Grandes projetos como Belo Monte não nos servem mais, avalia pesquisador

Foto do canteiro de obras de Belo Monte

DOI: 10.33009/amazonia2021.11.13

A vida de milhares de pessoas em Altamira (PA) piorou rapidamente com a construção de Belo Monte, o que seria motivo suficiente para revisar o modelo de desenvolvimento baseado em grandes projetos. Esta é a avaliação do pesquisador Marcel Padinha, 38, professor da Faculdade de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Autor da tese Grandes objetos na Amazônia: das velhas lógicas hegemônicas às novas centralidades insurgentes, os impactos da Hidrelétrica de Belo Monte às escalas de vida, premiada pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia, Padinha investigou como ficou a vida dos atingidos pela hidrelétrica.

Para o pesquisador, a obra bilionária manteve a região pobre e trouxe consequências impossíveis de se precificar, como altos índices de violência, desterritorialização e quebra de laços sociais. É uma combinação de fatores negativos que fazem a população desejar a vida que tinham antes de Belo Monte. Os prejuízos, porém, só não foram maiores graças à atuação de movimentos sociais, que demonstraram ser exemplos de organização e de luta por direitos, avalia Padinha.

Vários níveis de pedras soltas, formando um escada grande. Tratores amarelos parecem pequenos comparados às escadas de pedra.

Canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte, onde hoje ficam as turbinas de geração de Energia. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Como Belo Monte virou seu tema de pesquisa de doutorado?
Em 2009, entrei na Universidade Federal do Pará (UFPA) como professor no campus de Altamira. No tempo em que morei lá, tive a oportunidade de conhecer Altamira antes de Belo Monte. Na condição de professor, me aproximei da hidrelétrica como objeto para que eu pudesse seguir nos estudos a partir de uma pesquisa de doutorado. Sempre atuei em partidos políticos e movimentos sociais, e quando cheguei em Altamira, vi a luta do Xingu Vivo Para Sempre, Mulheres de Altamira, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e comecei a acompanhá-la de perto. O que me empolgou nesses movimentos, em específico o Xingu Vivo, foi a seriedade. Era curioso que ele funcionasse como instância de reivindicação da sociedade sem ter esse poder; funcionava como uma antessala da Defensoria Pública e do Ministério Público Federal (MPF). O Xingu Vivo sistematizava a demanda da população da periferia, dos camponeses, dos ribeirinhos, dos indígenas, e levava para as autoridades. Também organizava passeatas, audiências públicas, protestos. É uma atuação bem articulada nacional e internacionalmente. Tudo isso me interessou bastante.

Você propôs entender os impactos sociais de Belo Monte a partir das escalas da vida da população regional. Quais são essas escalas?
Escala é um conceito usado na geografia desde os anos 60 e 70, ganhando corpo teórico nos 80s. De forma geral, a escala pressupõe fazer um determinado recorte dentro da realidade e falar a partir dele. Na minha pesquisa, pratiquei um esquecimento coerente sobre as outras etapas do percurso, tendo como foco informações centrais dos grupos impactados. Eu poderia falar de Belo Monte como se faz – quais são os pontos positivos e negativos – mas isso não me interessou. Foquei no fenômeno técnico que foi a construção da hidrelétrica, esse objeto grandioso, e os impactos na população sócio-espacialmente atingida, como ribeirinhos, pessoas que moravam na periferia e tiveram que ser removidas por causa da inundação, camponeses e grupos indígenas. Belo Monte foi construída sobre esses territórios. Este é o fenômeno que quis dar visibilidade: os impactos gerados pela grande obra a esses sujeitos que, historicamente, são invisibilizados.

E quais foram os impactos?
Nos grupos indígenas, o impacto foi o mais violento porque se tratou da desestruturação de um grupo étnico muito enraizado e territorialmente ligado às suas posses e às suas identidades. E o empreendimento modificou isso. Durante anos, a Norte Energia deu dinheiro aos povos indígenas para quebrar sua resistência; milhares de reais por mês para gastar com o que quisessem. Isso alterou a estrutura da organização da vida nessas comunidades. Pararam de plantar, de pescar, de construir. A estratégia usada pela Norte Energia não tinha nada a ver com o Plano Básico Ambiental (PBA), pensado para dar suporte aos territórios indígenas. O que aconteceu foi um processo de desculturalização muito intenso e violento.

Até em termos de indenização e reassentamento, os indígenas foram os mais prejudicados. Foi construído um reassentamento urbano coletivo (RUC) para atender os povos indígenas dentro da cidade, sendo o último a ficar pronto. Em um primeiro momento, eles nem tinham sido contemplados com um RUC. Depois, a empresa entregou moradias que não tinham nada a ver com o modo de vida dos indígenas. A situação mostra que há uma diferença na concepção do uso do espaço entre empreendedor e grupos indígenas. Esses povos foram pensados mais como sujeitos da periferia urbana do Brasil, tendo sua condição territorial e identitária ignorada.

Grupo de indígenas pintados de tinta preta e vermelha sentados segurando flechas.

Indígenas Arara da Volta Grande durante ocupação de um dos canteiros de obras da hidrelétrica de Belo Monte. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

E em relação às outras parcelas da população de Altamira?
Toda população de Altamira foi afetada. Veja o exemplo da implantação e expansão da rede de drenagem, do abastecimento de água e da rede de tratamento de esgoto. Esse processo demorou anos para ter um desfecho porque houve um jogo de responsabilidade entre o município e a empresa. A Prefeitura dizia que não era com ela, alegando que se tratava de compensação da obra – responsabilidade da Norte Energia. Já a empresa afirmava que devia apenas depositar o dinheiro, sendo a prefeitura responsável pelos reparos. A cidade dobrou a quantidade populacional entre 2011 e 2014 e a empresa implantou uma rede de abastecimento de água e de esgoto, mas não a conectou às casas. Não serve para nada. Outro impacto foi o aumento do custo de vida. Vou dar um exemplo pessoal. Na casa onde eu morava, pagava um aluguel de 600 reais. Quando Belo Monte chegou, o aluguel foi para R$ 3 mil reais. Houve aumento no custo de vida, marcado no preço da terra, da moradia, da aquisição de casas, da cesta básica. A cidade não estava preparada para encarar Belo Monte.

Houve impactos na mobilidade urbana e nos índices de violência?
Os ônibus usados no processo de construção provocaram grandes congestionamentos na cidade. Antes, Altamira não conhecia tráfego pesado e acidentes de trânsito. A morte de uma estudante, atropelada por uma dessas caçambas, foi um evento bastante relevante. Houve também aumento na violência urbana. Durante o processo de construção da usina hidrelétrica, Altamira saiu da condição de cidade classificada como tranquila e passou a ser a cidade mais violenta do Brasil.

São efeitos impossíveis de precificar. Como indenizar por consequências tão complexas?
Exatamente. Alguns especialistas que acompanharam a obra desde o começo, como o procurador Felipe Pontes, a jornalista Eliane Brum, a antropóloga Sônia Magalhães, observam que algumas compensações socioambientais não foram incorporadas aos gastos da obra. Veja o caso da educação em Altamira. Boa parte dos jovens que estudavam precisou sair da escola para ajudar no sustento da família. E isso causou um atraso em termos de preparo para a universidade e para o mercado. É um atraso que não se resolve apenas voltando a estudar no outro ano; a matemática de compensação não é a mesma. E isso não foi incorporado no orçamento da obra. E foram 38 bilhões de reais, certamente uma das obras mais caras do país. Não é pouco dinheiro.

Na sua pesquisa, você avalia que em Belo Monte houve um estado de exceção. Por quê?
É importante voltar no passado para fazer um contraponto com a construção da usina hidrelétrica de Tucuruí, que foi também uma obra de grandes impactos socioambientais, mas é produto do regime militar. Belo Monte foi tocada pelo governo Lula e pelo governo Dilma, considerados os mais progressistas nos últimos 30 anos. Espantava, então, quando grupos contrários à construção da hidrelétrica de Belo Monte receberam interditos proibitórios [mecanismo legal contra ocupações de imóveis ou propriedades]. Ou seja, militantes do grupo Xingu Vivo não podiam se aproximar dentro de um raio de dois quilômetros do empreendimento; caso contrário, receberiam ordem de prisão. Além disso, há a presença da Força Nacional durante boa parte da construção. A obra teoricamente era privada, mas garantida por uma força policial do Governo brasileiro.

Há também responsabilidade da Norte Engenharia neste autoritarismo?
Classifico como autoritário o processo de remoção das famílias. Muitos moradores chegavam em casa e a encontravam destruída. Uma das atingidas que acompanhei na pesquisa, a Raimundo Gomes, tinha uma casa no rio que foi destruída e incendiada. A demolição aconteceu ainda durante a suspensão feita pelo IBAMA dos processos de remoção. É o acontecimento que considero mais totalitário da construção de Belo Monte. Parte da responsabilidade fica com a Norte Energia, mas não é exagero citar o IBAMA. O instituto poderia ter sido mais enérgico nas suas intervenções, ao invés de apenas estabelecer multas, das quais o empreendedor recorria e as transformava em luta judicial. Acredito que o IBAMA tinha condições de fazer uma intervenção com cobranças mais incisivas.

Você entrevistou as pessoas atingidas pelas obras. Houve posições contrárias e favoráveis. Como interpretar essa aparente contradição?
É uma questão que pode parecer complexa, mas quando você analisa o contexto geográfico e socioeconômico em que Altamira estava inserida à época, você percebe que não é tão difícil de fazer esse balanço. Belo Monte chega num contexto e numa cidade como tantas outras na Amazônia, com um número de desempregados ou subocupados muito grande. Você ganha boa parte do apoio popular quando um grande empreendimento chega com oportunidades de emprego e renda. Então esse é um ponto do apoio de determinada parcela da população a Belo Mundo. O outro ponto é que algumas pessoas não estavam contentes com a estrutura física de suas casas. Aí o debate se complexifica. Boa parte das entrevistas que fiz eu perguntava para as pessoas: “Você está contente com a sua casa?” Muitos disseram que sim. E eu perguntava em seguida: “Você preferia o local novo onde você está morando, que é um RUC afastado do centro, ou onde você morava antes, no centro?” A maioria preferia o local anterior.

Por que essa preferência?
Eles preferiam ter casa no centro de Altamira onde moravam porque conseguiam fazer as coisas andando, a farmácia, a padaria, o açougue, os bancos, o comércio. Era tudo próximo de casa, o que reduzia muito o custo de vida. Também houve casos em que a casa demolida era uma moradia superior à recebida. Muitos reassentamentos não consideravam como se desenvolvia o cotidiano das pessoas. A gente tem a cultura da rede aqui e as casas pré-moldadas que a empresa fez não permitiam montar a rede, com perigo de prejudicar a estrutura. O aumento da tarifa de energia elétrica é outro exemplo. O preço da energia nos RUC é muito caro, e são pessoas com poucos pontos de luz. Então, você tem o aumento do custo de vida, a distância do centro e a fragmentação dos laços de solidariedade apontados como fatores negativos. A pergunta cabal que fiz no questionário era: “Você queria a vida antes de Belo Monte ou a vida após Belo Monte?” A maioria das famílias respondeu que preferia a vida de antes. Isso é muito representativo.

Como foi a atuação dos movimentos sociais contra os impactos de Belo Monte?
Os movimentos sociais como o Movimento Xingu para Sempre, Movimento de Mulheres da Transamazônica e Xingu, MAB, tiveram suma importância. Ajudaram a consolidar escolas na região, contribuindo na reforma e ampliação dos locais. Estabeleceram um sistema para fazer requerimentos para a Norte Energia e para as autoridades. Uma grande contribuição foi na busca de uma indenização justa. Muitas pessoas da região se sentiram prejudicadas pelos valores propostos, que tinham como referência preços de 2011 e não 2014. Esses movimentos sociais ajuizaram processos com a Defensoria Pública do Estado e do MPF, pedindo revisão da quantia. A atuação desses grupos também se deu nos RUCs. Foi a pressão dos movimentos sociais que fez com que a empresa reconhecesse algumas categorias antes não consideradas como atingidas, como é o caso dos oleiros, que formavam um número considerável de pessoas sem atividade devido à inundação do Xingu.

Indígenas Munduruku da aldeia do Teles Pires, participam do evento Xingu+23 que discutia os impactos da construção da hidrelétrica de Belo Monte. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Qual a importância do reconhecimento dos atingidos ser feita por eles mesmos?
Essa é outra pauta dos movimentos sociais, exemplificada pelo Conselho Ribeirinho. Eu aponto como o evento mais fantástico em termos de organização política, luta, vitória, parceria entre os povos atingidos. Os ribeirinhos, que foram retirados da área que a empresa dizia que ficaria permanentemente inundada após o barramento do rio, perceberam que boa parte dos terrenos onde eles moravam não foi alagada. Seria possível morar nesses espaços. E aí eles se organizaram. A partir de um conselho de pares – eles conceituam o que é ser ribeirinho, identificam quem são eles e quem morava ali. A empresa importou uma noção de ribeirinho que não atendia à realidade de Altamira. A partir do Conselho, eles conseguiram garantir o reassentamento das famílias que tinham sido retiradas de lá.

Todo esse custo social de Belo Monte serve de justificativa ou preço colateral do “desenvolvimento”?
Penso que esse tipo de objeto técnico – hidrelétrica de grande porte – e esse tipo de modelo de desenvolvimento que se usa no Brasil há pelo menos setenta anos precisa ser rapidamente abandonado. Eu me recuso a pensar nesse tipo de matemática que tenta calcular se compensou ou não o impacto. Só em Altamira e região foram quarenta mil pessoas atingidas. Digo quarenta mil pessoas atingidas que tiveram suas vidas modificadas para pior em um intervalo de tempo muito curto. A violência do processo foi muito intensa. Inúmeras pessoas que tiveram de mudar toda a sua vida, perderam parentes que mergulharam num processo de depressão. Não tem como a gente dizer que valeu a pena. Esse modelo precisa ser superado por nós e temos condições de fazer isso, só olhar o montante de recursos despejados em grandes projetos. É inadmissível pensar em uma Belo Monte que custou 38 bilhões de reais e falar em uma Altamira que ainda é pobre.

Três homens carregam um guarda-roupa em uma área alagada.

Antigo bairro conhecido como Invasão dos Padres, na região central de Altamira. O Bairro ficava entre dois principais igarapés, Ambé e Altamira.

Você acredita que no Brasil existem condições para novos megaprojetos?
Belo Monte, da forma como foi construída, pressupõe uma outra hidrelétrica de grande porte a montante. Belo Monte não consegue operar durante os doze meses do ano para produzir os seus onze mil megawatts de potência. A gente precisa sair das escalas gigantescas dos grandes projetos e pensar em outras saídas que não custem tanto ao nosso meio ambiente. Impactos ao rio, ao deslocamento das águas, à fauna. Belo Monte promoveu um impacto gigantesco aos ribeirinhos, aos indígenas que tiravam do rio 80% de sua base alimentar. Se somos capazes de movimentar uma quantidade de dinheiro grande para fazer essas grandes obras, podemos pensar em outras obras de menor porte, com tecnologia mais avançada e rendimento mais eficiente. Não existe no Brasil grande projeto cujas cidades viraram exemplo. Tucuruí não é exemplo. Altamira não é exemplo. Eu não vejo outro caminho a não ser pensar de forma bastante acelerada em outros modos de produção de energia e de políticas de desenvolvimento. Essas que mantemos até hoje já não nos servem mais.

 

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