Belo Monte como sinônimo de Morte

Pichação: Morte Energia

DOI: 10.33009/amazonia2021.11.7

A pergunta que fica é: de quantas vidas, verdadeiras e concretas, é feito o discurso, abstrato e falso, do progresso?

Depois de estudar-pesquisar por 9 anos a Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, podemos defini-la como sinônimo de MORTE. Destrinchando letra por letra esta palavra e, definindo o “destrinchamento”, tem-se que: “M”, refere-se à “mudança abrupta”, portanto violenta; “O” significa “ordenamento perverso”; “R” de reestruturação dos territórios e das vidas; “T” de “territorialização exógena”; “E” de espoliação e expulsão.

Pichada em um muro com os dizeres: Morte Energia.

Pichação em protesto contra a Norte Energia em muros na cidade de Altamira. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Belo Monte está localizada na latitude 40 mil vidas desterritorializadas º, expulsas de suas casas, obrigadas a abandonar suas vidas, tanto no campo e nos beiradões, como na periferia da cidade de Altamira. A UHE Belo Monte, obra de 40 bilhões de reais, faz fronteira em graus, minutos e segundos com a antiga vida digna de Antônia e Raimunda. Exatamente na divisa entre Brasil e Amazônia. Quem são Antônia e Raimunda? Vou apresentá-las por meio de suas próprias falas:

Belo Monte é um projeto de corrupção, de propinas e corrupção, de crimes, de irregularidades. Então, tudo isso é uma morte para nós. Nós deveríamos viver com dignidade, um governo desse que se deixa de cumprir as regras, a cartilha da ditadura, a cartilha das corporações, a cartilha do grande capital é um governo que realmente é um governo criminoso! É um governo ditador! É um governo que não merece o apoio da população desse país que tanto tem sofrido e lutado pela democracia, pela liberdade. E, esses projetos são projetos ditatoriais! Então, tudo isso veio trazer para Altamira hoje a desfiguração total da nossa cidade, jogar as famílias para qualquer lugar, violar os direitos das famílias, isso não se faz, isso não tem remédio, isso não tem perdão! Isso não tem perdão!

Depoimento de Antônia Melo, Coordenadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre, moradora antiga da cidade de Altamira e atingida socioambiental por Belo Monte.

No domingo eles queimaram a casa, na segunda eles me ligam e eu vou na terça, porque eles me ligaram segunda perguntando se eu tinha retirado “meus resíduos”. Eu falei: “eu vou cedo, tiro a madeira que eu quero pego minhas coisas e boto no barco, quando eles chegarem lá, está desocupada a casa para eles tomarem de conta né?

Mas estava embargado (refere-se ao processo de desapropriação), só que quando eu cheguei lá, eles já tinham queimado. Eles queimaram no domingo e me ligaram na segunda. Depoimento da ribeirinha Raimunda Gomes, outra atingida socioambiental por Belo Monte.

A partir dos relatos aqui apresentados, não é excessivo, de modo algum, afirmar que Belo Monte é sinônimo de MORTE. De morte física, psíquica, sócio-identitária. É uma autêntica representante de “violência identitária”. A que milhares de moradores de Altamira e região foram expostos. A Usina, como expressão de um “grande projeto desenvolvimentista”, impôs um ordenamento perverso aos povos que ousaram nascer, se criar e ter suas vidas ali onde posteriormente ela se ergueu, como imponente objeto técnico espoliador. A Usina promove a reestruturação da vida, na escala das microvidas, expressas em seus cotidianos mais banais, a dos territórios (escala das mesovidas), presente nos mais diversos e ricos lugares que deixaram de existir.

O fato é que esses “grandes projetos” acabam por promover, a partir da intensidade de suas dinâmicas, a de(re)estruturação da “condição espacial” de distintos e múltiplos sujeitos. Promovem assim uma certa “morte espacial” destes, morte essa não somente expressa pela perda de uma propriedade ou pela perda de uma casa (de um imóvel). A “morte”, a que estamos nos referindo, é expressa a partir da perda de referência material e simbólica de determinados sujeitos sobre um espaço; o que implica, indissoluvelmente, a perda de sua “condição espacial”, de sua espacialidade.

Esses sujeitos, os atingidos socioespacialmente, tiveram não apenas sua casa (seu ponto de apoio logístico, sua moradia) subtraída e destruída; algo muito maior foi-lhes arrancado. Trata-se da perda de seu “território recurso” e, principalmente, de seu “território abrigo”. O subtraído e destruído desses sujeitos são: sua dimensão cotidiana de vida, seu modo de vida e suas referências de mundo; bem como, suas lembranças (lembranças feridas), sua “lugaridade” (lugaridade agredida) e “territorialidade” (territorialidade perdida), seu sentido de reconhecimento existencial e identitário.

A “espoliação” de moradores de Altamira de suas casas e bairros, de suas comunidades, de suas aldeias, em síntese de suas antigas vidas, foi devastada pela imponência de uma territorialização de uma mega Usina Hidroelétrica, poderosa técnica e tecnologicamente, pensada e construída por agentes exógenos à região (para obedecer a regra histórica), viabilizadores do modo de agir do (grande) capital – nacional ou não; e do Estado brasileiro – conservador ou não.

A resolução dos impactos socioambientais gerados, a partir dos grandes projetos, não pode ser pensada somente enquanto compensação monetária, a partir da lógica “destruímos depois pagamos-indenizamos-compensamos”. Esse modelo de geração de energia, adotado no Brasil e outros países da América do Sul deve ser repensado. Abandonado mesmo! O período técnico atual já nos permite conceber outro meio técnico, mais apropriado às necessidades de nosso tempo.

Uma embarcação em meio a uma área alagada do rio Xingu. Ao fundo há árvores e terra vermelha.

Ilhas desmatadas na área de alagamento após o barramento do rio Xingu.(Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

E, o mais importante, é preciso certificar-se de algo sumamente importante; nem tudo é passível de ser compensado. Os impactos promovidos pelos grandes empreendimentos técnicos no mundo atestam isso. Em outras palavras, não é possível falar em desenvolvimento sem o alcance e a promoção de uma plena satisfação socioespacial. “Projetos desenvolvimentistas” NÃO GERAM DESENVOLVIMENTO. As transformações causadas pelas obras e pela dinâmica da UHE Belo Monte Belo, bem como os impactos à escala da vida das pessoas direta e indiretamente atingidas pela obra, vêm sendo denunciados por organizações socioambientais, movimentos sociais, lideranças da região da Transamazônica e Xingu e pesquisadores independentes antes, durante e após a construção da Usina.

Há, portanto, um completo desencontro entre o discurso do Estado brasileiro e do empreendedor de Belo Monte e o das populações que foram socioespacialmente atingidas pelo grande projeto em questão. Os primeiros dizem ser Belo Monte “o progresso”, o caminho para o desenvolvimento. Já os segundos a têm como “destruidora de espacialidades, violadora de direitos, o avesso do desenvolvimento, a natureza insana do que se autointitula progresso”. A pergunta que fica é: de quantas vidas, verdadeiras e concretas, é feito o discurso, abstrato e falso, do progresso?

Marcel Padinha, é geógrafo, professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará, campus de Cametá. Fez sua tese de doutorado sobre os impactos socioespaciais da UHE Belo Monte

 
 

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