A Amazônia deve ser ponto crucial na COP26, diz Nobel da Paz Philip Fearnside

Ilustração do planeta terra. Escrito ao lado: UN Climate Change Conference UK 2020
Para o pesquisador, a situação do Brasil não é animadora, mas nem por isso o fatalismo é uma opção

Na Convenção-Quadro do Clima das Nações Unidas deste ano, a COP26, que acontece em Glasgow no final de outubro, líderes de 197 países se reunirão com objetivo de assegurar redução das emissões de carbono e lidar com as mudanças climáticas. Philip Fearnside, cientista do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e ganhador do Nobel da Paz de 2007 ao lado de 3000 cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), destaca que a conferência ainda não leva em conta algumas das principais fontes de emissões do mundo: a degradação da floresta amazônica.

Em carta publicada na revista Nature em setembro, Fearnside, ao lado de outros pesquisadores, afirmou que diminuir as taxas de desmatamento nas nações amazônicas não basta para manter o aquecimento do planeta abaixo de 1,5ºC. A publicação, intitulada Amazonian forest degradation must be incorporated into the COP26 agenda, alerta que a degradação florestal causada por incêndios, extração seletiva de madeira e efeitos de borda também pode resultar em grande liberação de CO2 (um gás de efeito estufa), e ainda não está na pauta.

Homem de 70 anos com um bigode farto. Ele usa óculos

Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Arquivo pessoal)

Para o pesquisador, as expectativas em relação ao Brasil neste próximo encontro do clima não são altas. Em 2018, o governo de Jair Bolsonaro se recusou a hospedar a COP, alegando questões orçamentárias. No ano seguinte, o presidente não compareceu ao encontro. Em meio a recorde atrás de recorde de desmatamento na Amazônia, o único compromisso anunciado foi o de zerar o desmatamento ilegal até 2030 — promessa que, Fearnside ressalta, também pode ser cumprida por meio da legalização gradual e sistemática de procedimentos atualmente proibidos.

Ser fatalista, porém, não é o caminho, diz o pesquisador. A perspectiva é de que, por meio de decisões mundiais e multilaterais feitas na convenção, seja possível aplicar pressão e fiscalização internacionais para que o controle das emissões seja cumprido e o aquecimento global, controlado.

A carta à revista Nature que o senhor assinou em conjunto com outros cientistas demanda da COP a inclusão da degradação florestal às taxas de desmatamento para calcular as emissões de carbono. Qual a diferença entre desmatar e degradar?
Degradar, com relação ao efeito estufa, significa diminuir o estoque de carbono, a biomassa da floresta, sem remover a cobertura florestal completamente. Pode ocorrer por meio da exploração madeireira e incêndios florestais facilitados pela própria exploração, como ocorre na Amazônia, Califórnia e Austrália. Além de outros elementos como a invasão de bambu e cipós que degradam a floresta. É preciso ter contabilidade de toda a perda, não só da ação humana, para cumprir o Acordo de Paris e manter a temperatura do planeta dentro dos limites estipulados. Não importa que país é responsável, se foi intencional ou não, natural ou não. Por enquanto, o que entra nos relatórios que cada nação envia à Comissão de Clima é só a parte proposital. Isso gera uma projeção errônea da porcentagem necessária de redução de emissões. Assim, a conta não vai fechar. O planeta vai continuar esquentando.

Por que a degradação ainda não é explicitamente relatada pelos países amazônicos?
É mais difícil de estimar, mas isso não é desculpa. É preciso alcançar e relatar o número mais preciso possível. Segundo as regras, os guidelines, dos relatórios da Comissão do Clima, já é obrigatório relatar essas emissões, mas os países não o fazem. Isso tem que mudar. A COP pode ser um instrumento para implementar alguma forma de fiscalização, pois existe uma vontade geral muito grande de controlar as mudanças climáticas. Existe uma força-tarefa, que inclui o IPCC, para fazer a revisão dos guidelines. Vamos ver o que acontece na prática, mas é bom que os países estejam acordando para a gravidade da situação.

Quais são as expectativas da COP26 para o Brasil, de modo geral?
É importante não ser fatalista, mas é evidente que o Brasil não está em uma situação muito animadora em termos ambientais. O próprio presidente nega a existência do aquecimento global, que é um fato reconhecido. O que foi falado em discursos nas Nações Unidas e reuniões com lideranças internacionais, como o presidente americano Joe Biden, não dá tanto ânimo. Bolsonaro prometeu zerar o desmatamento ilegal até 2030, coisa que a ex-presidente Dilma Roussef já tinha prometido. Só que há duas maneiras de fazer isso: a primeira é, claro, reduzir o desmatamento, e a segunda é simplesmente legalizar o desmatamento que já está acontecendo. E esse é o caminho que já está em curso. As leis de grilagem em progresso, como o PL 2.633/2020, legalizam posses da terra em áreas sem destinação, depois o desmatamento que já foi feito e flexibilizam autorizações para desmatamentos futuros. A tendência é legalizar tudo. Pelo menos, os ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores que negavam as mudanças climáticas já caíram. Mas na cúpula, não temos apoio.

Acredita que podemos ver algum avanço ou resultado da COP deste ano mesmo sob a administração atual?
Não é fácil, mas não devemos simplesmente desistir. Se todo mundo considera uma causa perdida, vira uma profecia autorrealizável.

Em 26 edições, a Convenção-Quadro do Clima das Nações Unidas mais conhecida talvez seja a de 2015, quando foi estabelecido o Acordo de Paris, marco no processo multilateral de mudança climática. Seis anos depois, qual foi o efeito desse acordo?
A maioria dos países está muito aquém do que foi prometido, mas há algumas surpresas positivas. Nos anos seguintes a 2015, depois que o Acordo de Paris estipulou que era necessário manter o aquecimento global “bem abaixo de 2ºC”, o discurso circulante focou-se apenas nos “2ºC”. Agora, quase toda fala é sobre 1,5ºC de aquecimento como limite. É bem mais difícil de conseguir, mas muito melhor que 2ºC. É essencial não ultrapassar esses tipping points, ou pontos de não retorno. Contudo, é fato que os países continuam emitindo carbono, inclusive o Brasil. Esperávamos que o desmatamento no país fosse chegar a praticamente zero agora, se a tendência a partir de 2004 se mantivesse, quando foi implementado o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal – PPCDAm, do Ministério do Meio Ambiente. Mas o desmatamento mais que dobrou desde 2012, 2,5 vezes mais.

Acha que precisamos de um novo marco nessas discussões? Seria a Amazônia parte importante desta nova etapa?
A Amazônia seria muito importante em uma nova etapa, por várias razões. Em primeiro lugar, ela emite uma quantidade razoável de CO2 todo ano, devido ao desmatamento. É preciso pensar no controle dessas emissões, assim como pensamos nos combustíveis fósseis. A Amazônia é ponto-chave na questão do chamado “runaway greenhouse effect”, ou efeito estufa em fuga, descontrolado, que ocorre quando a atmosfera de um planeta contém gases do efeito estufa em quantidade suficiente para impedir a radiação térmica de deixar o planeta, evitando que o planeta esfrie e tenha água líquida em sua superfície. Em segundo lugar, não é apenas possível diminuir as emissões por desmatamento na região amazônica, é também é mais barato! É de interesse do país, independentemente do aquecimento global, por conta das outras funções da floresta. Ela supre água para São Paulo, por exemplo.

Estima-se que toda a sociedade humana emita cerca de 49 bilhões de toneladas de CO2 por ano, ou 13 bilhões de toneladas de carbono. O mínimo a fazer é não emitir mais nada, não queimar mais nenhum barril de petróleo e não derrubar mais nenhuma árvore. Mas o que sai de outras fontes, como os incêndios florestais, a tundra derretendo, as turfas, os bois que liberam metano, todo o oceano que perde capacidade de absorver CO2 conforme se esquenta, se soma a essas 13 bilhões de toneladas e o aquecimento global vai saindo do controle. A Amazônia é chave para isso, pois possui um enorme estoque de carbono, tanto as árvores como o solo, que pode ser emitido em um curto espaço de tempo. É importante evitar que isso aconteça, com foco em não desmatar mais, para reduzir o perigo.

Qual a estimativa do custo do desmatamento da Amazônia para o Brasil?
Há algumas publicações que estimam isso, mas não englobam tudo, como as secas no Sudeste do Brasil. Essa questão, por exemplo, é enorme. Não apenas a questão financeira, mas a questão da vida. Já estamos passando por secas fortes, como a de 2014, quando São Paulo quase ficou sem água para beber. Agora estamos passando por uma seca novamente, o reservatório que abastece a Grande São Paulo já está operando abaixo dos 30%. Isso indica um aumento na variabilidade, tanto na Amazônia quanto no Sudeste. O grosso da causa não é só o desmatamento na Amazônia, mas os efeitos mundiais do aquecimento global, como as temperaturas dos oceanos. Contudo, quando se soma a perda de água dos chamados rios voadores, o resultado é catastrófico.

A crise climática mundial virou bandeira política nos EUA, com Biden, na Alemanha, com Merkel, no Canadá, com Trudeau, na França, com Macron, entre muitos outros. Como países com alto grau de influência geopolítica podem afetar essa discussão e, mais especificamente, o Brasil?
Basicamente, existe mais chance de alguma coisa ser feita do que nos anos e edições de COP anteriores. Obviamente, não é fácil. Os Estados Unidos são um caso complicado, pois não depende só do presidente e sua equipe, é preciso da ratificação do Senado. No momento, o Partido Republicano, que tinha o negacionismo ao aquecimento global como um dos pilares de seu posicionamento, não controla o Senado. Contudo, a partir do ano que vem isso deve mudar. Além disso, atualmente já conseguem bloquear qualquer coisa pelo sistema de “filibuster”, obstrução, tática empregada por oponentes de uma lei proposta para impedir a aprovação final da medida. Por exemplo, o ex-presidente Bill Clinton aprovou o Protocolo de Kyoto, mas o Senado não ratificou. Mesmo sem isso, é possível que a partir de agora os Estados Unidos façam muito mais do que têm feito.

A China é um dos grandes pontos de interrogação. O país é o maior emissor de carbono do mundo e continua construindo usinas de carvão com enorme rapidez. Está crescendo, consumindo e liberando mais CO2, mesmo com todo o progresso que tem na indústria fotovoltaica. As emissões da China no Brasil são muito altas, um fator chave nas emissões brasileiras. Suas importações de commodities e investimentos em estradas, ferrovias e outros projetos de infraestrutura têm um impacto enorme no desmatamento na Amazônia. Em um artigo recente para a revista Science, chamado “China’s carbon emissions in Brazil”, destaquei que quase 80% das exportações de soja brasileiras e 52% da carne bovina são destinadas à China, comparado com 9,5% e 5,3% para a Europa, respectivamente. Se decidirem colocar condicionantes nas importações, isso terá um efeito instantâneo sobre o desmatamento. Os chineses estão levando o aquecimento global de forma muito mais séria do que antes, mas é preciso ver se vão incluir o impacto que têm no resto do mundo.

A pressão internacional é suficiente para mudanças e implementação de novas regras no Brasil?
É possível. Se fosse da China, sim (risos).

Os países mais ricos e influentes concordariam em pagar um imposto ambiental em prol da Amazônia e outras áreas verdes do planeta?
Sim, mas ainda há muito a negociar. Ninguém vai simplesmente dar dinheiro para o governo brasileiro. É preciso ter uma boa estrutura para que o resultado seja realmente a redução das emissões sem grandes impactos sociais. Não é fácil de fazer, mas existe muita vontade internacional. O que não ajuda é que a impressão que tenham seja aquela apresentação do ex-ministro Ricardo Salles em uma reunião com integrantes da equipe de clima de Biden, em que representou o Brasil como um cachorro sentado, abanando o rabo diante de uma máquina de frango assado, com a legenda “expectativa de pagamento”.

No contexto da COP26, que define que países desenvolvidos devem mobilizar pelo menos US$100 bilhões em financiamento climático por ano, receber dinheiro do exterior para não queimar e cortar a Amazônia feriria a soberania nacional?
Obviamente, isso vai ser negociado. Mas é benéfico ao Brasil parar o desmatamento, não é que outras nações estão enganando o Brasil para fazer algo contra os interesses do país. Se queremos zerar o desmatamento, devemos aproveitar esse dinheiro e estabelecer uma estrutura para gastar de forma que realmente tenha efeito. Isso não seria contra a soberania do país.

Um dos objetivos da COP26 é finalizar o Livro de Regras do Acordo de Paris. Desde a COP 2019, as negociações do artigo 6, que trata dos mecanismos de cooperação voluntária, incluindo o tal mercado de carbono, estão emperradas e em grande parte por culpa do Brasil. Pode explicar um pouco no que consiste essa discussão?
O artigo 6 do Acordo de Paris apresenta instrumentos para implementar Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), para aumentar a ambição das metas de redução de emissões. Elas são responsabilidades comuns, porém diferenciadas e respectivas capacidades à luz das circunstâncias nacionais: cabe a cada país dizer como vai participar, de forma soberana, com justificativa. Existe a possibilidade de se comercializar resultados de mitigação, vender reduções de emissões excedentes à meta determinada pelo próprio país. Isso pode se dar, por exemplo, por meio de conexão entre mercados de carbono domésticos. Também existe o Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável (MDS), que apoia países mais vulneráveis, e o artigo também propõe o intercâmbio de informações e experiências. Há uma preocupação em evitar que reduções de emissões resultantes destes mecanismos de mercado sejam utilizadas para demonstrar o cumprimento das NDCs, vedando a dupla contagem (a mitigação apareceria tanto na compra de quem vende quanto de quem compra). O Brasil travou as negociações devido a este ponto, alegando que os ajustes levariam a formular metas não ambiciosas.

Atualmente, o governo está correndo com o Projeto de Lei do Presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), para o mercado de carbono no Brasil, o PL 528/21. O texto tem muitos problemas, porque apesar do principal problema ser o desmatamento da Amazônia, seu foco é fazer plantio direto de soja, subsidiar fazendeiros para replantar as áreas que eles desmataram ilegalmente. Subsidiar essa atividade, torná-la mais lucrativa, leva a mais desmatamento. Tem muita coisa que precisa ser revolvida para ter o resultado desejado, que é realmente diminuir a emissão dos gases.

O argumento de que as diretrizes não estimulam os países a formularem NDCs ambiciosas é válido?
Não tem maneira de assegurar que a totalidade desses compromissos vai ser suficiente para controlar o aquecimento global. Se um país não se compromete o suficiente, outro tem que preencher o espaço e diminuir aquele tanto de emissão. Se não, estamos fritos. Mas é possível estabelecer mecanismos de fiscalização para impedir que uma nação estabeleça metas abaixo da capacidade. Isso aconteceu na época do Protocolo de Kyoto, só não era tudo amigável. Países do Anexo I, as nações desenvolvidas, eram visitados periodicamente por comissões. Então não era tudo livre, não dá para se comprometer e, depois, fazer o que quiser.

Enquanto isso, o Artigo 8 trata de perdas e danos, ou seja, estamos falando de um risco climático que já se concretizou. Como o Brasil sofre e sofrerá no futuro próximo devido à crise climática?
Temos enchentes, secas e tufões aumentando exponencialmente. Em 2005, experimentamos nosso primeiro furacão, o Catarina, que atingiu Santa Catarina. Há um grande anticiclone no meio do Atlântico, um círculo de ventos que deve chegar cada vez mais perto da costa brasileira. O aumento da temperatura dos mares dá mais energia a esses tufões, que junto ao aumento do nível do mar produz impactos em todo o litoral brasileiro, área de grande concentração demográfica.

Na Amazônia, temos enchentes anuais. Neste ano, o centro de Manaus bateu o recorde de enchentes, e muitas cidades pequenas no interior sofreram com uma crise humanitária por conta do mesmo fenômeno. Em 2014, a grande enchente do rio Madeira foi muito perigosa, com risco de quebra das barragens de Santo Antônio e Jirau. Em Santo Antônio, três das 15 comportas falharam por entupimento, afinal o que dá o nome do rio é sua fama de carregar vários troncos na correnteza. Mesmo com as portas abertas ao máximo, não havia capacidade de passar a água. Podia ter quebrado bem acima da cidade de Porto Velho, o que seria uma catástrofe. Além disso, as enchentes mataram inúmeras castanheiras ao longo do rio Madeira, afetando diversas comunidades ribeirinhas que fazem a colheita e processamento de castanhas. A castanheira é uma árvore de terra firme, não de várzea: não está acostumada a ser inundada.

O Acordo de Paris não tem “dentes”, ou seja, não há punição para quem não cumprir suas metas. Acha que falta algum tipo de punição, além das já utilizadas barreiras tarifárias?
O mínimo é criar uma obrigação de compra de créditos de carbono, algo que possa compensar o que for emitido acima do que foi combinado. É diferente de uma multa, mas seria lógico. Agora, não sei se há apoio suficiente para os países concordarem com isso. Mas é evidente que prometendo tudo e fazendo o que quiser, não vamos resolver o problema climático.

O senhor recentemente sofreu ataques xenofóbicos durante uma audiência pública sobre a pavimentação da BR-319. O líder do Movimento Conservador Amazonas, Sérgio Kruke, declarou que “Se a gente quiser derrubar todas essas árvores, a gente derruba. (…) É nossa, não é de mais ninguém!”. Pode me contar sobre essa experiência? Foi a primeira vez que algo assim aconteceu de forma tão explícita?
Não é que foi só uma pessoa, apenas ele que saiu na imprensa. Havia muitas pessoas com essa posição lá. Mas não foi a primeira vez, inclusive são alguns dos mesmos indivíduos de outras ocasiões. No fórum da BR-319, organizado pelo Ministério Público aqui em Manaus, houve uma série de reuniões para discutir a obra e o mesmo tipo de situação se repetiu diversas vezes. O grosso das pessoas apoia a obra, com o mesmo tipo de tensões.

Quais serão as consequências da pavimentação da BR-319? Como isso entra na discussão sobre desmatamento e degradação da floresta Amazônica, ainda mais frente a esse processo multilateral sobre mudança climática?
A pavimentação da BR-319 entra diretamente na discussão sobre desmatamento, porque é muito mais danosa do que outras obras. Ela vai abrir uma enorme área de floresta basicamente intacta. O desmatamento geralmente se concentra no Arco do Desmatamento, mas no último ano transcendeu o norte do Mato Grosso e em Rondônia. Estão surgindo “hot spots”, ou pontos quentes, cada vez mais ao Norte: ao longo da BR-163, em São Félix do Xingu, no Pará, e ao longo da Transamazônica, em Altamira, no Pará, Apuí, Matupi e subindo no sul do município de Lábrea, no Amazonas. Ainda assim, há um enorme bloco de floresta preservada, na parte Oeste do estado do Amazonas e no norte da Amazônia (com exceção de Roraima). Com a pavimentação da rodovia, os desmatadores terão circulação livre para essas áreas. E não é só o que acontece ao longo da beira da rodovia. Toda a região que já é conectada a Manaus com estradas, como Roraima, vai receber migração por meio da BR-319, além das estradas planejadas ao redor dela. Isso é uma questão-chave, inclusive para o problema da seca em São Paulo.

Já há até outros planos para lá, como o Projeto Área Sedimentar do Solimões, de petróleo e gás, que pode ocupar quase metade do estado do Amazonas (740 milhões de quilômetros quadrados, ou 10% do Brasil). A tentação de fazer estradas será cada vez maior, porque é muito mais barato do que plataformas no meio do mar, cujo acesso é feito de helicóptero. Inclusive, a petrolífera Rosneft comprou os primeiros blocos de terra justamente na rota da Rodovia 366, que se conecta à BR-319. Como sabemos, o Greenpeace acusa a Rosneft de milhares de derramamentos de petróleo, é uma das empresas mais irresponsáveis que existem. É algo sem volta. Vai gerar repercussões por décadas e décadas.

É importante ressaltar também que tudo isso foge do controle do governo. No discurso, é como se as autoridades fossem estabelecer um grande programa de fiscalização para controlar o desmatamento, mas não há nenhum sinal disso. Ao longo dessas reuniões do fórum da BR-319, foi marcante a disputa entre IBAMA e DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) sobre quem ia pagar pelos postos de fiscalização. Ninguém quer pagar, nem o governo federal, nem o estadual. Por enquanto, está sobrando para os municípios. Se não querem arcar com os custos de dois postos simples, como pensar que teremos um programa amplo, ainda mais caro que o asfalto, para proteger dezenas de terras indígenas e Unidades de Conservação? É ficção.

Sem o apoio de Trump, o negacionismo promovido pelo governo Bolsonaro perde força?
Ainda é uma força grande, inclusive uma que ainda subestimamos. Já em 2012, por exemplo, nas semanas anteriores ao Rio+20, a grande imprensa brasileira foi tomada pelo negacionismo. Em um artigo chamado “Os céticos do clima no Brasil”, escrevi sobre o dilúvio sem precedentes de entrevistas com céticos do clima que ocorreu na época. Às vezes as matérias mencionavam o fato que a grande maioria da comunidade científica não concorda com os céticos, mas eram apenas ressalvas no meio de longas entrevistas apresentando a visão negacionista sem nenhuma contestação. Foi um grande alerta que mostrou a potência desse posicionamento no país. Fora isso, há o chamado “dark money”, ou dinheiro obscuro, de bilionários americanos que financiam grupos negacionistas e conseguem colocar matérias na imprensa mundial divulgando mentiras. Nos Estados Unidos, os principais financiadores forneceram mais de 500 milhões de dólares para 91 grupos de negação climática entre 2003 e 2010. Ou seja, não é só o Trump ou o Bolsonaro. A influência dos negacionistas americanos chega ao Brasil e outros lugares do mundo faz tempo.

Agora que Trump saiu do poder e temos Bolsonaro aqui, jogando gasolina nesse tipo de discurso xenofóbico, você se sente tentado em retornar aos EUA?
Não, o plano é ficar aqui! Mesmo com todo o caos, que não é novidade (risos). Não é nenhum sacrifício ficar no Brasil.

Líderes de países em desenvolvimento, como Narendra Modi, na Índia, defendem que não deveriam estar sujeitos às mesmas regras do Acordo de Paris pois precisam ter a mesma quantidade de tempo e oportunidades que os países ricos para se desenvolver dentro da lógica industrial. O que acha disso? É um argumento válido?
O importante é que, para controlar o aquecimento global, precisamos diminuir as emissões agora. Não é argumento que, devido à pobreza de um país, seria preciso esperar mais 50 anos. Vamos passar os tipping points desse jeito. O que precisa acontecer é um maior compromisso das nações desenvolvidas. Países ricos devem ser a principal fonte de dinheiro para pagar a conta do combate às mudanças climáticas. De qualquer forma, a Índia e demais nações em desenvolvimento devem diminuir as emissões. Eu morei dois anos lá, e a principal fonte energética ainda é o carvão. As emissões são impressionantes. Estão diversificando um pouco, com energia eólica, por exemplo, mas não tem nem comparação. Isso exige mudanças.

Como esse argumento se compara com o do governo brasileiro? Quais são suas principais justificativas para minimizar a importância da preservação da fauna e flora amazônicas?
Os argumentos oferecidos são falsos. Dizem que é preciso desmatar para que o país tenha segurança alimentar, enquanto o Brasil é o principal exportador do mundo de soja e carne de boi. Estes são os principais inimigos da floresta amazônica e cada hectare desmatado é para exportação, não para alimentar o povo. O argumento simplesmente não se sustenta. Em termos de quem está desmatando, Bolsonaro afirma que os principais responsáveis são povos indígenas e caboclos, o que é totalmente falso. A floresta derrubada para alimentar famílias, plantar mandioca para subsistência, é absolutamente insignificante em relação ao todo.

Como é possível se desenvolver sem degradar a Amazônia? Pode explicar um pouco sobre seu conceito de serviços ambientais?
Serviços ambientais também são conhecidos como serviços ecossistêmicos reguladores. Eles mantêm o clima, evitam aquecimento global, reciclam água e mantêm a biodiversidade. Por enquanto, são coisas que não têm mercado, diferente dos serviços ecossistêmicos fornecedores, como a indústria madeireira. Mas é algo que tem muito valor para a sociedade humana, e pode se traduzir em muito dinheiro, um valor mais alto do que o que se ganha transformando floresta em pastagem. Estou tentando vender esse peixe há quase 30 anos. Esse valor tem potencial de sustentar a população rural na Amazônia, se usado corretamente. Houve alguns avanços, como o mercado de carbono, mas atualmente está sendo pervertido para outras finalidades. Ao menos está sendo discutido, o que não era o caso antes.

Isso significa dizer que a Amazônia deveria ser intocável? Se ela vale mais em pé do que derrubada, deveríamos evitar os serviços ambientais fornecedores?
Isso depende. No caso da exploração madeireira, há um dano enorme, porque facilita incêndios florestais. É o início de um ciclo que vai degradando a flora. Veja o que aconteceu em 2015, quando 1 milhão de hectares, inclusive de áreas protegidas, pegou fogo em Santarém. O efeito do El Niño juntou-se a muita madeira morta e causou esse desastre. Após três ou quatro incêndios, a área já deixa de ser floresta, como ocorreu em algumas partes da Amazônia. Fora isso, a exploração de madeira está se alastrando mais rapidamente que o próprio desmatamento. É preciso pensar se isso realmente vale a pena. A necessidade deste produto pode ser suprida por plantações, mas é mais caro, porque enquanto a árvore já cresceu na floresta e está pronta para ser cortada, é preciso cultivar árvores plantadas. Requer tempo e investimento. Ao fim e ao cabo, é uma transformação que vai ter que acontecer. A questão é se vai acontecer antes de perdermos a floresta ou depois. Contudo, dizer que a Amazônia é intocável leva à discussão sobre as famílias pobres que dependem da floresta para sobreviver. Só que isso é uma distração, não é o assunto em pauta.

Em uma entrevista recente, a ativista ambiental Greta Thunberg disse sobre as COPs: “Nada mudou em relação aos anos anteriores. (…) Podemos ter tantos COPs como queremos, mas nada real vai sair disso.” Acha que ela tem razão? O sistema das COPs está ultrapassado?
As COPs são necessárias, porque elas são mundiais. Não é suficiente que apenas alguns países de destaque concordem sobre a questão, é necessário que o mundo inteiro participe. Evidentemente, existe esse histórico de não cumprimento das metas prometidas, mas é preciso tentar fazer o sistema funcionar. Não dá para simplesmente abandonar o barco. É preciso fazer as coisas saírem do papel, sendo que, para começo de conversa, nem havia tanto no papel para resolver os problemas. Até isso foi conflito. Existem outros grupos que discutem o clima também, acordos bilaterais ou com poucos países, mas a parte mundial é essencial.

Desde 2018, o Brasil é taxado de vilão devido à forma como participou de eventos das Nações Unidas, inclusive se recusando a hospedar uma das edições da COP. Qual é o futuro do Brasil nas discussões sobre o clima, qual é seu papel?
A importância do Brasil recai, principalmente, sobre a Amazônia, esse lugar onde emissões de carbono de porte razoavelmente grande podem ser diminuídas, e que possui grande potencial para futuras emissões. Em termos de diplomacia, o Brasil seria uma influência natural, mas isso não aconteceu. Foi trágico. Depois de Kyoto, argumentei que o Brasil deveria ter entrado no Anexo 1, junto aos países desenvolvidos. Poderia ter ganhado muitos bilhões de dólares devido à diminuição do desmatamento que aconteceu de 2004 em diante, créditos de carbono que poderiam ser vendidos. Mas o então presidente Fernando Henrique Cardoso manteve a classificação como “país em desenvolvimento”, esquivando-se dos compromissos de redução ou limitação de emissões de gases de efeito estufa. Teria repercussões mundiais, a única nação da região a ter entrado no Anexo I. No momento atual, também seria chave que o Brasil abrisse as portas para investimento externo para preservação. Não é muito provável que isso aconteça neste momento, mas é inegável que o Brasil pode vir a ter uma influência geopolítica considerável nos próximos anos, conforme se desenrolem as mudanças climáticas.

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