A anatomia de um etnocídio

DOI: 10.33009/amazonia2021.11.17

[RESUMO] A procuradora da República Thais Santi conta como a terceira maior hidrelétrica do mundo se tornou fato consumado numa operação de suspensão da ordem jurídica, misturando o público e o privado e causando uma catástrofe indígena e ambiental de proporções amazônicas.

Quando alguém passa num concurso do Ministério Público Federal, costuma estrear no que se considera os piores postos, aqueles para onde os procuradores em geral não levam a família e saem na primeira oportunidade. Um destes que são descritos como um “inferno na Terra” nos corredores da instituição é Altamira, no Pará, uma coleção de conflitos amazônicos à beira do monumental rio Xingu. Em 2012, Thais Santi – nascida em São Bernardo do Campo e criada em Curitiba, com breve passagem por Brasília nos primeiros anos de vida – foi despachada para Altamira. Ao ver o nome da cidade, ela sorriu. Estava tão encantada com a possibilidade de atuar na região que, no meio do curso de formação, pegou um avião e foi garantir apartamento, já que as obras da hidrelétrica de Belo Monte tinham inflacionado o mercado e sumido com as poucas opções existentes. Thais iniciava ali a sua inscrição na tradição dos grandes procuradores da República que atuaram na Amazônia e fizeram História.

Ela já teve a oportunidade de deixar Altamira três vezes, a primeira antes mesmo de chegar lá. Recusou todas. Junto com outros procuradores do MPF, Thais Santi está escrevendo a narrativa de Belo Monte. Ou melhor: a narrativa de como a mais controversa obra do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento dos governos Lula-Dilma, um empreendimento com custo em torno de R$ 30 bilhões, poderá ser julgada pela História como uma operação em que a Lei foi suspensa. E também como o símbolo da mistura explosiva entre o público e o privado, dada pela confusão sobre o que é o Estado e o que é a Norte Energia S.A., a empresa que ganhou o polêmico leilão da hidrelétrica. Fascinante do ponto de vista teórico, uma catástrofe na concretude da vida humana e de um dos patrimônios estratégicos para o futuro do planeta, a floresta amazônica.

A jovem procuradora conta que levou quase um ano para ver e compreender o que viu – e outro ano para saber o que fazer diante da enormidade do que viu e compreendeu. Ela se prepara agora para entrar com uma ação denunciando que Belo Monte, antes mesmo de sua conclusão, já causou o pior: um etnocídio indígena.

Nesta entrevista, Thais Santi revela a anatomia de Belo Monte. Desvelamos o ovo da serpente junto com ela. Ao acompanhar seu olhar e suas descobertas, roçamos as franjas de uma obra que ainda precisa ser desnudada em todo o seu significado, uma operação que talvez seja o símbolo do momento histórico vivido pelo Brasil. Compreendemos também por que a maioria dos brasileiros prefere se omitir do debate sobre a intervenção nos rios da Amazônia, assumindo como natural a destruição da floresta e a morte cultural de povos inteiros, apenas porque são diferentes. O testemunho da procuradora ganha ainda uma outra dimensão no momento em que o atual governo, reeleito para mais um mandato, já viola os direitos indígenas previstos na Constituição para implantar usinas em mais uma bacia hidrográfica da Amazônia, desta vez a do Tapajós.

Thais Santi, que antes de se tornar procuradora da República era professora universitária de filosofia do Direito, descobriu em Belo Monte a expressão concreta, prática, do que estudou na obra da filósofa alemã Hannah Arendt sobre os totalitarismos. O que ela chama de “um mundo em que tudo é possível”. Um mundo aterrorizante em que, à margem da legalidade, Belo Monte vai se tornando um fato consumado. E a morte cultural dos indígenas é naturalizada por parte dos brasileiros como foi o genocídio judeu por parte da sociedade alemã.

A entrevista a seguir foi feita em duas etapas. As primeiras três horas no gabinete da procuradora no prédio do Ministério Público Federal de Altamira. Sua sala é decorada com peças de artesanato trazidas de suas andanças por aldeias indígenas e reservas extrativistas. Na mesa, vários livros sobre a temática de sua atuação: índios e populações tradicionais. Entre eles, autores como os antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro da Cunha. A sala é cheirosa, porque as funcionárias do MPF costumam tratar Thais com mimos. Carismática, ela costuma produzir esse efeito nas pessoas ao redor. Dias antes da entrevista, participou da comemoração dos 10 anos da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, na Terra do Meio. Thais dormiu numa rede na porta do posto de saúde que sua ação ajudou a implantar, a alguns metros de onde acontecia um forró que durou a noite inteira. O sono era interrompido ora por casais mais animados em sua ênfase amorosa, ora por um atendimento de emergência no posto de saúde. Impassível, Thais acordou no dia seguinte parecendo tão encantada com todos, como todos com ela. “Noite interessante”, limitou-se a comentar.

A entrevista é interrompida pela chegada afetuosa de uma funcionária trazendo primeiro café e água, depois peras. É bastante notável, nas respostas de Thais, o conhecimento teórico e a consistência de seus argumentos jurídicos. Embora visivelmente apaixonada pelo que faz, em sua atuação ela se destaca por ser conceitualmente rigorosa e cerebral. Mas, na medida em que Thais vai explicando Belo Monte, sua voz vai ganhando um tom indignado. “Como ousam?”, ela às vezes esboça, referindo-se ou à Norte Energia ou ao governo. Como ao contar que, ao votar na última eleição, deparou-se com uma escola com paredes de contêiner, piso de chão batido, as janelas de ferro enferrujado, as pontas para fora, a porta sem pintura, nenhum espaço de recreação e nem sequer uma árvore em plena Amazônia. Uma escola construída para não durar, quando o que deveria ter sido feito era ampliar o acesso à educação na região de impacto da hidrelétrica.

Canteiro de construção de Belo Monte. Terra avermelhada na frente. Ao fundo, a estrutura de concreto da hidrelétrica

Canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

A segunda parte da entrevista, outras três horas, foi feita por Skype. Reservada na sua vida pessoal, quando Thais deixa escapar alguma informação sobre seu cotidiano, suas relações e seus gostos, de imediato pede off. “Não tenho nem Facebook”, justifica-se. Dela me limito a dizer que acorda por volta das 5h30 da manhã, que faz yoga e que todo dia vai admirar o Xingu. Em seu celular, há uma sequência de fotos do rio. Uma a cada dia.

A senhora chegou em Altamira no processo de implantação de Belo Monte. O que encontrou?
Thais Santi – Encontrei aqui a continuação do que eu estudei no meu mestrado a partir da (filósofa alemã) Hannah Arendt. Belo Monte é o caso perfeito para se estudar o mundo em que tudo é possível. A Hannah Arendt lia os estados totalitários. Ela lia o mundo do genocídio judeu. E eu acho que é possível ler Belo Monte da mesma maneira.

O que significa um mundo em que tudo é possível?
Santi – Existem duas compreensões de Belo Monte. De um lado você tem uma opção governamental, uma opção política do governo por construir grandes empreendimentos, enormes, brutais, na Amazônia. Uma opção do governo por usar os rios amazônicos, o recurso mais precioso, aquele que estará escasso no futuro, para produzir energia. Essa opção pode ser questionada pela academia, pela população, pelos movimentos sociais. Mas é uma opção que se sustenta na legitimidade do governo. Podemos discutir longamente sobre se essa legitimidade se constrói a partir do medo, a partir de um falso debate. Quanto a esta escolha, existe um espaço político de discussão. Mas, de qualquer maneira, ela se sustenta na legitimidade. Pelo apoio popular, pelo suposto apoio democrático que esse governo tem, embora tenha sido reeleito com uma diferença muito pequena de votos. Agora, uma vez adotada essa política, feita essa escolha governamental, o respeito à Lei não é mais uma opção do governo. O que aconteceu e está acontecendo em Belo Monte é que, feita a escolha governamental, que já é questionável, o caminho para se implementar essa opção é trilhado pelo governo como se também fosse uma escolha, como se o governo pudesse optar entre respeitar ou não as regras do licenciamento. Isso é brutal.

O Ministério Público Federal já entrou com 22 ações nesse sentido. Por que a Justiça Federal não barra essa sequência de ilegalidades?
Santi – Lembro que, quando eu trabalhava com meus alunos, discutíamos que há um conflito entre dois discursos. De um lado, há um discurso fundado na Lei, preso à Lei, e do outro lado o discurso de um Direito mais flexível, mais volátil, em que o operador tem a possibilidade de às vezes não aplicar a Lei. Eu dizia a eles que esses discursos têm de estar equilibrados, nem para o extremo de um legalismo completo, nem para o outro, a ponto de o Direito perder a função, de a Lei perder a função. Hoje, se eu desse aula, Belo Monte é o exemplo perfeito. Perfeito. Eu nunca imaginei que eu viria para o Pará, para Altamira, e encontraria aqui o exemplo perfeito. Por quê? Quando eu peço para o juiz aplicar regra, digo a ele que essa regra sustenta a anuência e a autorização para a obra e que, se a regra não foi cumprida, o empreendimento não tem sustentação jurídica. E o juiz me diz: “Eu não posso interferir nas opções governamentais” ou “Eu não posso interferir nas escolhas políticas”. É isso o que os juízes têm dito. Portanto, ele está falando da Belo Monte da legitimidade e não da Belo Monte que se sustenta na legalidade. Assim, Belo Monte é o extremo de um Direito flexível. É o mundo em que a obra se sustenta nela mesma. Porque a defesa do empreendedor é: o quanto já foi gasto, o tanto de trabalhadores que não podem perder o emprego. Mas, isso tudo não é Direito, isso tudo é Fato. A gente se depara com a realidade de uma obra que caminha, a cada dia com mais força, se autoalimentando. A sustentação de Belo Monte não é jurídica. É no Fato, que a cada dia se consuma mais. O mundo do tudo é possível é um mundo aterrorizante, em que o Direito não põe limite. O mundo do tudo possível é Belo Monte. O mundo do tudo é possível é um mundo aterrorizante, onde o Direito não põe limites.

E como a senhora chegou a essa conclusão?
Santi – Eu levei quase um ano para entender o que estava acontecendo com os indígenas no processo de Belo Monte. Só fui entender quando compreendi o que era o Plano Emergencial de Belo Monte. Eu cheguei em Altamira em julho de 2012 e fui para uma aldeia dos Arara em março, quase abril, de 2013. Eu sabia que lideranças indígenas pegavam a gasolina que ganhavam aqui e vendiam ali, trocavam por bebida, isso eu já sabia. Mas só fui sentir o impacto de Belo Monte numa aldeia que fica a quase 300 quilômetros daqui. Brutal. Só compreendi quando fui até as aldeias, porque isso não se compreende recebendo as lideranças indígenas no gabinete. Eu vi.

O que a senhora viu?
Santi – O Plano Emergencial tinha como objetivo criar programas específicos para cada etnia, para que os indígenas estivessem fortalecidos na relação com Belo Monte. A ideia é que os índios se empoderassem, para não ficar vulneráveis diante do empreendimento. E posso falar com toda a tranquilidade: houve um desvio de recursos nesse Plano Emergencial. Eu vi os índios fazendo fila num balcão da Norte Energia, um balcão imaginário, quando no plano estava dito que eles deveriam permanecer nas aldeias. Comecei a perceber o que estava acontecendo quando fiz essa visita à terra indígena de Cachoeira Seca e conheci os Arara, um grupo de recente contato. E foi um choque. Eu vi a quantidade de lixo que tinha naquela aldeia, eu vi as casas destruídas, com os telhados furados, chovendo dentro. E eles dormiam ali. As índias, na beira do rio, as crianças, as meninas, totalmente vulneráveis diante do pescador que passava. Quando Belo Monte começou, esse povo de recente contato ficou sem chefe do posto. Então, os índios não só se depararam com Belo Monte, como eles estavam sem a Funai dentro da aldeia. De um dia para o outro ficaram sozinhos. Os Arara estavam revoltados, porque eles tinham pedido 60 bolas de futebol, e só tinham recebido uma. Eles tinham pedido colchão boxe para colocar naquelas casas que estavam com telhado furado e eles não conseguiram. Esse grupo de recente contato estava comendo bolachas e tomando refrigerantes, estava com problemas de diabetes e hipertensão. Mas o meu impacto mais brutal foi quando eu estava tentando fazer uma reunião com os Arara, e uma senhora, talvez das mais antigas, me trouxe uma batata-doce para eu comer. Na verdade, era uma mini batata-doce. Parecia um feijão. Eu a peguei, olhei para a menina da Funai, e ela falou: “É só isso que eles têm plantado. Eles não têm nada além disso”. Esse era o grau de atropelo e de desestruturação que aquele plano tinha gerado. Era estarrecedor.

Qual era a cena?
Santi – Era como se fosse um pós-guerra, um holocausto. Os índios não se mexiam. Ficavam parados, esperando, querendo bolacha, pedindo comida, pedindo para construir as casas. Não existia mais medicina tradicional. Eles ficavam pedindo. E eles não conversavam mais entre si, não se reuniam. O único momento em que eles se reuniam era à noite para assistir à novela numa TV de plasma. Então foi brutal. E o lixo na aldeia, a quantidade de lixo era impressionante. Era cabeça de boneca, carrinho de brinquedo jogado, pacote de bolacha, garrafa pet de refrigerante.

Isso foi o que eles ganharam da Norte Energia?
Santi – Tudo o que eles tinham recebido do Plano Emergencial.

Era esse o Plano Emergencial, o que deveria fortalecer os indígenas para que pudessem resistir ao impacto de Belo Monte?
Santi – Tudo o que eles tinham recebido do Plano Emergencial. O Plano Emergencial gerou uma dependência absoluta do empreendedor. Absoluta. E o empreendedor se posicionou nesse processo como provedor universal de bens infinitos, o que só seria tolhido se a Funai dissesse não. A Norte Energia criou essa dependência, e isso foi proposital. E se somou à incapacidade da Funai de estar presente, porque o órgão deveria ter sido fortalecido para esse processo e, em vez disso, se enfraqueceu cada vez mais. Os índios desacreditavam da Funai e criavam uma dependência do empreendedor. Virou um assistencialismo.

Como a senhora voltou dessa experiência?
Santi – Eu dizia: “Gente, o que é isso? E o que fazer?”. Eu estava com a perspectiva de ir embora de Altamira, mas me dei conta que, se fosse, o próximo procurador ia demorar mais um ano para entender o que acontecia. Então fiquei.

E o que a senhora fez?
Santi – Eu não sabia entender o que estava acontecendo. Pedi apoio na 6ª Câmara (do Ministério Público Federal, que atua com povos indígenas e populações tradicionais), e fizemos uma reunião em Brasília. Chamamos os antropólogos que tinham participado do processo de Belo Monte na época de elaboração do EIA (Estudo de Impacto Ambiental), para que pudessem falar sobre como esses índios viviam antes, porque eu só sei como eles vivem hoje. Um antropólogo que trabalha com os Araweté contou como esse grupo via Belo Monte e não teve ninguém sem nó na garganta. Os Araweté receberam muitos barcos, mas muitos mesmo. O Plano Emergencial foi isso. Ganharam um monte de voadeiras (o barco a motor mais rápido da Amazônia), e eles continuavam fazendo canoas. Para os Araweté eles teriam de sobreviver naqueles barcos, esta era a sua visão do fim do mundo. E até agora eles não sabem o que é Belo Monte, ainda acham que vai alagar suas aldeias. A Norte Energia é um provedor de bens que eles não sabem para que serve. Outra antropóloga contou que estava nos Araweté quando o Plano Emergencial chegou. Todas as aldeias mandavam suas listas, pedindo o que elas queriam, e os Araweté não tinham feito isso, porque não havia coisas que eles quisessem. Eles ficavam confusos, porque podiam querer tudo, mas não sabiam o que querer. E aí as coisas começaram a chegar. Houve até um cacique Xikrin que contou para mim como foi. Ligaram para ele de Altamira dizendo: “Pode pedir tudo o que você quiser”. Ele respondeu: “Como assim? Tudo o que me der na telha?”. E a resposta foi: “Tudo”. O cacique contou que pediram tudo, mas não estavam acreditando que iriam receber. De repente, chegou. Ele fazia gestos largos ao contar: “Chegou aquele mooonte de quinquilharias”. Tonéis de refrigerante, açúcar em quantidade. Foi assim que aconteceu. Este era o Plano Emergencial.

E o que aconteceu com os índios depois dessa intervenção?
Santi – As aldeias se fragmentaram. Primeiro, você coloca na mão de uma liderança, que não foi preparada para isso, o poder de dividir recursos com a comunidade. A casa do cacique com uma TV de plasma, as lideranças se deslegitimando perante a comunidade. Ganhava uma voadeira que valia 30, vendia por oito. Fora o mercado negro que se criou em Altamira com as próprias empresas. O índio ficou com dinheiro na mão e trocou por bebida. O alcoolismo, que já era um problema em muitas aldeias, que era algo para se precaver, aumentou muito. Acabou iniciando um conflito de índios com índios, e aumentando o preconceito na cidade entre os não índios. O pescador, para conseguir uma voadeira, precisa trabalhar muito. E a comunidade passou a ver o índio andando de carro zero, de caminhonetes caríssimas, bebendo, houve casos de acidentes de trânsito e atropelamento. Então, como é possível? Acho que nem se a gente se sentasse para fazer exatamente isso conseguiria obter um efeito tão contrário. Os índios se enfraqueceram, se fragmentaram socialmente, a capacidade produtiva deles chegou a zero, os conflitos e o preconceito aumentaram.

A senhora acha que essa condução do processo, por parte da Norte Energia, com a omissão do governo, foi proposital?
Santi – Um dos antropólogos da 6ª Câmara tem uma conclusão muito interessante. No contexto de Belo Monte, o Plano Emergencial foi estratégico para silenciar os únicos que tinham voz e visibilidade: os indígenas. Porque houve um processo de silenciamento da sociedade civil. Tenho muito respeito pelos movimentos sociais de Altamira. Eles são uma marca que faz Altamira única e Belo Monte um caso paradigmático. Mas hoje os movimentos sociais não podem nem se aproximar do canteiro de Belo Monte. Há uma ordem judicial para não chegar perto. Naquele momento, os indígenas surgiram como talvez a única voz que ainda tinha condição de ser ouvida e que tinha alguma possibilidade de interferência, já que qualquer não índio receberia ordem de prisão. E o Plano Emergencial foi uma maneira de silenciar essa voz. A cada momento que os indígenas vinham se manifestar contra Belo Monte, com ocupação de canteiro, essa organização era, de maneira muito rápida, desconstituída pela prática de oferecer para as lideranças uma série de benefícios e de bens de consumo. Porque os indígenas têm uma visibilidade que a sociedade civil não consegue ter. Vou dar um exemplo. Houve uma ocupação em que os pescadores ficaram 40 dias no rio, na frente do canteiro, debaixo de chuva, e não tiveram uma resposta. Aquele sofrimento passava despercebido. E de repente os indígenas resolvem apoiar a reivindicação dos pescadores, trazendo as suas demandas também. E, de um dia para o outro, a imprensa apareceu. Os indígenas eram a voz que ainda poderia ser ouvida e foram silenciados.

Com as listas de voadeiras, TV de plasma, bolachas, Coca-Cola?
Santi – No caso das ocupações de canteiro não eram nem as listas. No caso da ocupação que aconteceu em 2012, até hoje eu não entendo qual é o lastro legal que justificou o acordo feito. As lideranças saíram da ocupação e vieram para Altamira, onde negociaram a portas fechadas com a Norte Energia. Cada uma voltou com um carro, com uma caminhonete. E isso também para aldeias que sequer têm acesso por via terrestre. Então eu acho que não tem como entender o Plano Emergencial sem dizer que foi um empreendimento estratégico no sentido de afastar o agente que tinha capacidade de organização e condições de ser ouvido. É preciso deixar clara essa marca do Plano Emergencial de silenciar os indígenas.

O que é Belo Monte para os povos indígenas do Xingu?
Santi – Um etnocídio. Essa é a conclusão a que cheguei com o Inquérito Civil que investigou o Plano Emergencial. Belo Monte é um etnocídio num mundo em que tudo é possível.

Um indígena com dedo em riste e em pé fala com um homem de camisa social sentado

Liderança dos Xikrin aponta o dedo para o então presidente da Norte Energia, Carlos Nascimento. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

E o Ministério Público Federal vai levar à Justiça o etnocídio indígena perpetrado por Belo Monte?
Santi – Certamente. É necessário reavaliar a viabilidade da usina no contexto gerado pelo Plano Emergencial e pelas condicionantes não cumpridas.´

A ditadura militar massacrou vários povos indígenas, na década de 70 do século 20, para tirá-los do caminho de obras megalômanas, como a Transamazônica. Aquilo que a História chama de “os elefantes brancos da ditadura”. Agora, como é possível acontecer um etnocídio em pleno século 21 e na democracia? Por que não se consegue fazer com que a lei se aplique em Belo Monte?
Thais – Eu virei uma leitora dos Estudos de Impacto Ambiental (EIAs). E os estudos mostraram uma região historicamente negligenciada pelo Estado, com povos indígenas extremamente vulneráveis por conta de abertura de estradas e de povoamentos. Então, Belo Monte não iria se instalar num mundo perfeito, mas num mundo de conflitos agrários, na região em que foi assassinada a Irmã Dorothy Stang, com povos indígenas violentados pela política estatal e com diagnóstico de vulnerabilidade crescente. É isso o que os estudos dizem. O diagnóstico, então, mostra que Belo Monte seria um acelerador, Belo Monte aceleraria esse processo a um ritmo insuportável e os indígenas não poderiam mais se adaptar. Ou seja, Belo Monte foi diagnosticado para os indígenas como uma obra de altíssimo risco. Isso no EIA. Não é de alto impacto, é de altíssimo risco à sua sobrevivência étnica. Com base nesse diagnóstico, os estudos indicam uma série de medidas mitigatórias indispensáveis para a viabilidade de Belo Monte. A Funai avaliou esses estudos, fez um parecer e falou a mesma coisa: Belo Monte é viável desde que aquelas condições sejam implementadas.

E o que aconteceu?
Santi – Para explicar, precisamos falar daquela que talvez seja a questão mais grave de Belo Monte. Para Belo Monte se instalar numa região dessas, o Estado teve que assumir um compromisso. Você não pode transferir para o empreendedor toda a responsabilidade de um empreendimento que vai se instalar numa região em que está constatada a ausência histórica do Estado. Existe um parecer do Tribunal de Contas dizendo que a obra só seria viável se, no mínimo, a Funai, os órgãos de controle ambiental, o Estado, se fizessem presentes na região. Belo Monte é uma obra prioritária do governo federal. Se o Ministério Público Federal entra com ações para cobrar a implementação de alguma condicionante ou para questionar o processo, mesmo que seja contra a Norte Energia, a União participa ao lado do empreendedor. A Advocacia Geral da União defende Belo Monte como uma obra governamental. Só que Belo Monte se apresentou como uma empresa com formação de S.A., como empresa privada. E na hora de cobrar a aplicação de políticas públicas que surgem como condicionantes do licenciamento? De quem é a responsabilidade? Então, na hora de desapropriar, a Norte Energia se apresenta como uma empresa concessionária, que tem essa autorização, e litiga na Justiça Federal. Na hora de implementar uma condicionante, ela se apresenta como uma empresa privada e transfere a responsabilidade para o Estado. Essa mistura entre o empreendedor e o Estado é uma das marcas mais interessantes de Belo Monte. E não só isso. Há as instâncias de decisão. O Ministério do Meio Ambiente define a presidência do Ibama. A presidência da República define o Ministério do Meio Ambiente. Da Funai, a mesma coisa. Então é muito difícil entender Belo Monte, porque a gente tem um empreendimento que é prioritário e ao mesmo tempo a empresa é privada. Ser privada significa contratar o Consórcio Construtor Belo Monte (Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, OAS e outras construtoras com participações menores) sem licitar. Ela diz que não vai fazer, que não cabe a ela fazer. E ninguém manda fazer. Então, a gente tem uma situação em que o empreendedor se coloca como soberano, reescrevendo a sua obrigação. Por exemplo: entre as condicionantes, estava a compra de terra, pela Norte Energia, para ampliação da área dos Juruna do KM 17, porque eles ficariam muito expostos com a obra. A Norte Energia fez a escolha da área. Mas quando a Funai disse para a Norte Energia que comprasse a área, a empresa respondeu: “Não, já cumpri a condicionante. Já fiz a escolha da área, é responsabilidade do governo comprar a área”. E a Funai silenciou. E o Ibama nem tomou conhecimento. Houve uma reunião, e eu perguntei à Funai: “Vocês não cobraram a Norte Energia para que cumprisse a condicionante? Quem tem que dizer o que está escrito é a Funai e não a Norte Energia”. E se a Norte Energia diz “não”, a Funai tem que dizer “faça”, porque existem regras. Conseguimos que a Norte Energia comprasse a área por ação judicial. Mas este é um exemplo do processo de Belo Monte, marcado por uma inversão de papéis. A Norte Energia reescreve as obrigações se eximindo do que está previsto no licenciamento. Quem dá as regras em Belo Monte? O empreendedor tem poder para dizer “não faço”? Veja, até tem. Todo mundo pode se negar a cumprir uma obrigação, desde que use os mecanismos legais para isso. Se você não quer pagar pelo aluguel, porque o considera indevido, e eu quero que você pague, o que você faz? Você vai conseguir lá em juízo, você vai recorrer da decisão. Mas não aqui. Aqui a Norte Energia diz: “Não faço”.

E o governo se omite por quê?
Santi – Não cabe a mim dizer. Há em Belo Monte questões difíceis de entender. O que justifica uma prioridade tão grande do governo para uma obra com impacto gigantesco e com um potencial de gerar energia nada extraordinário, já que o rio não tem vazão em parte do ano? O que que justifica Belo Monte? É inegável que há uma zona nebulosa. Veja o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte, veja quem assina. (Aponta os nomes das empresas: Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Odebrecht…). E, na hora do leilão, eles não participaram do leilão. Surge uma empresa criada às pressas para disputar o leilão. Essa empresa, a Norte Energia, constituída como S.A., portanto uma empresa privada, é que ganha o leilão, que ganha a concessão. E as empreiteiras que participaram dos estudos de viabilidade? Formaram o Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM), que é um contratado da Norte Energia. E a Norte Energia, por sua vez, mudou totalmente a composição que ela tinha na época do leilão. Hoje, com muito mais aporte de capital público. Então, as empreiteiras que fizeram os estudos de viabilidade e de impacto ambiental hoje são meras contratadas, sem nenhuma responsabilidade socioambiental no licenciamento. Os ofícios que enviamos para a CCBM nunca são para cobrar nada, porque não há nenhuma condicionante para elas, nenhuma responsabilidade socioambiental. Com essa estrutura, os recursos de Belo Monte não passam por licitação. O que é Belo Monte? Eu realmente não sei. Não é fácil entender Belo Monte. É a História que vai nos mostrar. E, quem sabe, as operações já em curso (da “Lava Jato”, pela Polícia Federal, que investigam a atuação das empreiteiras no escândalo de corrupção da Petrobrás) tragam algo para esclarecer essa nebulosidade.

O Plano Emergencial foi transformado num balcão de negócios em que os indígenas foram jogados no consumismo dos piores bens
Santi – Eu visitei a aldeia Parakanã, na terra indígena Apyterewa. Quando eu cheguei lá, eu não acreditei nas casas que estavam sendo construídas. Meia-água, de telha de Brasilit. Uma do lado da outra, naquele calor. Eu perguntei para o funcionário da Funai como eles permitiram, porque os Parakanã também são índios de recente contato. E eles não ficavam nas casas, ficavam num canto da aldeia. Aí a gente foi para os Araweté, também construindo. A aldeia estava cheio de trabalhadores. Aquelas meninas andando nuas. Os pedreiros ouvindo música naqueles radinhos de celular. Eu perguntei à Funai: “Como que vocês permitem?”. A Funai não estava acompanhando as obras, não sabia quem estava na aldeia nem de onde tinha vindo aquele projeto de casa. A Funai tinha que acompanhar os programas e ela não está acompanhando. Estava previsto o fortalecimento da Funai e aconteceu o contrário. No Plano de Proteção Territorial estava prevista uma espécie de orquestra para proteger as terras indígenas. Haveria 32 bases, se não me engano, em locais estratégicos, já que proteger o território é condição para proteger os indígenas. Esse plano é uma das condicionantes mais importantes de Belo Monte. Na verdade, Belo Monte seria impensável sem a proteção dos territórios indígenas. E protegeria também as unidades de conservação, freando o desmatamento, porque teria ali Polícia Federal, Ibama, ICMBio, Funai, todos juntos. E isso com previsão de contratação de 120 funcionários para atuar nessa proteção. E isso tinha que anteceder a obra. Daí, em 2011 vem o pedido de Licença de Instalação, já, e o plano não tinha começado. A Funai anuiu com a Licença de Instalação desde que o plano fosse implementado em 40 dias. E diz: “Enfatizamos que o descumprimento das condicionantes expressas nesse ofício implicará a suspensão compulsória da anuência da Funai para o licenciamento ambiental do empreendimento”. É com isso que eu me deparo. No final de 2012, os indígenas cobraram a implementação desse plano em uma ocupação dos canteiros de obra, e ficou claro que sequer havia iniciado a construção das bases. A partir daí, a Norte Energia passou a simplificar e reescrever o plano. A Funai não tinha força para cobrar a implantação da condicionante, mas não anui com o que a Norte Energia passa a fazer. Propusemos uma ação no dia 19 de abril de 2013, que era Dia do Índio, para que cumprissem a condicionante. E que se aplicasse o que estava escrito: que o não cumprimento implicará a suspensão compulsória da anuência da Funai para o licenciamento. O juiz deferiu a liminar quase um ano depois, já em 2014. Mas qual a resposta do Judiciário? Que suspender a anuência da Funai ao licenciamento seria interferir nas opções políticas do governo. Resultado: hoje a gente está virando 2014 para 2015 e a Proteção Territorial não está em execução. Foi a última informação que eu recebi da Funai. O plano ainda não iniciou.

Essa é a situação hoje?
Santi – O Plano Emergencial era um conjunto de medidas antecipatórias indispensáveis à viabilidade de Belo Monte. Envolvia o fortalecimento da Funai, um plano robusto de proteção territorial e o programa de etnodesenvolvimento. O fortalecimento da Funai não foi feito. O plano de proteção não iniciou. E o plano de etnodesenvolvimento? Foi substituído por ações do empreendedor à margem do licenciamento, por meio das quais os indígenas foram atraídos para Altamira, para disputar nos balcões da Norte Energia toda a sorte de mercadoria, com os recursos destinados aos programas de fortalecimento.

Como é possível?
Santi – Eu realmente acho que existe uma tragédia acontecendo aqui, que é a invasão das terras indígenas, é a desproteção. A gente vê a madeira saindo. As denúncias que recebemos aqui de extração de madeira na terra indígena Cachoeira Seca, na terra indígena Trincheira Bacajá, elas são assustadoras. E eu realmente me pergunto: como? A pergunta que eu tinha feito para o juiz nesse processo era isso: “Belo Monte se sustenta no quê, se essa condicionante, que era a primeira, não foi implementada?”. Belo Monte se sustenta no fato consumado. E numa visão equivocada de que, em política, não se interfere. Como se aquela opção política fosse também uma opção por desrespeitar a Lei. O fato é que Belo Monte, hoje, às vésperas da Licença de Operação, caminha sem a primeira condicionante indígena. Eu te digo: é estarrecedor.

Belo Monte caminha, portanto, à margem da Lei?
Santi – Essa ação da Norte Energia se deu à margem do licenciamento. Se os estudos previram que Belo Monte seria de altíssimo risco, e trouxeram uma série de medidas necessárias, e o que o empreendedor fez foi isso… A que conclusão podemos chegar? Se existiam medidas para mitigar o altíssimo risco que Belo Monte trazia para os indígenas, e essas políticas não foram feitas, e em substituição a elas o que foi feito foi uma política marginal de instigação de consumo, de ruptura de vínculo social, de desprezo à tradição, de forma que os indígenas fossem atraídos para o núcleo urbano pelo empreendedor e jogados no pior da nossa cultura, que é o consumismo. E no consumismo dos piores bens, que é a Coca-Cola, que é o óleo… Ou seja: todos os estudos foram feitos para quê? Tanto antropólogo participando para, na hora de implementar a política, o empreendedor criar um balcão direto com o indígena, fornecendo o que lhe der na telha? O que aconteceu em Belo Monte: o impacto do Plano Emergencial, que ainda não foi avaliado, até esse momento, foi maior do que o próprio impacto do empreendimento. A ação do empreendedor foi avassaladora. Então, de novo, qual é o impacto de Belo Monte? O etnocídio indígena.

E o que fazer agora?
Santi – Hoje Belo Monte é uma catástrofe. Eu demorei um ano para ver, um ano para conseguir compreender e agora eu vou te dizer o que eu acho. Se a Lei se aplicasse em Belo Monte, teria que ser suspensa qualquer anuência de viabilidade desse empreendimento até que se realizasse um novo estudo e fosse feito um novo atestado de viabilidade, com novas ações mitigatórias, para um novo contexto, em que aconteceu tudo o que não podia acontecer.

É possível afirmar que a Norte Energia agiu e age como se estivesse acima do Estado?
Santi – A empresa se comporta como se ela fosse soberana. E é por isso que eu acho que a ideia aqui é como se a Lei estivesse suspensa. É uma prioridade tão grande do governo, uma obra que tem que ser feita a qualquer custo, que a ordem jurídica foi suspensa. E você não consegue frear isso no poder judiciário, porque o Judiciário já tem essa interpretação de que não cabe a ele interferir nas políticas governamentais. Só que o poder judiciário está confundindo legitimidade com legalidade. Política se sustenta na legitimidade e, feita uma opção, o respeito à Lei não é mais uma escolha, não é opcional. E aqui virou. E quem vai dizer para o empreendedor o que ele tem que fazer?
Além da questão indígena, há também a questão dos reassentamentos. Em novembro, o Ministério Público Federal de Altamira fez uma audiência pública para discutir o reassentamento de moradores da cidade, que foi muito impactante.

Qual é a situação dessa população urbana com relação à Belo Monte?
Santi – De novo, como no caso dos indígenas, nós temos uma obra de um impacto enorme, numa região historicamente negligenciada, e o Estado tinha que estar instrumentalizado para que Belo Monte acontecesse. E quando nós nos demos conta, a obra está no seu pico – e sem a presença de Defensoria Pública em Altamira. Até 2013, havia uma pessoa na Defensoria Pública do Estado, que acompanhava a questão agrária, uma defensora atuante com relação à Belo Monte, mas que precisava construir uma teoria jurídica para atuar, porque ela era uma defensora pública do Estado e as ações de Belo Monte eram na Justiça Federal. Depois, todos foram removidos e não veio ninguém substituir.

Isso na Defensoria Pública Estadual. Mas e a federal?
Santi – A Defensoria Pública da União nunca esteve presente em Altamira.

Nunca? Em nenhum momento?
Santi – Não. E a Defensoria Pública do Estado também não estava mais.

A população estava sendo removida por Belo Monte sem nenhuma assistência jurídica? As pessoas estavam sozinhas?
Santi – Sim. É incompreensível que, em uma obra que cause um impacto socioambiental como Belo Monte, a população esteja desassistida. Num mundo responsável, isso é impensável. E acho que para qualquer pessoa com um raciocínio médio isso é impensável. Então fizemos uma audiência pública para que todos pudessem realmente ser escutados. Porque um dia chegou na minha sala uma senhora muito humilde. Poucas vezes eu tinha me deparado com uma pessoa assim, por que ela veio sozinha e já era uma senhora de idade. E eu não conseguia entender o que ela falava. Eu não conseguia. Ela estava desacompanhada, desesperada, e eu falei pra ela assim: “A senhora espera lá fora, que eu vou resolver algumas coisas aqui, e eu vou com a senhora pessoalmente na empresa”. Porque o reassentamento, como ele é feito? A Norte Energia contratou uma empresa que faz o papel de intermediária entre a Norte Energia e as pessoas. Chama-se Diagonal. Então cheguei na empresa com ela. É uma casa, as pessoas ficam do lado de fora, naquele calor de 40 graus, esperando para entrar. E, uma a uma, vão sendo chamada para negociar. Essa senhora foi lá negociar a situação dela. E ofereceram para ela uma indenização. E ela não queria uma indenização, ela queria uma casa. E ela diz: “Eu não quero a indenização, eu quero uma casa!”. Neste momento, ela está falando com um assistente social da empresa. E aí, se ela não concorda com o que está sendo oferecido, o advogado da empresa vai explicar a ela por que ela não tem direito a uma casa. E se ela continuar não concordando, esse processo vai para a Norte Energia. Para mim, isso já foi uma coisa completamente estranha. A palavra não é estranha… Eu diria, foi uma coisa interessante. Porque a Norte Energia funciona como uma instância recursal, da indignação da pessoa contra uma empresa que é uma empresa contratada por ela. Então a revolta das pessoas é contra a empresa Diagonal. Aí o caso da pessoa vai para a Norte Energia, e a Norte Energia vai com seu corpo de advogados – 26 advogados contratados só para esse programa – fazer uma avaliação e explicar para a pessoa as regras que são aplicadas. E que, se essa pessoa não aceitar, ela tem um prazo para se manifestar. E, se ela não se manifestar nesse prazo, ou se ela não concordar, o processo vai ser levado para a Justiça, e a Norte Energia vai pedir a emissão da posse. A senhora vai ter que sair de qualquer jeito e discutir em juízo esses valores. Veja a situação com que eu me deparei. Primeiro: a senhora não tinha nenhuma condição nem de explicar a história dela, ela tinha dificuldades de falar. Porque o tempo deles é outro, a compreensão de tudo é outra. A gente está falando de pessoas desse mundo aqui, que não é o mundo de lá, é o mundo de cá. E que eu mesma não tinha capacidade de entender. Então, essa pessoa, que tem dificuldade para se expressar, como ela vai dialogar sozinha, na mesa do empreendedor, com advogados e pessoas que estão do lado de lá? Naquele momento eu tive a compreensão de que, primeiro, existia uma confusão de papéis ali, porque a Norte Energia se apresentava como instância recursal, mas fazia o papel dela. A outra empresa também fazia o papel dela. Quem estava ausente era o Estado. Quem estava ausente era quem tinha que acompanhar essa pessoa. Então, quem estava se omitindo ali era o Estado. Para mim era inadmissível que aquela senhora estivesse sozinha negociando na mesa do empreendedor. Na audiência pública apareceu outra senhora que assinou, mas contou chorando que não sabia ler. Assinou com o dedo. Assinou uma indenização, mas queria uma casa. Isso resume a violência desse processo. Há muitos casos. Muitos. E tudo isso estava acontecendo porque a Defensoria Pública da União não estava aqui. Uma das funções da audiência pública foi chamar o Estado. A Defensoria Pública é uma instituição que está crescendo, que se fortalece, e eu acho que ela não pode deixar à margem uma realidade com risco de grande violação de direitos humanos, como é Belo Monte.

Indígenas Xikrin durante ocupação de um dos canteiros de obras da hidrelétrica de Belo Monte. (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Como se explica um empreendimento desse tamanho, com milhares de remoções, sem a presença da Defensoria Pública da União?
Santi – Como você imagina uma obra com o impacto de Belo Monte sobre 11 terras indígenas, com o impacto que já ficou claro, com alto risco de destruição cultural, sem a Funai estruturada? Como a Funai está em Altamira com o mesmo número de servidores que ela tinha em 2009? Como não foi feita uma nova sede da Funai? Como não foi contratado um servidor para a Funai? E o ICMBio? Temos aqui seis unidades de conservação na área de impacto do empreendimento. Entre essas unidades, só a Estação Ecológica da Terra do Meio tem três milhões de hectares. Se você me perguntar hoje quantos gestores o ICMBio tem nessas unidades eu vou te dizer: a unidade da (Reserva Extrativista) Verde para Sempre está sem gestor. A unidade do Iriri está sem gestor, foi contratado um cargo em comissão. Ou seja, não existe servidor do ICMBio pra cuidar dessa unidade do Iriri. Para a resex Riozinho do Anfrísio também foi contratado um servidor extraquadro. Para o Parque Nacional da Serra do Padre também. A gente tem Belo Monte com um impacto no seu ápice, no momento da maior pressão antrópica já prevista, com as unidades de conservação sem gestor. E o impacto, o desmatamento, é uma prova disso. Na Resex Riozinho do Anfrísio a extração ilegal de madeira já atravessou a unidade e chegou nos ribeirinhos. É uma região que está numa efervescência de impacto. E o concurso público realizado para o ICMBio só previu a contratação de analistas para o Tapajós, onde o ICMBio precisa hoje fazer uma avaliação positiva para que sejam autorizados os empreendimentos das hidrelétricas lá. Eu não consigo entender como o Estado se lança a outro empreendimento sem responder pelo que está acontecendo aqui. Eu te falo isso porque você me pergunta como é possível a Defensoria Pública não estar aqui. Para mim, isso não é um susto, porque eu estou acompanhando outras instituições absolutamente indispensáveis no licenciamento de Belo Monte e totalmente defasadas. E o ICMBio é uma prova disso. E os gestores que têm aqui do ICMBio são extremamente atuantes. Mas, sozinhos, eles não dão conta. Como é possível uma pessoa responder pelos três milhões de hectares da estação ecológica? E sem nenhum apoio? O que eu posso dizer é que, nas investigações que fizemos aqui com relação à Belo Monte, a realidade é a ausência do Estado. Num mundo em que tudo é possível, a gente consegue viver com uma realidade em que 8 mil famílias vão ser reassentadas sem que a Defensoria Pública da União tivesse sido acionada para vir para Altamira. Belo Monte é o mundo em que o inacreditável é possível.

Voltando ao início dessa entrevista, qual é a analogia que a senhora faz entre os estudos de Hannah Arendt sobre os totalitarismos e essa descrição que a senhora fez até aqui sobre o processo de Belo Monte?
Santi – Vai ficando mais claro, né? Quando eu coloquei para você que a Lei está suspensa, ou seja, as regras, os compromissos assumidos, as obrigações do licenciamento, na verdade eu pensava no Estado de Exceção. Eu entendo que essa realidade que eu descrevo é a realidade de um Estado de Exceção.

Mas, como é possível que tudo seja possível?
Santi – Quando você assiste ao governo se lançar a um novo empreendimento, desta vez no Tapajós, com outro impacto brutal, sem responder pelo passivo de Belo Monte, o que vem à mente? E a gente, nesse dia a dia de Belo Monte, assistindo a esse impacto, assistindo ao desmatamento, assistindo à questão dos indígenas, ao sofrimento da população local, assistindo às pessoas morrendo porque o hospital está superlotado, assistindo aos indígenas completamente perdidos… E então a gente vê o governo se lançar a um novo empreendimento. A pergunta que vem é essa: como é possível? Belo Monte não acabou. Quando, um ano atrás, a então presidente da Funai (Maria Augusta Assirati) deu uma entrevista (à BBC Brasil) falando de Belo Monte, ela disse a seguinte frase: “Nenhum dos atores envolvidos estava preparado para a complexidade social, étnica e de relações públicas que foi Belo Monte”. Quando eu leio uma frase como essa, e a gente assiste ao governo brasileiro usar Belo Monte como campanha política na época das eleições, e se lançar a um novo empreendimento, eu me pergunto: o que dizer a um governo que diz que não estava preparado para Belo Monte? Belo Monte não acabou. Se você tem responsabilidade, a sua responsabilidade não acaba porque a tragédia aconteceu. Ou seja, o passivo de Belo Monte, no Xingu, fica, e o governo vai começar uma nova empreitada no Tapajós? E qual é a prova de que essa nova empreitada não vai causar um passivo como este? A prova tem que ser feita aqui em Belo Monte. A Funai tem que estar estruturada aqui. As terras têm que estar protegidas aqui. A população tem que ter sido removida com dignidade aqui. Então, quando você me pergunta de Hannah Arendt, eu lembro dessa frase da presidente da Funai. Quando Arendt conclui o julgamento do nazista (em seu livro “Eichmann em Jerusalém”), ela diz o seguinte: “Política não é um jardim de infância”. E ela estava analisando o genocídio. Eu não tenho dúvida de dizer que aqui a gente está analisando um etnocídio, e política não é um jardim de infância. Então, a ação do Ministério Público aqui é a de responsabilizar, até onde for possível. Um dia essas ações vão ser julgadas. Belo Monte um dia será julgada.

A maioria das ações que o Ministério Público Federal está propondo, há anos, esbarram nos presidentes dos tribunais. Por quê? Qual é a sua hipótese?
Santi – Belo Monte é uma obra “sub judice”. Vai ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal. São 22 ações, com conteúdos extremamente diversificados. A postura do Poder Judiciário de que o fundamento jurídico, o mérito da ação, fique suspenso de análise com base na decisão política, que é a suspensão de segurança, é uma decisão que não precisa de respaldo na Lei, ela busca respaldo nos fatos. A suspensão de segurança é um mecanismo extremamente complicado, porque ele abre o Direito.

Acho que é importante aqui fazer um parêntese para explicar aos leitores que o mecanismo jurídico de “suspensão de segurança” é um resquício da ditadura. Ele impede qualquer julgamento antecipado de uma ação, que poderia ser pedido por conta da urgência, da relevância e da qualidade das provas apresentadas. É concedido pela presidência de um tribunal, que não analisa o mérito da questão, apenas se limita a mencionar razões como “segurança nacional”. Assim, quando o mérito da ação é finalmente julgado, o que em geral leva anos, uma obra como Belo Monte já se tornou fato consumado. Quais são as justificativas para o uso de suspensão de segurança em Belo Monte?
Santi – Em Belo Monte as justificativas são a necessidade da obra, o prazo, o cronograma, os valores, o quanto custa um dia de obra parada ou a quantidade de trabalhadores que dependem do empreendimento. Com esses fundamentos muito mais fáticos, empíricos e políticos, o mecanismo da suspensão de segurança permite a suspensão da decisão jurídica liminar que se obtém nas ações judiciais. E, com isso, as decisões acabam perdendo a capacidade de transformação. Com uma ressalva com relação à Belo Monte: as pessoas de direito privado não podem requerer a suspensão de segurança. A Norte Energia não poderia pedir. Quem faz isso, então, é a Advocacia Geral da União, que atua ao lado da Norte Energia nas ações judiciais. Ainda, a interpretação desse mecanismo vem permitindo que ele se sobreponha a todas as decisões – e não apenas as liminares – até o julgamento pela instância final. É um mecanismo que tem previsão legal, mas é um mecanismo extremamente complicado, porque pode se sustentar em fatos. E o Direito que se sustenta em fatos é o Direito que se abre ao mundo em que tudo é possível. O Ministério Público Federal não questiona a opção política do governo por Belo Monte, mas questiona o devido processo de licenciamento. A gente questiona a legalidade, não a legitimidade dessa opção. Mas o fato é que essa legitimidade é obtida sem o espaço de diálogo. E hoje eu realmente acho que a sociedade deveria refletir e discutir essa opção de interferência nos rios da Amazônia. Nós já sabemos o impacto que o desmatamento vem causando, a gente sabe o valor da água, a gente sabe o valor da Amazônia. Por isso, entendo que essas decisões que podem se sustentar em fatos são perigosas para o Estado democrático de Direito, já que os fatos nem sempre têm respaldo democrático.

Na sua opinião, com tudo o que a senhora tem testemunhado, qual será o julgamento de Belo Monte no futuro?
Santi – Ah, eu acho que essa pergunta é um pouco complicada. Sinceramente, eu acho que essa questão da legitimidade de Belo Monte tem que ser discutida num debate público. Eu me coloco como procuradora da República. Estou falando da minha leitura jurídica desse processo. Agora, se perguntar para a Thais, pessoa, o que ela acha que vai acontecer com Belo Monte, eu te diria que há perguntas que precisam ser feitas. Será que o modo de vida dessa região poderia ser suportado por outras fontes de energia? Eu não tenho dúvida que sim. Na região, quem precisa de Belo Monte são as indústrias siderúrgicas, e uma mineradora canadense (Belo Sun) que vai se instalar e extrair ouro em escala industrial, na região de maior impacto de Belo Monte. Então, quem depende dessa energia é essa empresa e outras que virão. E isso é uma coisa que tem me assustado muito com relação à Belo Monte. Uma das consequências de Belo Monte é essa possibilidade de extração de recursos minerais em escala industrial na Amazônia. E a disputa por esses recursos já começou. Fico extremamente preocupada com a possibilidade de instalação de um empreendimento minerário desse porte na região do epicentro de impacto de Belo Monte, sem que tenha sido feito o estudo do componente indígena e sem a avaliação do Ibama. Vai haver ali uma sobreposição de impactos.

É bem séria e controversa, para dizer o mínimo, a instalação dessa grande mineradora canadense, Belo Sun. Qual é a situação hoje?
Santi – Esse projeto minerário prenuncia um ciclo de exploração dos recursos naturais da Amazônia em escala industrial, que se tornará viável com Belo Monte. É também o prenúncio de um grave risco. De que grandes empreendimentos venham sobrepor seus impactos aos da hidrelétrica, sem a devida e competente avaliação. Com isso, os impactos de Belo Monte acabam por se potencializar a uma dimensão extraordinária. E o pior, as ações mitigatórias indispensáveis ao atestado de viabilidade da hidrelétrica perigam perder a eficácia, caso não haja um cauteloso controle de sobreposição de impactos. Se a geração de energia por Belo Monte depende do desvio do curso do rio Xingu, e a viabilidade da hidrelétrica para os povos indígenas da região depende de um robusto monitoramento para que se garanta a reprodução da vida no local, como um projeto de alto impacto localizado no coração do trecho de vazão reduzida do rio Xingu pode obter atestado de viabilidade sem estudos de impacto sobre os povos indígenas? E, se quem licencia Belo Monte é o Ibama, que é o órgão federal, e quem tem atribuição constitucional de proteger os povos indígenas é a União, como esse licenciamento poderia tramitar perante o órgão estadual? São essas questões que o Ministério Público Federal levou ao Poder Judiciário, sendo que hoje há uma sentença anulando a licença emitida, até que se concluam os estudos sobre os indígenas. Decisão que está suspensa até que seja julgado o recurso da Belo Sun pelo Tribunal Regional Federal em Brasília. Há também uma decisão recente impondo ao Ibama que participe de todos os atos desse licenciamento perante o órgão estadual. Mas, quando você me pergunta o que vai ser Belo Monte no futuro, acho que a grande questão de Belo Monte vai ser: para quem Belo Monte? Por que Belo Monte?

Há uma caixa preta em Belo Monte?
Santi – As questões nebulosas de Belo Monte, o fato de a obra ser uma prioridade absoluta, são questões que a História vai contar, e eu espero que conte rápido.

Como é viver em Altamira, no meio de todos esses superlativos?
Santi – Na verdade, a realidade me encanta. Mesmo trágica. Entende? Por mais que a gente tenha vontade de chorar, ela é impressionante. Eu me surpreendo a cada dia com as coisas que acontecem aqui, seja pelo tamanho das áreas, já que estamos falando de milhões de hectares, de grilagem de terra de 200 mil hectares, de desmatamento de 1 mil hectares. Tudo é da ordem do inimaginável. Então eu acabo tendo muito essa posição de uma intérprete da realidade. Quando eu decidi ficar em Altamira, algumas pessoas falaram: “Nossa, parabéns pelo ato de desprendimento!”. Mas, para mim, ficar em Altamira é um privilégio. Conhecer as populações tradicionais é um privilégio. Poder receber um cacique, aqui, é um privilégio. Então, a minha relação com Altamira é de que cada dia eu me curvo mais. Quando eu falo “eu me curvo mais” é no sentido de ficar mais humilde diante das pessoas daqui. Há um momento do dia em que o sol provoca uma espécie de aura dourada na Volta Grande do Xingu. Eu vou ao rio porque eu quero ver isso. E cada dia é diferente. Ele nunca está igual. Quando eu vejo o rio, eu só tenho a agradecer a possibilidade de ele existir. É como esses índios, como esses ribeirinhos. Obrigada por serem diferentes, por me mostrar um mundo diferente do que eu estava acostumada em Curitiba. Eu acho tão bonito o menino que toma banho no barril, aí a mãe penteia o cabelinho dele pro lado, coloca ele na garupa da bicicleta, e leva ele na bicicleta. Eu adoro ver… Eu adoro observar. No meu dia a dia eu vivo esse encantamento pela região, sabendo que daqui pra lá a gente tem uma floresta que atravessa a fronteira do Brasil e que é maravilhosa. E que é o que, no futuro, vai ser a coisa mais valiosa. Como eu trabalho com a questão de Belo Monte, me vem no fundo esse sentimento de tristeza por conhecer a audácia do homem de mexer naquilo, de desviar esse rio.

Quando a encontrei numa reserva extrativista, dias atrás, a senhora brincou que sentia um pouco de inveja dos ribeirinhos. Como é isso?
Santi – É que eu acho que o trabalho deles é mais importante do que o meu. Eu realmente acho. Se você tem um olhar para o outro como se ele fosse um pobre, como se fosse um desprovido, a nossa atuação é muito limitada. Hoje eu tenho um olhar para eles de que eu tenho o direito de que eles continuem vivendo assim. Porque eles conhecem uma alternativa. Então, eu hoje sinto que é um direito nosso, do mundo de cá, e não só deles. É essa a dimensão que eu te falo. Eu agora reescrevo e recompreendo o meu trabalho, porque ele ganha uma outra dimensão sob essa perspectiva. Ou seja: o Ministério Público protege as populações indígenas e tradicionais não só porque elas têm direitos, mas também porque é importante para o conjunto da sociedade que o modo de vida delas continue existindo. Elas têm o direito de se desenvolver a partir delas mesmas, e não segundo o que a gente acha que é bonito. E nós, nossos filhos, precisamos desse outro modo de vida, precisamos que vivam assim. Por isso, também, o processo de Belo Monte com relação aos indígenas é tão doloroso.

A senhora mencionou que seria importante que a sociedade fizesse um debate público sobre a interferência do Estado nos rios da Amazônia. Por que a senhora acha que a sociedade não está fazendo? Ou, dito de outro modo: por que as pessoas não se importam?
Santi – Essa é a pergunta mais difícil. Acho que a Amazônia não interessa só ao Brasil, interessa para o mundo todo. E esse impacto tem que ser discutido até a última possibilidade das fontes alternativas. O que eu quero dizer é: se a política do governo se sustenta numa legitimidade que depende da aceitação popular com relação à utilização dos rios da Amazônia como fonte geradora de energia, esse debate tem que ser feito. E hoje eu acredito que é um momento importante, porque o Brasil está vivendo a falta de água. E essa falta de água está sendo relacionada ao desmatamento da Amazônia. E o desmatamento da Amazônia aumentou, a gente sabe disso. As pessoas vêm aqui relatar o que está saindo de caminhão com madeira. É um relato que já é público, e o Brasil tem hoje, talvez, o bem mais precioso do mundo, que é a Amazônia. É por isso que esse debate é importante, porque tem que ser dada à população o espaço mais livre possível de debate, de diálogo, sobre o que se pretende fazer com seu bem mais precioso. Com o risco, inclusive, de que seja tirado dela. Por isso que é realmente importante que se discuta isso. Acho que quando eu não vivia aqui, eu não tinha a dimensão. A gente sabe de longe, mas eu não tinha a dimensão do que estava acontecendo. É muito grande. Primeiro tira a madeira mais nobre, aí desmata, aí vem o gado. Inclusive a carne… Eu não como carne há muitos anos. Eu já tinha uma opção por ser vegetariana. Mas, agora, depois que eu vejo o que precisa para criar um boi, e o quanto isso interfere na região amazônica, eu não tenho coragem de comer carne. Carne, para mim, vem com a imagem daquele tronco que está saindo daqui. Eu sofro por ver o tamanho das toras de madeira que saem daqui. Sofro. Dói ver. Eu sofro de deixar o meu lixo aqui. Porque eu sei que Altamira não tem reciclagem. Eu levo meu lixo embora, eu não deixo o meu lixo aqui.

Leva de avião?
Santi – Eu levo meu lixo para ser reciclado em Curitiba. Porque a gente vive na fronteira da Amazônia, numa região em que a questão do lixo é extremamente complicada, e realmente tem que ter coragem para jogar, eu não consigo. Uma vez eu li um livro que se chama “Os Cidadãos Servos”, de Juan Ramón Capella. E eu lembro que esse livro falava o seguinte: que as pessoas apertam a descarga do banheiro e têm a sensação de que estão limpando a sua casa. E, quando você aperta a descarga, na verdade você está sujando o mundo. Então, eu tenho essa sensação muito forte de que, quando eu coloco o meu saco de lixo na rua, em vez de fazer uma composteira, eu estou sujando o mundo, eu estou sujando a minha casa, porque a minha casa é o mundo. Acho que o debate em torno da Amazônia passa por isso. Por um debate em torno desse individualismo, da forma como as pessoas vivem centradas no consumismo, no que as pessoas buscam, que está desconectado do outro e está desconectado do mundo. Para mim é muito claro que a minha casa não acaba na porta da minha casa, a minha responsabilidade pelo mundo não acaba na porta do meu universo individual. Não é razão, é um sentimento de que a casa das pessoas está aqui, também. Nesse contexto em que a gente vive, as pessoas têm uma preocupação com o eu, com a beleza, com a estética, com o consumo. Então é muito difícil ter um debate público em torno das questões ambientais. É uma marca de uma época, mesmo. E há outra questão que eu acho mais forte ainda, e que me assusta mais em Belo Monte. Daí eu vou te explicar com um pouquinho de calma… Não vai acabar nunca a entrevista!

Fica tranquila…
Santi – Eu acho o seguinte. Eu já falei que vejo Belo Monte como um etnocídio. Quando a Hannah Arendt estuda os regimes totalitários, ela faz uma descrição do nazismo, ela faz uma descrição da política de Hitler que é muito interessante. O Hitler afirmava que tinha descoberto uma lei natural, e que essa lei natural era uma lei da sobreposição de uma raça, de um povo sobre o outro. Os judeus seriam um obstáculo que naturalmente seria superado por essa lei natural. Quando eu digo que os estudos de Belo Monte identificaram um processo de desestruturação dos povos indígenas da região, que já tinha começado com a Transamazônica, e que Belo Monte só acelera esse processo, me vem essa imagem de Hannah Arendt dizendo que Hitler apenas descobriu uma forma de acelerar o processo de uma lei natural que ele afirmava ter descoberto. E aqui, o que Belo Monte faz a esse processo de desestruturação iniciado com a Transamazônica é acelerá-lo a um ritmo insustentável para os indígenas. E talvez seja essa a justificativa para as suspensões das decisões judiciais, e de a Lei não se aplicar aqui. O que me assusta é a forma como a sociedade naturaliza esse processo com uma visão de que é inevitável que os indígenas venham a ser assimilados pela sociedade circundante, pela sociedade hegemônica. E aceitar que Belo Monte vai gerar a perda de referências e conhecimentos tradicionais com relação à Amazônia, a perda de outras formas de ver o mundo que poderiam ser formas de salvação, mesmo, do futuro. Então, esse processo de etnocídio é naturalizado e, por ser naturalizado, não dói para as pessoas. Não dói o fato de os índios estarem morrendo. Numa sociedade de consumo, desde que não se perca o eu hegemônico de cada um, a morte cultural de um povo não dói. Então, o que eu sinto é isso: é extremamente assustador a forma como a sociedade aceita esse processo.

É por isso, afinal, porque a maioria da população brasileira não se importa com a morte cultural dos povos indígenas, e mesmo com a morte física, nem se importa com a morte da floresta, que Belo Monte é possível apesar de atropelar a Lei?
Santi – Em última instância, as decisões judiciais também têm o respaldo da sociedade. Se essas suspensões de segurança causassem uma reação muito forte, elas não teriam legitimidade. Por que o silêncio? Como a sociedade aceita a não garantia dos direitos dos povos indígenas? Aceita porque naturaliza esse processo, que é um processo totalitário. É um processo em que o eu único, o todo, prevalece sobre o diferente. E que você não é capaz de olhar o diferente com respeito, como algo que é diferente de você, do seu eu. Isso é uma realidade, mesmo, que a gente está vivendo, de dificuldade para os povos indígenas, para as populações tradicionais, para essas culturas diferentes se manterem. Mesmo que hoje exista uma série de garantias fundamentais, de ordem internacional, na Constituição Federal, é muito difícil. E é por isso que aqui, no Brasil, quem dá a palavra sobre isso é o Supremo Tribunal Federal. E o Supremo tem que fazer isso, pela leitura da Constituição. Então um dia isso vai ser julgado. Um dia o Plano Emergencial vai ser julgado pelo Supremo. Um dia a forma como os índios não foram ouvidos nesse processo vai ser julgada pelo Supremo.

Mas aí o fato já está consumado.
Santi – É, esse é o problema. É o fato que a cada dia se consuma.

A senhora se sente impotente diante de Belo Monte, desse fato que se consuma apesar de todo o esforço, de todas as ações, e sem o apoio da sociedade, que se omite?
Santi – Acho que o Ministério Público Federal não é impotente. Mas eu penso que hoje, sozinho, apenas pela via do poder judiciário, o Ministério Público Federal não consegue fazer com que a Lei se aplique aqui. Belo Monte é um desafio ao Estado de Direito. Acima de tudo, acredito que a história tem que ser contada. E o que o Ministério Público Federal vem fazendo aqui em Altamira é a história viva de Belo Monte. E aí, eu diria: o Ministério Público não silencia. Não sei o que a História vai dizer de Belo Monte. Mas, o que eu posso dizer é que o Ministério Público Federal não silenciou

A entrevista ‘A anatomia de um etnocídio’ foi publicada primeiramente no El País

 
 

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