As transformações urbanas em Altamira-PA após uma década de Belo Monte

Níveis de construção de Belo Monte.

DOI: 10.33009/amazonia2021.11.8

[RESUMO] Autor reconta a história das transformações em Altamira após Belo Monte, analisando os efeitos urbanos da hidrelétrica na cidade. Houve ou não desenvolvimento? Se existiu, para quem ele estava direcionado?

A última das 18 turbinas da hidrelétrica de Belo Monte entrou em operação em 24 de novembro de 2019, finalizando uma das mais caras e polêmicas obras do Governo Federal. Desde a emissão da licença de instalação do projeto em junho de 2011 e a chegada das primeiras frentes de trabalho, dez anos se passaram. Muitas mudanças se tornaram evidentes na região ao longo dessa década. Em Altamira-PA, localizada a 54 km da barragem principal e maior município do país, houve modificações que a colocaram no centro das atenções no Brasil e no Mundo.

Foto da Hidrelétrica de Belo Monte. Na frente, um rio raso, ladeado por pedras soltas. Ao fundo, há uma barragem de pedra ao fundo

Usina de Belo Monte em processo de construção – agosto de 2016. Arquivo do autor/Amazônia Latitude

Belo Monte e a definição da Área Urbana Afetada

O complexo hidrelétrico Belo Monte foi construído na área conhecida como Volta Grande do Xingu, com potência instalada de 11.233 megawatts. Mesmo situado no município de Vitória do Xingu (PA), os efeitos do barramento do rio se estenderam por vários municípios, com destaque para a área urbana de Altamira.

Com a construção da barragem, o rio passou a ocupar todo o seu leito durante a maior parte do ano. Como a cidade de Altamira fica na parte contrária ao sentido do rio, previu-se a inundação de áreas ocupadas pela população em vários pontos da cidade.

Anterior às obras, os técnicos da Eletronorte haviam definido uma cota de segurança de 100 metros acima do nível do mar para estabelecer a remoção da população. O perímetro definido a partir dessa cota foi denominado Área Diretamente Afetada Urbana, a ADA Urbana, abrangendo as proximidades do rio Xingu e dos três igarapés de Altamira, Panelas e Ambé.

A definição da cota 100, como é conhecida, foi o primeiro ponto de contestação por parte de representante dos grupos sociais atingidos. O Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) e o Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS) alertaram sobre a possibilidade de a área inundada ser maior do que o previsto. Apesar do aviso, não houve qualquer alteração; e o projeto seguiu como planejado.

A chegada das frentes de trabalho e os primeiros impactos

As primeiras frentes de trabalho em massa chegaram à região em 2011. Eram, sobretudo, trabalhadores voltados à construção dos acampamentos iniciais nas diferentes áreas do projeto. Como centro urbano de maior importância, coube à cidade de Altamira assumir o papel de absorver esses fluxos populacionais, com consequências para a população local e para os que migraram de forma induzida ou espontânea.

O processo migratório foi elevado, somando mais de 45 mil trabalhadores recrutados apenas entre 2011 e 2013. No início, não havia alojamento para todos e a Norte Energia alugou praticamente todos os hotéis e hospedarias da cidade. Grande parte das residências disponíveis para locação foi absorvida pelos trabalhadores ligados ao empreendimento. Os aluguéis atingiram níveis absurdos, crescendo até dez vezes.

Muitos migrantes vieram de forma espontânea, na expectativa de conseguir algum trabalho formal ligado à atividade da barragem. Em 2011, formou-se uma aglomeração de famílias no entorno da rodoviária de Altamira, denominada de “hotel calango”. A paisagem era composta por dezenas de redes fixadas nas árvores e várias pessoas — incluindo muitas crianças — dispostas no chão junto aos seus pertences. Um triste cenário de degradação humana.

O desabastecimento foi outro impacto evidente. As prateleiras dos supermercados e dos comércios locais se esvaziaram, principalmente de itens básicos como carnes e laticínios. Alguns estabelecimentos improvisaram tendas para ofertar produtos à população local, mas a demanda era elevada. As filas no Banco do Brasil, formadas por trabalhadores que depositavam dinheiro para suas famílias em outros estados do Brasil, estendiam-se até a calçada.

O trânsito de veículos se tornou intenso pela quantidade de carros das empresas contratadas pela Norte Energia e dos caminhões ligados às obras de infraestrutura. Com o tráfego, aumentaram os buracos e o número de acidentes, gerando protestos na cidade que exigiam responsabilização da empresa construtora de Belo Monte.

Com a finalização dos acampamentos nos canteiros de obras e com a criação das vilas residenciais de trabalhadores a 50km de Altamira, alguns desses efeitos se reduziram meses mais tarde. No entanto, tais eventos se mostraram apenas como o “início das dores” quando se trata das consequências desse grande empreendimento na cidade.

As remoções e o processo de reassentamento urbano

A cota 100, que já havia sido motivo de contestação por parte dos representantes da população atingida, foi o principal dado técnico para a definição da ADA Urbana. Trata-se da área da qual as pessoas deveriam ser removidas e indenizadas na forma escolhida, podendo ser em dinheiro, carta de crédito ou a partir de uma nova casa em um Reassentamento Urbano Coletivo (RUC).

Muitos atingidos tinham plena noção de que as opções de dinheiro e carta de crédito eram inviáveis. Os preços dos imóveis na cidade estavam muito acima do normal, sobretudo por conta da própria especulação induzida pelo advento de Belo Monte. Os que possuíam casas de padrão mais elevado ou estabelecimentos comerciais poderiam conseguir algum benefício com as outras modalidades de indenização. Mas, em geral, as populações da ADA Urbana eram muito pobres e grande parte das residências era do tipo palafita com apenas um ou dois cômodos. Quando avaliados, esses imóveis não chegavam nem próximo ao valor necessário para adquirir uma residência nova.

Foto de casas de palafitas. Do lado esquerdo e direito, casa marrons empobrecidas. No centro, terra batida e uma ponte de madeira quebrada.

Perfil das habitações em uma das áreas afetadas na área urbana – junho de 2014. Arquivo do autor/Amazônia Latitude

Não havia, de fato, alternativas viáveis. O reassentamento não foi uma opção, mas uma condição imposta aos atingidos pelo conjunto de fatores que pressionavam o mercado da habitação em Altamira. Em princípio, a Norte Energia construiu cinco loteamentos para abrigar as seis mil famílias da área afetada, denominados Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUC).

As casas nos RUC são de concreto (incluindo todas as paredes), moldadas com fôrmas de alumínio — uma alternativa viável à empresa construtora por acelerar o processo de construção e reduzir a mão de obra. A escolha, porém, gerou questionamentos por se diferenciar do padrão construtivo local (alvenaria de tijolos). Muitos habitantes reclamam até hoje de fissuras nas paredes e de dificuldades de adaptar o imóvel às suas necessidades.

Foto de um conjunto de casas iguais roxas e laranjas. As casas se estendem por toda rua.

Perfil das habitações nos RUC – agosto de 2016. Arquivo do autor/Amazônia Latitude

O processo de reassentamento se deu entre 2014 e 2015, no qual milhares de famílias deixaram seus locais de origem para as novas residências dos RUC. Muitos habitantes reclamaram que ficaram distantes de seus vizinhos; alguns, inclusive, em loteamentos diferentes, desfazendo-se as relações de sociabilidade da área de origem.

Um fator crucial que diferenciava os locais afetados do RUC era a proximidade ao rio e aos igarapés. O reassentamento afetou a população de áreas que eram utilizadas tanto para o lazer como para as atividades da pesca. Os RUC Jatobá, São Joaquim, Casa Nova e Água Azul não possuem essa característica. Já o RUC Laranjeiras, apesar de ter acesso via igarapé Panelas, ainda se fazia relativamente distante e com dificuldades para a população com esse perfil.

Por conta de manifestações de grupos sociais como o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) e o Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS, foi criado mais um loteamento em uma área conhecida como Pedral. À margem do rio Xingu e distante 8 km do centro da cidade, esse loteamento, atualmente denominado RUC Tavaquara, foi criado para abrigar pessoas que realizam a pesca e indígenas citadinos.

Mais de cinco anos após o processo de reassentamento, ainda há críticas sobre os RUC e a estrutura produzida pela Norte Energia. A população reclama de problemas de abastecimento de água e de equipamentos urbanos que não recebem a devida manutenção, como quadras, espaços de lazer e academias ao ar livre. Os buracos nas ruas se multiplicam e se evidencia uma paisagem de abandono que já era comum em outros bairros periféricos da cidade.

Muitas famílias não conseguiram manter as tarifas de energia e outros impostos da nova residência, custos que não existiam na área de origem. A distância em relação ao centro da cidade também ampliou o tempo e os custos de deslocamento, pressionando ainda mais a renda familiar e dificultando a vida de quem se desloca diariamente. Em muitos RUC, as casas foram vendidas ou mesmo abandonadas por seus habitantes, demonstrando que a existência de uma nova residência per si não é suficiente para eliminar as condições de pobreza da população, podendo até mesmo ampliá-las.

A cidade remodelada e os efeitos adversos da barragem

Após a instalação do empreendimento hidrelétrico na cidade, Altamira chegou a atingir mais de 140 mil habitantes no ano de 2014, contrastando com os 99.075 de 2010. Segundo previsão da Norte Energia de 2020, a população foi reduzida para 120 mil habitantes. A contagem exata, entretanto, aguarda a pesquisa oficial do censo populacional.

O rápido crescimento populacional e as demais condições ligadas ao empreendimento, como a especulação imobiliária, favoreceram o aumento excessivo do preço dos imóveis e aluguéis. Como morar perto do rio não era mais uma opção devido ao controle exercido pela Norte Energia e pela prefeitura municipal, as populações mais pobres encontraram em alguns pontos da cidade, como baixadas urbanas e encostas de morro, uma opção viável para sua habitação.

Assim se multiplicaram rapidamente as ocupações urbanas a exemplo da Lagoa do Independente I, área de baixada próxima ao núcleo habitacional mais antigo da cidade, mas que não estava no plano de reassentamento por se localizar acima da cota 100. Ocorre que, a partir de 2015, durante o enchimento do rio por conta do barramento, a água começou a surgir em vários pontos dessa localidade, inundando diversas residências.

Em princípio, nem o empreendedor hidrelétrico nem o IBAMA conseguiam explicar como se dava esse fenômeno. Alegavam que se tratava de um aquífero suspenso, não permitindo absorver ou escoar as águas superficiais. Avaliações posteriores foram realizadas, mas os resultados não foram conclusivos em benefício a essa tese.

Depois de várias ações na justiça e intervenção de movimentos sociais, 598 famílias foram reconhecidas como atingidas em 2018. Todas foram removidas da área em questão. Em 2020, após cinco anos de lutas, a justiça enfim reconheceu a obrigação da Norte Energia em realocar as famílias do Independente I. Foi um caso emblemático. Pela primeira vez, foi concedida indenização para uma área não atingida diretamente pela cota de inundação.

Se de um lado há aqueles que precisam ocupar áreas irregulares para obter a moradia, de outro há os que se valem do grande empreendimento para lucrar, como é o caso das incorporadoras imobiliárias. Em Altamira, vários loteamentos planejados foram criados entre 2011 e 2015, com oferta de mais de 20 mil lotes urbanos. A estratégia era simples: adquirir antigas glebas rurais na periferia da cidade, próximas às vias estruturantes, em seguida transformar esses terrenos em lotes urbanos para vender a maior quantidade no menor tempo possível.

Mapa com os principais loteamentos urbanos em Altamira

Principais loteamentos urbanos em Altamira entre 2011 e 2020. Produzido pelo autor

A urgência para a venda desses lotes é explicada pela natureza de “surto” dos grandes empreendimentos na Amazônia. E não é um caso evidente apenas em Altamira. As empresas sabem que o momento de maior atividade econômica é rápido e depende do tempo necessário para a construção da obra, por isso desenvolvem uma forte propaganda para atrair os consumidores. Não se vendiam apenas terrenos, mas a projeção de um investimento futuro, sobretudo ancorada na ideia de valorização imobiliária a partir do desenvolvimento local e de melhoria da qualidade de vida.

De fato, a oferta de imóveis foi muito grande e as incorporadoras venderam milhares de lotes urbanos entre 2014 e 2016. Depois disso, imperou a crise local do setor imobiliário. Muitos que compraram os terrenos pensando em vendê-los em médio prazo amargaram prejuízos.
A cidade de Altamira, sempre compacta e espacialmente densa, tornou-se difusa e rarefeita. Esse e outros empreendimentos, assim como os RUC, fizeram a cidade dobrar de tamanho em poucos anos. Mas esse crescimento não foi acompanhado de melhorias expressivas nos serviços públicos e em equipamentos urbanos. A cidade cresceu enquanto mercadoria, porém a crise de moradia permaneceu: ainda há milhares de lotes urbanos não ocupados à espera de uma valorização.

Nos casos em que a iniciativa privada não cumpre seu papel na oferta de lotes urbanos para a população mais pobre, o Estado deveria intervir por meio de programas de habitação popular. Mas, como nem tudo deu certo em Altamira, há aí outro caso emblemático.
Havia dois projetos do programa Minha casa Minha Vida do Governo Federal previstos. O primeiro, o residencial Santa Benedita, com 958 residências, que foi entregue em 2012; e o segundo, o residencial Ilha do Arapujá, com 1.444 residências, que deveria ser finalizado em 2015.

No entanto, as obras do residencial Ilha do Arapujá foram marcadas por problemas que impediram a sua continuidade. Houve até mesmo a paralisação de trabalhadores em função de problemas salariais e de precárias condições de trabalho. Em maio de 2015, 800 famílias ocuparam o residencial (ainda em construção), realizando protestos em frente ao prédio da CAIXA e exigindo o enquadramento no programa do Governo Federal por conta da crise na habitação.

Hoje, a obra se encontra paralisada. Tanto o terreno quanto as construções em ruínas foram tomadas pela vegetação. Esse episódio demonstra a negligência do próprio Estado em garantir o direito à moradia digna em uma área altamente impactada por um projeto hidrelétrico.

Foto de casas abandonadas em uma estrada sem terra. Algumas construções não apresentam teto.

Construções abandonadas no que seria o residencial Ilha do Arapujá. Arquivo do autor/Amazônia Latitude

Há ainda outras intervenções da Norte Energia na cidade de Altamira, classificadas como obras de “requalificação urbana”. Dentre elas, inclui-se a criação dos parques na antiga ADA Urbana (perímetros dos igarapés Ambé e Panelas). O programa de requalificação inclui os projetos de saneamento, com instalação das redes de água e esgotamento sanitário em grande parte da cidade.

No que se refere aos parques, trata-se de áreas que antes eram ocupadas por populações pobres no centro da cidade. A remoção e o reassentamento, nesse caso, desempenharam uma dúbia função: a oficial, que diz respeito à retirada de populações em áreas consideradas de risco; e a não oficial, que remete ao processo de higienização social da cidade moderna, no imperativo de retirar os pobres do centro e, posteriormente, decidir que tipo de população deverá ocupá-lo. Tal prática possui uma denominação específica nos estudos urbanos: a gentrificação.

Hoje, a paisagem dos parques é dominada pelo vazio. Ainda que existam apropriações coletivas, como o voleibol do final de tarde, pouco é utilizado por parte da população. A paisagem se torna um espaço de passagem.

Imagem aérea compara Altamira em 2005 e 2019. Na primeira imagem de 2019, há muitas construções. Na segunda de 2005, aparecem mais áreas verdes e vazias.

Área do Parque do igarapé Altamira antes e depois de sua construção. Produzido pelo autor

As obras de saneamento, por sua vez, podem ser consideradas como representantes de um impacto positivo do empreendimento. A cidade de Altamira, assim como a maioria das cidades médias da Amazônia, possui praticamente ausência total desse serviço. Entretanto, tal entendimento traz um componente ideológico perigoso, pois o saneamento é um direito assegurado pela Constituição. Assim, não se precisam de hidrelétricas ou de quaisquer projetos de grande escala para que sejam implantados.

O perigo desse atrelamento se dá por retroalimentar a necessidade desses projetos na região Amazônica, como se eles fossem, em si mesmos, a resposta para os problemas regionais históricos. Direitos como o saneamento e a habitação não podem ser, de forma nenhuma, concebidos como compensações de grandes empreendimentos.

Altamira entre as cidades mais violentas do Brasil

Uma das questões mais alarmantes sobre Altamira é o aumento dos índices relacionados à violência urbana. De acordo com o Atlas da Violência do IPEA, a cidade de Altamira esteve entre as primeiras colocações no Brasil nos últimos anos. Em 2017, o índice atingiu 133,7 mortes a cada cem mil habitantes, deixando a cidade na segunda colocação, perdendo apenas para Maracanaú (CE).

A violência se explica pela combinação de dois fenômenos. O primeiro, mais antigo, diz respeito ao reordenamento dos territórios do tráfico de drogas no Brasil, que foi notado a partir dos anos 2000 com a transferência dos maiores índices de homicídios dos estados do sul-sudeste para os estados do eixo norte-nordeste. Objetivamente, o primeiro fenômeno corresponde à expansão do mercado de drogas por parte da facção Primeiro Comando da Capital – o PCC. Em 2016, com o racha nacional entre o PCC e o Comando Vermelho, outra facção criminosa, essa disputa tomou proporções de uma verdadeira guerra.

Ocorre que essa tendência se associou a outra em nível regional: o “fator Belo Monte”, marcado pelo crescimento populacional, pela redução das atividades ligadas à hidrelétrica a partir de 2016 e pela geração de uma massa de trabalhadores subempregada residindo no município.

Essa combinação de eventos sociais nocivos foi o ingrediente principal para o aumento da violência em Altamira, que se tornou palco de disputas que envolviam os novos mercados da droga na cidade, incluindo as conhecidas facções nacionais associadas às organizações regionais, como o Bonde dos 30, o Comando Classe A (CCA) e Família do Norte (FDN).

Além da escalada de crimes na cidade como um todo, destaca-se o conflito no Centro de Recuperação Regional de Altamira. Foram mortos 57 detentos, representando a maior chacina ocorrida em presídios após o caso do Carandiru, ocorrido em São Paulo em 1992.

Um agravante para o caso do Centro de Recuperação Regional de Altamira é que a Norte Energia havia previsto a entrega do Complexo Penitenciário de Vitória do Xingu com 9 mil metros quadrados em 2016. A superlotação, entretanto, foi somente um dos elementos complicadores associados a outros fatores que emergiram com o grande empreendimento hidrelétrico.

Usina Hidrelétrica: desenvolvimento para quem?

Após o processo de redemocratização do Brasil, a partir da Constituição de 1988, os grandes projetos passaram por uma readequação. Foram incluídas medidas para dar um caráter mais participativo à instalação desses projetos, como a obrigatoriedade de se fazer estudos de impactos ambientais e audiências públicas.

Algumas dessas audiências aconteceram em Altamira sob gritos e protestos. Porém, a condução foi sempre feita por técnicos que dominavam e conheciam os detalhes do projeto e que o vendiam como a melhor solução para os grandes problemas da região. Entretanto, pela série de problemas (antigos e novos) que sobrevieram por conta do empreendimento, a sensação que se tem é de que, mais uma vez, não se trata de um evento de caráter endógeno, voltado à região e seus habitantes.

Trata-se, como afirma o teórico inglês David Harvey, de um componente da “acumulação pela espoliação”, o qual não se basta pela exploração do trabalho em si, incluindo a apropriação dos bens coletivos, das terras, das casas e da própria vida das pessoas se necessário.

São questões que chamam à reflexão sobre as promessas que são feitas em áreas de instalação de grandes projetos na Amazônia, quase sempre imbuídas da ideia de crescimento econômico e desenvolvimento sustentável.

A geógrafa Bertha Becker, em sua obra A Urbe Amazônica, afirma que na região amazônica as cidades se desenvolvem em ciclos, em surtos que não se mantém por muito tempo, sobretudo conduzidos por grandes projetos cujos benefícios locais são pontuais e efêmeros. Esse desenvolvimento, portanto, está longe de ser sustentável.

O exemplo da usina de Belo Monte evidencia alguns desses aspectos. A cidade ampliou a sua condição de cidade-mercadoria quando permitiu a ação desenfreada de grandes agentes imobiliários. A Norte Energia não conseguiu tornar os RUC exemplos de espaços de habitação voltados à qualidade de vida de seus habitantes. Por sua vez, os parques dos igarapés Altamira e Ambé são representações ideias de como não planejar a cidade, concebidos de fora para fora, sem a preocupação com os encontros e a sociabilidade.

O Estado, na figura do Governo Federal, agiu muito mais na omissão (programada), uma vez que deixou a cargo de uma grande empresa funções que seriam da representação coletiva. Como exemplo, vê-se o fracasso na oferta de habitações urbanas populares na crise de moradia causada pelo próprio empreendimento, ampliando a segregação socioespacial e a pobreza urbana.

A questão fundamental da relação entre a usina hidrelétrica e a cidade de Altamira não é se houve ou não desenvolvimento, mas para quem ele sempre esteve direcionado. As empresas do setor hidrelétrico e de commodities internacionais, do outro lado do país, têm muito mais a agradecer com todo esse processo. Projetos dessa natureza nunca foram (e talvez nunca serão) voltados ao benefício dos locais em que se instalam.

José Queiroz de Miranda Neto é doutor em Geografia Humana pela UNESP/Presidente Prudente e Professor adjunto da Universidade Federal do Pará – UFPA/Campus de Altamira. Integra o Programa de Pós-graduação em Geografia da UFPA (PPGEO) e coordena o Laboratório de Estudos Populacionais e Urbanos (LEPURB) da Faculdade de Geografia da UFPA.
Imagem em destaque: Rio e usina hidrelétrica de Belo Monte. José de Miranda Neto/Arquivo pessoal.

 
 

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