O passado milenar da Amazônia pode ser resposta aos problemas atuais
No rio Madeira, indígenas moldaram a floresta e a História da Amazônia há mais de 8 mil anos.
Os problemas atuais que vivenciamos na Amazônia são tão emergenciais e violentos que ficamos presos às memórias e notícias rápidas da nossa História recente. O presente é urgente nas cidades amazônicas, no entanto, seja no Pará, Rondônia ou em Beni na Bolívia, precisamos lembrar que estamos cotidianamente pisando sobre resquícios muito mais antigos, sobre “cidades” indígenas milenares.
Esse é o alerta que fazem recentes pesquisas arqueológicas divulgadas no Boletim Arqueologia do alto rio Madeira, do Museu paraense Emílio Goeldi, em 2020, e na série documental da Sesc TV de 2022 Amazônia: arqueologia da floresta, sobre o trabalho de escavação no sítio Monte Castelo em Rondônia, conduzida pela equipe do arqueólogo Eduardo Góes Neves e em parceria com os indígenas Tupari.
Há um perigo sutil, porém desastroso, em desconhecer esta História milenar, que é ficarmos presos a mitos fundadores de nossas cidades ligados somente à História do colonizador ou do Estado brasileiro.
Rondônia é um exemplo dessa tentativa de apagamento da presença indígena pré-colonial. Sua fundação é associada aos bandeirantes, missionários jesuítas do século XVII e XVIII ou aos grandes projetos nacionais, como a construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, terminada no século XX.
Ecoando o historiador John Monteiro, é fato que, por muito tempo, a História do Brasil raramente analisou e divulgou cenários que incluíam populações indígenas habitando a Amazônia há mais de 10 mil anos. Segundo as pesquisas divulgadas recentemente, esse atraso analítico ocorreu em razão da tardia consolidação da Arqueologia brasileira, que, até os anos 80, considerava a floresta amazônica uma área periférica, inóspita, com severas limitações ambientais e, por isso, pouco habitada. Em comparação, a região dos Andes era considerada mais “avançada” por possuir características nucleares, agricultura e “civilizações”.
Hoje, no entanto, com o avanço das pesquisas arqueológicas especialmente nos rios Madeira, Mamoré e Guaporé — fronteira pan-amazônica entre Rondônia e o departamento de Beni na Bolívia —, e com o crescente diálogo entre disciplinas como História, Antropologia e os saberes indígenas, a ideia de uma Amazônia de ocupação humana recente mudou. A Amazônia é território de organização complexa, diversa e milenar.
A floresta em pé
As pesquisas divulgadas pelo Museu Goeldi e pela TV Sesc apontam que o rio Madeira — principal afluente do rio Amazonas e que nasce na região dos Andes —, é um dos mais importantes berços contínuos da expansão de populações indígenas, línguas e culturas alimentares não só da Pan-amazônia, mas do continente americano.
Eduardo Góes Neves, arqueólogo da Universidade de São Paulo (USP) que há 30 anos se dedica à arqueologia da Amazônia e há 10 trabalha em escavações no rio Madeira, tem contribuído para a compreensão de que a floresta amazônica foi inteiramente manejada e transformada pelos povos indígenas que a habitam de forma contínua, duradoura e estável há mais de 10 mil anos.
A partir das pesquisas de Neves, temos mais clareza de que uma floresta diversa, em pé e moldada pelas mãos humanas, é nossa maior herança, tão importante quanto as pirâmides eram para os Astecas.
Quando afirmamos que populações indígenas moldaram a floresta há milênios, partimos de evidências como a construção de montículos de terra, canais, estradas e até ilhas artificiais; tecnologias de manejo da agrobiodiversidade da região.
Este é o caso do sítio arqueológico Monte Castelo, em Rondônia. O sítio é uma ilha artificial, construída há mais de 6 mil anos por indígenas a partir da junção de cascas de caracóis e cinzas vegetais que davam firmeza ao solo alagadiço, e que serviu como local estratégico para moradia e para a atividade pesqueira.
O processo de domesticação de plantas, como o amendoim e a mandioca que ainda hoje alimentam a região, também é um exemplo das dinâmicas de transformação que os povos da floresta exerceram sobre a natureza ao longo dos milhares de anos de ocupação.
No entanto, houve uma redução da biodiversidade manejada pelos indígenas para plantar soja e gado. Em uma das entrevistas na série, Neves argumenta que há muito o que aprender com esses povos milenares.
“Não é que nós temos que viver como eles viviam no passado. Mas entender quais eram as suas estratégias de manejo do meio ambiente, quais plantas eles consumiam, são informações referenciais para pensarmos nossas formas contemporâneas de ocupação”, explica.
Essas “cidades” antigas da Amazônia, com mais de 10 mil anos, encravadas na floresta, conectadas por caminhos de rios e moldadas pela sabedoria dos povos indígenas, possuem muito o que nos ensinar. Elas podem nos ajudar a viver hoje na Amazônia para além da destruição, como única forma de viver nela.
Longe da resolução total e rápida dos nossos problemas, a mudança de olhar para a nossa região, ofertada pelo Arqueologia, certamente começa por ouvir e trabalhar lado a lado com as populações indígenas que ainda guardam em si as memórias e os saberes da floresta em pé.
A mudança de olhar passa, também, por conhecer e ressoar a História da Amazônia para além das fronteiras nacionais e para além do tempo recente, a começar pela História milenar e coletiva que nós, povos pan-amazônicos, temos em comum.
Marcela Gomes Fonseca – Historiadora paraense e mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia da UFPA. O objetivo desta série é divulgar reflexões e produções científicas na área de História da Pan-Amazônia, a fim de conectar os leitores a uma História coletiva e pública da Amazônia para além das fronteiras brasileiras.