Mitopoética – um norte teórico
Mitopoética dos Muyraquitãs, Porandubas e Moronguetás — ensaios de antropologia estética e etnologia Amazônica
Autor: Harald Sá Peixoto Pinheiro
Editora: Alexa Cultural e Editora da Universidade Federal do Amazonas
Ano: 2021
Revelando rigorosa erudição, garimpando acervo documental e crítico de reconhecida idoneidade, promovendo relações históricas necessárias, recorrendo à pluralidade teórica legítima e atual, Harald Sá Peixoto Pinheiro realiza uma importante análise da cultura amazônica, em uma tese de desenvolvimento ensaístico analítico descritivo, fortalecendo a sua dimensão imaginal e valorizando o ângulo mitopoético.
Em “Mitopoética dos Muyraquitãs, Porandubas e Moronguetás — ensaios de antropologia estética e etnologia Amazônica”, que será lançado amanhã, quarta-feira(3), Harald busca produzir a sua compreensão desse universo da cultura amazônica com clareza e erudição. Recusando as ênfases exóticas sempre conferidas à Amazônia e a folclorização equivocada de sua cultura, reconhece o ângulo que transcende os interesses econômicos pragmáticos e usufruidores da terra, fortalecendo a compreensão da dimensão do poético que a região contém e faz a sua diferença.
Penso que o poético é um elemento de elevação sensível de qualidade, para além da literatura. E está presente no mundo, tanto na produção humana como na própria natureza. Percebo essa presença que emerge na recepção contemplativa, como a passagem da luz através do vitral.
Conforme a forma, intencionalidade e transparência do vitral, essa luz é percebida em maior ou menor intensidade. Nas artes, onde a função poética é dominante; fora das artes, onde não é a dominância e revela diferentes níveis de subdominância.
O texto inicia com a clara indicação de seu caminho onde a memória também é parte da paisagem: referência à etnopoesia, que é uma perspectiva de concepção geminada entre antropologia e poesia. E assume, na dominância da prosa, o efeito poético, a conferir unidade, elegância e sensibilidade ao texto.
Formulação condizente com a proposta desenvolvida. Abre o leque da originária relação entre o poético e o antropológico, antes velada, e que vem sendo legitimada, ainda que timidamente, na contemporaneidade. E assume essa linha teórica de riqueza ainda inexplorada.
Lembremos que Platão não hesitou em usar a imaginação, na forma de alegorias, metáforas, poeticidade, teatralidade para fortalecer a compreensão de sua filosofia. Kant confere estratégica importância ao afeto. Tornou-se domínio público o filosofema de Pascal ensinando que o coração tem razões que a própria razão desconhece.
E, mais impetuosamente, Nietzsche considera que o conceito apreende apenas uma parte da verdade, se afastar o compartilhamento com metáforas, metonímias, antropomorfismos. Todas as capacidades humanas.
O rigor científico não se compromete. Pelo contrário. Torna-se potencializado por novas percepções. É necessário que se compreenda e aceite, que além das ciências há outras formas de conhecimento entre o céu e a terra. Compreender-se que as artes pensam.
Pensam no seu modo de pensar. Que não poderia ser o da objetividade obsessiva. Os critérios manejados pelas ciências desde Bacon tornaram-se cláusulas pétreas na Academia, quando a norma consolidou-se como as diferentes noções da objetividade.
Outras vias, ou são interditadas ou são liberadas desde que seguidas por guardas de trânsito fiscalizando excessos de velocidade nas ideias. A cassação do sentimento talvez visasse o resvalo para o sentimentalismo, o que está certo.
No entanto, é pelo sentimento, acionando a intuição criadora, que a arte revela também conhecimento, embora este não seja a sua dominância. Em algumas situações, pode ser até mais desvelador do que a lógica objetiva congelada.
Outro obstáculo atribuído tradicionalmente à pesquisa científica é o pertencimento. O objeto pesquisado quanto mais estranho e distanciado será capaz de permitir penetração isenta em seu conhecimento. Mas não é sempre assim.
Pode ser válido por um lado, mas não para todos. É um dos lados desse poliedro que é o conhecimento. Esse caroço de tucumã do romance de Dalcídio Jurandir que encerra dentro dele o mistério. Ou, a clássica caixa de Pandora.
No poético, o pertencimento se torna alavanca para o conhecimento. Sabe-se que a busca do conhecimento pela objetividade aparente da ciência tem produzido extraordinárias contribuições à humanidade. No entanto, nova linha começa a se consolidar, ampliando e enriquecendo, por outro caminho, esse conhecimento. É o início da quebra de um parâmetro: conhecimento= razão. Arte= emoção.
Harald Sá Peixoto Pinheiro, nesta obra, rompe com essa dicotomia. Abre um horizonte onde a pluralidade do conhecimento é referenciada e compartilhada. E exercida.
Vida, cultura e natureza
Além de tonificar a compreensão da antropologia não apenas como fonte de poesia. Também contendo a possibilidade do poético, como fator capaz de orientar sua visão analítico-descritiva. E, até mesmo, constituir-se poema. O etnopoema, que realiza em palavras a unidade dialética entre poesia e antropologia.
Ao assumir o estilo ensaístico, o pesquisador optou pelo método analítico-descritivo, que lhe dá suporte. Estratégico quando se trata de tema de regiões pouco conhecidas em suas particularidades culturais.
A inclusão de telas e grafismos de Rêgo Monteiro, “não se restringe à mera decoração da tese”. Realmente contribuem às articulações da narrativa. Ou seja: a arte visual também é usada como forma contributiva ao conhecimento.
Sem esquecer-se de que, as narrativas indígenas, penso, são verdadeiros etnopoemas primordiais. Avant la lettre, como costuma-se dizer. Uma invenção na cultura primeira da floresta, de forma espontânea, fruto da necessidade natural de expressão, do indissociável entrelaçamento entre vida, cultura e natureza.
Tenho profunda admiração pela obra de Nunes Pereira, além da de Barbosa Rodrigues, embora com menos envolvimento com a obra deste. Mas o que neste breve escorço desejo revelar são alguns dos pontos essenciais na tese que considero serem as suas principais contribuições ao conhecimento da cultura amazônica como fonte de ideias, de reflexões e percepção do mundo.
A parte acadêmica já foi analisada e legitimada pelo Orientador, Edgard de Assis Carvalho, cireneu do pesquisador a carregar a cruz do processo da pesquisa, e os membros da Banca Examinadora.
A “discussão em torno de uma antropologia poética do imaginário amazônico, fundado na sedução das narrativas e nos efeitos estéticos de mitocriação”, é a declarada proposta de Harald.
Era fatal recorrer à mitohermenêutica devido ao leque das plurissignificações dela resultantes. Como o riomar e seus afluentes. E a barca de Bachelard torna-se fundamental a essa navegação em que o rio de água doce, o devaneio e a poética são como estrelas nessa viagem pela orografia simbólica amazônica.
O autor não vê a Amazônia com olhar do estranho e nem exemplo validador das teorias alienígenas, embora revele conhecimento e apoio nelas também. Procura descobrir o seu roteiro com a bússola de teorias referenciais, porém guiando-se pelos ponteiros da sensibilidade e amor aos que produziram e produzem as matrizes dessa cultura. O poético nesta obra de tese ensaística é entendido como revelação de um desejo de compreender e deslindar a expressão simbólica desse mundo.
A imaginação valorizada pelo pesquisador é uma qualidade humana. O devaneio, também. No entanto, o que ambos, confluentes na intuição criadora, representam para as descobertas científicas é invisibilizado no processo constitutivo.
Como se a ciência devesse acionar somente a máquina da razão. Não se costuma levar em conta que a imaginação é também seu combustível. Ainda que com importância não dominante, como no caso de seu papel na intuição criadora da arte. Ao confinar a imaginação no espaço das artes, especialmente na poesia, foi criada a desconfiança como algo capaz de produzir produtos cujo rigor da lógica conferisse a garantia de exatidão.
Harald conduziu muito bem, respeitando a ciência por ele valorizada, a demonstração do significado valorativo da imaginação na cultura amazônica de matriz indígena e ribeirinha.
Fortalece um tema pouco consensual de que a matriz indígena-ribeirinha contribui fundamentalmente à originalidade e visão de mundo que particularizam a cultura amazônica. Território que vem sendo ocupado de fora para dentro, em lugar de ser expandido de dentro para fora, como círculos que se alargam sucessivamente de uma pedra atirada na água.
O painel de fabulações da mitologia nativa é construído com profundidade teórica e recorrência a um acervo antropológico e da sociologia, com flertes com a filosofia. Foi necessário à abrangência teórica requerida pelo autor. Harald foi atraído pelas originais dimensões que sua demonstração requeria.
Fica bem demonstrado pela reflexão do pesquisador a relação entre o imaginário como dimensão poetizante da realidade. Essa surrealidade real incorporada, sem o viés de curiosidade pitorescamente folclorizada. Herald acentua o papel das poéticas como forma de ver o mundo e constituí-lo culturalmente.
Fica claro que essa é uma importante dimensão constitutiva da cultura amazônica e, como em toda parte, intercorre com a mundialidade atual. Claro que em níveis diferentes em cada lugar.
Mito e literatura
Merece atenção o Capítulo II, “Ressonâncias Etnopoéticas: Mito e literatura”. Seja pela construção erudita e clara do contexto teórico, seja pelo encaminhamento da reflexão para além do que habitualmente espartilha os temas a um corpo padronizado. O mergulho nas águas da mitologia aclara questões, incorpora o pensamento nativo em outra dimensão e expõe a grandeza nele contida.
Percebe-se de como as narrativas fabulosas são filosofemas expandidos com mensagens compreensivas, explicativas e sensibilizadoras do viver individual, coletivo e do mundo. Apresenta com simplicidade uma cosmogonia de significações dessa literatura oral das origens. Além disso, a fundamentação paralelística com teorias já legitimadas pelo cânone.
O Capítulo III “Por uma crítica à Mitopoética Amazônica” contém a presença contributiva mais veemente das reflexões de Harald. Especialmente quanto à tradução, que é um dado singular para o conhecimento, em especial da oralidade indígena e, mesmo, ribeirinha.
O desafio da tradução é sempre a busca do intraduzível. Daí o seu conflito, que alguns consideram, ora traição, ora fracasso. A tradução é uma conversão semiótica do produto simbólico de uma cultura numa expressão que seja incorporada por outra. Um tormento quando se trata de poesia ou do poético.
Traduzir não é apenas recontar o tema. É um processo pelo qual torna aquilo que é recebido no mais aproximado possível do sentido original. Porém o tema, tornado conteúdo de uma forma, está vinculado a significados da cultura de origem. E é nisso que residem resvalos em traduções. O que pode gerar interpretações desencontradas com a contida no original.
Uma paisagem fluvio-florestal como a da Amazônia, na bela expressão do geógrafo Orlando Valverde, é composta de rio, floresta e devaneio. Impossibilitado de viajar e longas distâncias, o ribeirinho idealiza a distância na profundidade. Do rio ou da floresta. E cria um mundo da recordação e das encantarias. Ou seja, viajando para dentro de si mesmo, quando a memória é sua barca; ou para dentro do rio ou da floresta, quando a imaginação é sua asa.
Um diálogo necessário
Ao estudar essas questões, Harald não confina as ideias. Ao contrário, expande-as para além de sua terra de pertencimento e de concepções já codificadas e nem sempre isentas de preconceitos. Rompe com isso. Recorre a Ulisses e Kafka, entre tantas filigranas semeadas em sua obra ensaística. Era fatal recorrer à mitohermenêutica e aos estudos de mitopoética e etnopoesia.
São posturas teóricas de quando a ciência passou a compreender, embora ainda timidamente, a interpretação plural e, mesmo, caleidoscópica dos mitos e da mitologia. A colocação do mito como ponto de fuga na perspectiva da análise. Não é um procedimento simples. Provoca certa transformação do ponto de fuga de outra perspectiva analítico conceitual.
É uma nova concepção, na qual a imaginação contribui com a razão, e esta com aquela. Além de oferecer finas ferramentas de análise contribuindo para o deslindamento da complexidade amazônica. Esse mito ainda não plenamente estruturado, como certa vez, em conversa informal, me disse o amigo Octávio Ianni, sociólogo exemplar do pensamento brasileiro e sobre a Amazônia.
Harald Sá Peixoto Pinheiro, ao fim e ao cabo, confessa que a “perspectiva dessa obra não teve a pretensão de traçar um diálogo exaustivo sobre a disciplina e eixos temáticos”. O que se constata durante a leitura.
Não produziu diálogo exaustivo com o leitor ou estudioso na leitura da “Mitopoética dos Muyraquitãs, Porandubas e Moronguetás”. Pelo contrário. É um necessário longo diálogo, que não comete o pecado da exaustão. Passo a passo, se vai tornando estimulante, intrigante e prazeroso.
Tudo condizente com sua proposta acadêmica. A mitohermenêutica como ponto vélico, isto é, aquela vela de navegação para onde confluem as forças de todos os ventos. Harald desdobrou suas palavras, frases, parágrafos, capítulos e a tese completa com sereno talento literário. É fluente, claro, preciso e elegante.
Tudo na justa medida. Sem descuidar-se do sentimento de modéstia não afetada, que é natural nas sábias conversas ribeirinhas, diálogos de aldeia, nas travessias em canoas e em convivência de festas nas pequenas cidades, povoados, ao longo das margens do rios.
E, com sua voz, podemos encerrar esta leitura breve e enriquecedora da obra: “(…) compreendemos as narrativas míticas como racionalidades abertas, capazes de reintegrar e visão renovadora e complexa da existência humana (…).
João de Jesus Paes Loureiro é poeta e professor de Estética, Filosofia da Arte e Cultura Amazônica, na Universidade Federal do Pará. Mestre em Teoria da Literatura e Semiótica pela PUC/UNICAMP, São Paulo e Doutor em Sociologia da Cultura pela Sorbonne Paris, França. Também exerceu as funções de Secretário de Estado da Cultura, Superintendente da Fundação Cultural do Pará, Secretário de Estado da Educação e Secretário de Educação e Cultura de Belém, capital do Estado.