOR/AUS) e MRN (BR). As maiores exportações correspondem às commodities de ferro (44,4%), seguida pelo cobre (11,1%), que são vendidos em grande escala para China e Japão. A maior parte (78,3%) é vendida in natura, sem qualquer beneficiamento que possa agregar valor ao produto, sendo a Vale do Rio Doce responsável pela maior fatia das exportações no Norte do país (62%). A atuação da Vale reforça o papel do Brasil enquanto fornecedor de matéria prima, deixando para trás apenas barragens de rejeitos de minério, protagonistas das piores tragédias ambientais do país na atualidade.

O governo brasileiro tem tentado facilitar a ação dessas empresas nos últimos anos. Em 2017, o governo federal, através do Decreto 9.142, tentou extinguir a Reserva Nacional de Cobre e Associados (RENCA), criada durante o período da ditadura militar (1964-1985), para garantir a soberania brasileira sobre as reservas de minério na Amazônia. O documento do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social relata que a intenção de entregar os recursos naturais ao capital privado também ficou evidente por meio de diversas medidas para flexibilizar o licenciamento ambiental, autorizar mineração em terras indígenas e em áreas de fronteira. Em 2018, o decreto 9.142/2017, de Temer, foi revogado devido à grande repercussão internacional e pressão de movimentos ambientalistas e sociais, mantendo-se, de forma originária, o decreto que criou a reserva da Renca.

O agronegócio na Amazônia tem crescido em ritmo acelerado desde a década de 1970, segundo informações do dossiê. A produção de madeira na região amazônica, por exemplo, saltou de 3% em 1960 para 27% em 1990, resultado das políticas de industrialização do Norte durante a ditadura militar. Entre outros dados alarmantes, o documento aponta para a destruição de 50 mil km² do cerrado brasileiro na última década. Em 2011, a parcela de terra agrícola ocupada na Amazônia era de 9,5 milhões de hectares, sendo 68% destinado ao cultivo de soja. Em 2016 havia mais de 85 milhões de cabeças de boi, três para cada habitante da Amazônia brasileira. Por outro lado, existem cerca 100 milhões hectares protegidos em Unidades de Conservação e 110 milhões de hectares demarcados ou em processo de identificação como território indígena – locais onde os índices de desmatamento giram em torno de 2%.

As multinacionais Cargill, Bunge, ADM, entre outras, são os grandes monopólios presentes no setor de exportação, o que faz da região uma grande importadora de alimentos, já que toda produção de soja e da pecuária é voltada para fora. O dossiê também relata que, dos 350 milhões de hectares destinados ao agronegócio no Brasil, as lavouras ocupam 64 milhões de hectares, enquanto a pecuária corresponde a 159 milhões de hectares, dos quais 50 milhões são pastagens degradadas, altamente improdutivas.

Em contrapartida, parcerias como o Fundo Amazônia, firmada durante a 12ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP-12), em 2006, tem apresentado bons resultados. O Fundo Amazônia capta recursos de países desenvolvidos – atualmente, Noruega e Alemanha – para projetos de prevenção, monitoramento, combate ao desmatamento e promoção da conservação e uso sustentável no bioma amazônico. Criado em 2008 a partir do Decreto Nº 6.527, contribui para o alcance das metas do Plano Nacional sobre Mudanças do Clima, com foco principal em reduzir o desmatamento em 42% até 2020, capta recursos através do BNDES, que também é responsável por gerir os investimentos. As doações são voluntárias e podem ser feitas por qualquer empresa, instituição multilateral, organização não-governamental e governos. Ao receber uma doação o BNDES emite diplomas nominais e intransferíveis, reconhecendo a contribuição dos doadores.

Segundo o site do Fundo Amazônia, desde sua consolidação houve uma redução de 11% na taxa de desmatamento da Amazônia no período de 2009-2017, em paralelo a uma redução de 17% da área desmatada. Em outras áreas, afirma ter contribuído para uma maior participação da Amazônia no PIB brasileiro (2009-2015); aumento de 19% no volume produzido e 18% da receita gerada pelo conjunto dos produtos do extrativismo monitorados (2009-2016); aumento de 90% na área de Unidades de Conservação federais e Terras Indígenas com instrumento de gestão territorial entre 2009 e 2017; e piora do indicador que monitora o desmatamento em áreas protegidas entre 2009 e 2016 (incremento de 12% da taxa anual de desmatamento), devido ao substancial aumento do desmatamento em unidades de conservação estaduais.

Diferente do Fundo Amazônia, que tem como principal objetivo a conservação do meio ambiente na região amazônica, a carta de intenção firmada entre o Ministério do Meio Ambiente brasileiro e a USAID pretende investir no desenvolvimento econômico da região como alternativa ao desmatamento e à degradação dos biomas. Mas tendo em vista atuação da USAID nos dois casos mencionados e a ação do capital estrangeiro na Amazônia, cabem questões e monitoramento sobre as implicações desse possível investimento de US$100 milhões para a Amazônia – como será gerido, quem serão os investidores e como será integrado à região em paralelo aos projetos já existentes?

Você pode conferir a  carta em inglês clicando aqui.

 

A ilustração em destaque retrata a visita do governo Bolsonaro à Washington, onde firmaram diversas parcerias comerciais. A arte é de Sandro Schutt, editor e ilustrador da casa.
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