No dia em que o cacique Raoni chorou

Indígenas reunidos nas margens do Xingu

DOI: 10.33009/amazonia2021.11.6

Canoa corta o rio Xingu

Moradores da antiga vila de Santo Antônio indo pescar. A vila ficava nas proximidades da casa de força principal de Belo Monte. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Não chore meu filho
Que a vida é combate
Que os fracos abate
Viver é Lutar

Gonçalves Dias, I-Jura Pirama

 

Na hora em que o cacique Raoni chorou,
sendo aprovada a hidroelétrica do Xingu,
as mães indígenas

arrancaram suas veias

e nelas enforcaram todos os seus sonhos.
Os botos recusaram nessa hora o corpo das fêmeas.
As Uiaras deixaram-se afogar à flor das águas.
As matinas afundaram na lama dos barrancos.
Chico Mendes mais uma vez tombou numa poça de sangue
Dorothy Stang foi recrucificada numa cruz de balas
Seringais tombaram sob as motosserras do capital
Guaiamiaba tomba de novo no Forte do Presépio.
Pe. Josino consagra o seu próprio sangue num altar de balas.
Legiões anônimas de heróis
avançam para reacender o sol poente.
Multidões de afogados erguem as mãos
nas águas do Xingu
e não há tábua de leis em que possam agarrar-se.
A história da Amazônia, de cabelos desgrenhados,
quer navegar para o futuro
mas ciclos de maré vazante a puxam para trás.

A foto de Raoni chorando nos jornais
talvez signifique um acaso de fotojornalismo
a revelar um índio talvez fraco porque chora
(pois no I-Jura Pirama está escrito
que um índio é forte porque nunca chora)

O que é a lágrima de um índio
em face de milhões de metros cúbicos de água
nos olhos de cobiça da barragem?
O que é a lágrima de um índio
ante os milhões de moedas que encherão
a sacola de Judas?
O que é a lágrima de um índio
diante de tantas lâmpadas que serão iluminadas
em fábricas, em casas, em bordéis?
O que é a lágrima de um índio
diante dos irônicos secos olhos
de economistas, planejadores, lobistas e empresários?

No dia em que aprovaram a hidroelétrica do Xingu
Uma lágrima escorreu no rosto da Amazônia
Que na imagem do satélite chamaram de rio-mar.

João de Jesus Paes Loureiro é um escritor, poeta e professor universitário brasileiro. Foi professor de estética, história da arte e cultura amazônica na Universidade Federal do Pará de 1978 a 2009. Mestre em Teoria da Literatura (PUC-SP), doutor em Sociologia da Cultura (Université de Paris IV). Autor de Cultura amazônica – uma poética do imaginário e Açaí – cacho de signos.
Poema originalmente publicado no livro Encantarias da Palavra (Ed. Ufpa: Belém, 2017)

 
 

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