Jorge Bodanzky revisita o icônico ‘Iracema’ do Cinema Novo
O diretor discute os desafios da criação de Iracema e afirma que as questões que o filme expôs são exacerbadas nos dias atuais
A Rodovia Transamazônica foi construída e concluída em 1972 na ditadura militar brasileira. Esse grande projeto pretendia conectar a Amazônia ao resto do Brasil, criando simbólica e fisicamente um Brasil Grande. Ao tentar unificar fisicamente a nação, a Amazônia e seus povos ficaram sujeitos à exploração capitalista, passando por uma perda de identidade devido à modernização e destruição da paisagem natural.
O filme Iracema – Uma Transa Amazônica (1975), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, encarna o impacto negativo da rodovia ao acompanhar uma jovem prostituta cabocla, Iracema em uma jornada com um caminhoneiro, um homem patriota que atende pelo apelido de “Tião Brasil Grande”.
Influenciado pelo neorrealismo italiano e pela new wave francesa, Bodanzky utiliza técnicas do Cinéma vérité para criar uma história que mistura ficção com documentário. O resultado final é um filme que marca o movimento do Cinema Novo brasileiro das décadas de 1960 e 1970.
Iracema foi convidado para ser exibido na Semana Internacional da Crítica durante o Festival de Cannes de 1976, onde foi aclamado pela crítica e passou a ser distribuído internacionalmente. A representação inabalável das trágicas realidades dos amazônidas chocou o público, e seu retrato sutil da queda de Iracema – intercalado com imagens documentais da destruição da Amazônia – demonstra o estrago que o enorme projeto rodoviário tem apresentado às comunidades ao seu redor.
Nesta entrevista, Bodanzky discute os desafios da criação de Iracema e afirma que as questões que o filme expôs são exacerbadas nos dias atuais.
Como surgiu a ideia de fazer Iracema?
Tive a ideia do filme quando trabalhava como fotógrafo para a imprensa brasileira e fui enviado para a Rodovia Belém-Brasília para um projeto que não deu certo. O repórter com quem eu estava decidiu sair e explorar a região, e me deixou em um posto de gasolina por alguns dias. Durante esses dois dias, eu observei o posto e comecei a notar algumas coisas. Durante o dia, era um posto de gasolina normal, com os caminhoneiros abastecendo e fazendo manutenção em seus veículos. À noite, porém, era outra coisa. Esses mesmos caminhoneiros estavam de volta, mas por motivos diferentes – tinha virado um bordel! Achei isso curioso, então disse a mim mesmo: “Se eu contar a história dessa rodovia, incluirei essas pessoas, os caminhoneiros e as prostitutas”.
Esse foi o início da ideia. Demorou seis anos para convencer meu produtor a fazer esse filme, mas antes de concordar ele pediu algo mais concreto. Então voltei ao Brasil com meus sócios, Wolf Gauer [Diretor Adjunto] e Orlando Senna [Co-Diretor] para capturar a essência dessa história com alguns exemplos de imagens. Fomos no meu fusquinha de São Paulo para a rodovia Belém-Brasília, depois para Marabá, então, finalmente, entramos na Rodovia Transamazônica.
Isso em 1963, uma época perigosa por causa da ditadura militar. A Rodovia Transamazônica era uma zona protegida na qual você não era permitido entrar. Mas fomos assim mesmo, e usei minha câmera Super-8 como diário e caderno. Enquanto estávamos entrevistando as pessoas, vi a história ganhar vida, em todos os lugares que paramos, Iracema estava lá. Peguei o filme da Super-8 e mostrei aos produtores alemães e eles disseram: “Se você nos prometer que vai colocar essas imagens em seu filme, nós financiaremos”.
Originalmente, o filme foi feito para uma rede de TV alemã. Era parte de um bloco de programação experimental transmitido à noite — por volta das onze ou meia-noite. Tínhamos um pequeno orçamento, era um experimento para a emissora. Então fomos e filmamos, mas não achamos que seria nada mais do que isso. [Risos] Na verdade, no dia em que deveria ir ao ar na rede alemã, o outro principal canal do país estava transmitindo uma grande partida de futebol. Pensei: “Todo mundo vai querer ver futebol, ninguém vai querer ver o Iracema.” [Risos] Mas às vezes há momentos de sorte que acontecem na vida. Quando o dia chegou, houve uma grande tempestade de neve e a partida de futebol foi cancelada. Então todos que assistiram TV naquela noite acabaram assistindo Iracema! [Risos]
Você teve alguma inspiração para Iracema em diferentes filmes brasileiros da época?
Claro, o ambiente em que você está sempre tem uma influência sobre você. Eu era membro da Sociedade Amigos da Cinemateca em São Paulo, e vi muitos filmes brasileiros novos, especialmente do Cinema Novo e documentários brasileiros. Eles foram úteis para me expor a certas técnicas e narrativas, mas minha maior influência é Jean Rouch. Sou um grande admirador do trabalho dele. Identifico-me imensamente com a forma como ele filma, ainda hoje. E, claro, cinema direto, o uso de sons diretos, reportagens, estilos híbridos de ficção – todas essas coisas me influenciaram.
Como Iracema foi recebido inicialmente?
Depois que foi ao ar pela primeira vez na TV alemã, os críticos falaram sobre o filme e isso começou a gerar um burburinho. Outros críticos leram sobre isso e assistiram ao filme também. Até Jean Rouch viu! Eventualmente, Iracema foi chamado para o Festival de Cinema de Cannes como parte da categoria Critics Choice. Mas tivemos um problema. O filme foi rodado em 16mm. Era assim que os documentários de TV eram filmados naquela época, antes do digital. Cannes não aceitava filmes de 16mm, apenas de 35mm. Então aumentamos nosso filme de 16mm para 35mm, o que é um processo caro.
Além disso, o sistema que usamos para editar o filme não nos dava qualidade suficiente, então precisávamos de um trabalho especializado. Eventualmente, encontramos um laboratório na Inglaterra que podia resolver nosso problema e o contratamos para ajudar. Isso feito, pudemos expandir a imagem do filme, e ficou muito, muito bom. Hoje, o filme que as pessoas assistem é a versão deste laboratório. Após a exibição em Cannes, ele tornou-se amplamente conhecido e foi convidado para ser exibido em muitos outros países.
Você pode imaginar, eu não tinha dinheiro naquela época! [Risos] Eu estava na Europa, peguei um carro e fui para Cannes para ver o que aconteceria. Eu tinha trinta anos. Estávamos sentados em cafés, fumando cigarros, quase como verdadeiros figurões. [Risos] E aí veio uma distribuidora, ela era a mesma pessoa que fazia a distribuição de outros grandes nomes como Glauber Rocha, etc. E ela disse: “Assine aqui; Eu lhe darei US$ 10.000 e distribuirei seu filme.” Bem, eu estava sem dinheiro, não tinha nem para pagar o hotel. Para mim foi uma fortuna! Então, é claro que assinamos, e o filme foi distribuído. Depois daquele momento, nunca mais vi um centavo desse filme. Foi assistido em todo o mundo, e nunca fomos pagos por isso.
Iracema conquista o público pelo retrato autêntico da Amazônia e de seus povos, por que você acha isso?
Por causa de nosso elenco único, fomos capazes de filmar cenas de forma muito autêntica. Quando imaginávamos uma cena, imaginávamos o que poderia acontecer, tentando incorporar as pessoas da vida real que estavam ali. Às vezes, as cenas não funcionavam, mas não tentávamos repeti-las no mesmo lugar. Em vez disso, escolhíamos outro lugar e tentávamos novamente.
O filme tem muitos não-atores, apenas pessoas comuns que encontramos, e com pessoas assim você não deve tentar repetir uma cena. Com não-atores, apenas o primeiro momento funciona, e para mim isso foi muito importante. Se não conseguíssemos capturar a autenticidade do primeiro momento, seguíamos em frente e tentávamos novamente em outro lugar.
Um dos poucos atores profissionais foi Paulo César Pereio, que interpreta o principal caminhoneiro, Tião Brasil Grande. No Brasil, a maioria dos motoristas tem sotaque especial porque são sulistas, gaúchos e catarinenses. Por sorte, Pereio é do sul, então ele já tinha esse sotaque. Quando ele estava atuando, as pessoas não suspeitavam que ele não era um motorista, porque ele falava como um motorista. E Edna de Cássia, que interpreta Iracema, é local. Então era a situação ideal para provocar a participação dos não-atores porque eles achavam que estavam falando com pessoas reais.
Como você conheceu Edna de Cássia, a garota que interpreta Iracema?
Orlando e eu queríamos uma menina muito jovem, que tivesse a mesma idade da personagem do filme. Queríamos mostrar a realidade do que estava acontecendo na época. Havia meninas muito, muito jovens que faziam essa jornada com os caminhoneiros pela Rodovia Transamazônica. Além disso, queríamos que a menina tivesse origem indígena, cabocla, como dizemos. Não poderia ser uma atriz do Sul do Brasil. Achei que seria muito difícil encontrar esse tipo de pessoa para o papel, porque ela tinha que ter quatorze ou quinze anos, no máximo.
Então fomos para Belém, e estipulamos dez dias para encontrar a menina. Procuramos pela cidade, pela faculdade, pelos clubes e assim por diante. Às vezes, andando na rua, víamos uma garota e pensávamos: “Ah, é ela! Essa é Iracema!” Mas assim que começávamos a conversar com ela, víamos que seria impossível aceitar o papel. Havia outra condição, uma que era muito difícil: uma menina cujos pais dessem autorização para fazer o trabalho.
No último dia do prazo, ainda não tínhamos a menina. Pedimos ajuda ao nosso taxista e ele nos levou a uma festa, onde grupos de jovens se reuniam. Quando chegamos, havia de 200 a 300 pessoas – todas matando aula! [Risos]
No momento em que entrei, vi Edna. Ela tinha que ser Iracema, ela tinha olhos tão brilhantes. Eu disse a Orlando para ir falar com ela, e ele a trouxe de volta. Ele perguntou: “O que devemos pedir que ela faça?” E eu disse a ela: vá ao mercado e compre algo para você. Eu vou te dar um pouco de dinheiro, deixe-me tirar algumas fotos de você enquanto você faz compras.
Então fomos ao Ver-o-Peso, o grande mercado de Belém. Ela ficou olhando ao redor, e eu tirando fotos. Então, de repente ouço uma grande comoção. Eu me viro e vejo uma mulher gritando com Edna. Ando até elas e pergunto: “O que está acontecendo aqui?” E Edna diz: “Ah, é só minha mãe! Ela está brava por eu não estar na escola agora.” [Risos] Eu imediatamente pensei: ah, então encontramos a mãe! Exatamente o que precisávamos! Foi um momento de sorte.
Como foi trabalhar com Edna?
Ela veio de uma área muito pobre, fora de Belém. Nunca tinha ido ao cinema. Nunca tinha visto um filme, apenas televisão. Mas isso não importava. Passamos por todas as formalidades, os pais nos deram permissão para filmar com Edna. Saímos e voltamos oito meses depois. Nós a apresentamos a Conceição Senna, que era uma atriz profissional no filme. Senna fez o papel da mulher que cuidou de Iracema. Ficamos em um hotelzinho bem modesto fora de Belém. Edna morou no hotel com nossa equipe, para construir química. E deu muito certo!
Edna é exatamente a mesma pessoa na vida real e no filme. Durante a produção, ela falava com paixão, fazia comentários engraçados sobre tudo, dava apelidos a todos no set! [Risos] Hoje, ela é a mesma pessoa. Eu a encontrei em novembro do ano passado em Belém, quando fizemos uma pequena exposição de fotos que tirei durante esse período. Ela apareceu, e sua voz ainda é exatamente a mesma!
Em Iracema, os anos passam para a personagem de Edna em questão de cenas. Pode ser desorientador para o público, mas efetivamente nos coloca no lugar de Iracema. Por que você escolheu essa técnica?
Queríamos mostrar o que acontece normalmente quando as meninas entram na prostituição. É uma situação horrível, elas ficam presas. À medida que envelhecem, vão ficando fisicamente destruídas. É trágico e acontece com todas essas meninas. É uma história triste frequente nesta área. Elas nunca têm a chance de ter uma vida normal.
Além disso, tínhamos um orçamento muito, muito baixo. Filmamos tudo em quinze dias. Houve tempo para nos preparar antes, é claro, mas filmando em si, não foram mais do que três semanas. E era necessário mostrar essa transformação, mostrar ao público que os anos se passaram — em quinze dias. [Risos] Mas funcionou! Porque todos os locais que precisávamos para filmar estavam ao nosso redor. A cena final foi feita, mais ou menos, no mesmo lugar que todas as outras cenas. Não foi preciso viajar horas de um lugar para outro.
Há uma cena muito angustiante no filme onde vemos o fogo engolindo a Amazônia. O que fez você incluir esses visuais muito reais em seu filme?
Durante a produção, a região estava sempre em chamas, e o fogo nos rodeava constantemente. Estávamos tão acostumados com o fogo que quase esquecemos de tirar uma foto antes de terminar! Quando as pessoas na Europa viram a cena, ficaram surpresas com a imagem. Foi a primeira visão real da Amazônia em chamas que eles viram. Naquela época, a queima da Amazônia não era muito discutida. E estávamos lá, no início desta conversa.
Houve alguma cena em particular no filme que foi mais difícil de filmar?
Não, não houve uma cena que fosse necessariamente difícil, mas a cena final foi um pouco mais dramática. Eu estava quase sem estoque de filme para câmera, então tive que registrar a última cena em tomadas únicas. [Risos] A cada cinco minutos, Wolf tinha que mudar o estoque enquanto eu filmava para que as imagens tivessem continuidade.
Eu não tinha controle sobre a cena ou os não-atores que estavam no set. Usamos um caminhoneiro de verdade para dirigir o caminhão de carga, porque Pereio não tinha habilitação. Então fizemos essa cena de forma bastante espontânea e em tempo real. Quando você vê o caminhão indo embora no final do filme, o verdadeiro motorista do caminhão está se afastando de nós – ele não voltou! [Risos]
As prostitutas [não atrizes] naquela cena – eu não tinha controle sobre o que elas estavam dizendo ou fazendo, elas estavam apenas sendo elas mesmas. A única pessoa que talvez tivesse um pouco de influência na situação era Pereio, que improvisava e ajudava a direcionar a conversa. Fora disso, a cena era muito genuína e única.
Falando em dificuldades, como a ditadura afetou a realização do seu filme? Você ficou com medo?
Não, eu não fiquei com medo. Eu era jovem na época, ingênuo. [Risos] Hoje, eu pensaria dez vezes antes de fazer um filme como esse. Naquela época, eu trabalhava como cinegrafista para redes de TV europeias sediadas no Brasil. E houve um momento em que muitos países da América do Sul estavam se transformando em ditaduras. Então filmamos esses momentos no Chile, Argentina, Paraguai, Bolívia – eu estava lá como repórter. E eu estava filmando com a mesma câmera que filmei Iracema.
Então eu tinha muita experiência trabalhando em situações perigosas, especialmente situações políticas. Uma técnica era ser muito, muito rápido. Você não pergunta – você vai, filma e depois sai para o próximo local. Se você ficar em um lugar por muito tempo, as pessoas vão notar você. Eles vão te repreender, expulsar, tentar pegar sua câmera e assim por diante. E essa foi a mesma técnica que usei em Iracema quando filmamos. Estávamos sempre em movimento. Se não conseguíssemos o que queríamos em um local, tentávamos de outra maneira, em outro lugar. Mas nunca repetimos o mesmo lugar com a mesma pessoa. E foi assim que fizemos tudo isso debaixo do nariz do regime militar. Ninguém disse uma palavra para nós, porque fomos muito, muito rápidos. [Risos]
Que dificuldades você teve para distribuir seu filme no Brasil após o sucesso no exterior?
O regime militar sempre desacreditou nosso projeto. Eles diziam: “Ah, não é um filme brasileiro. Eles não usaram laboratórios brasileiros para desenvolver o filme.” Sempre diziam isso. Quando o filme foi exibido em Cannes e na TV alemã, a embaixada brasileira dizia que não podiam usar o termo “Filme Brasileiro”. Não nos importamos, a princípio. “Chame como quiser”, pensamos. “Não é um filme brasileiro? Ok, então chame de filme panamenho. Quem se importa!” Para nós era tudo a mesma coisa. [Risos]
Mas, sempre que tentávamos exibi-lo oficialmente em um concurso ou festival no Brasil, os censores não permitiam porque “não era um filme brasileiro”. Um dia, cansei e embalei o rolo de 60 metros do filme na mala e viajei para Brasília. Fui ao Ministério da Justiça, onde ficavam os censores, coloquei o filme no balcão e disse: “Aqui está o filme. Por favor, analise. Diga-me: o que posso mostrar e o que não posso mostrar? Eu quero isso no registro.” Eles imediatamente fizeram que “não” e disseram: “Ah, não, não podemos analisar isso porque não é um filme brasileiro”. [Risos]
Então, como as pessoas no Brasil viam Iracema?
Eu não esperei para mostrar o filme, ou lançá-lo oficialmente. Naquela época, no Brasil havia um grande número de CineGrupos [cineclubes] que eram criados por organizações sociais civis, associações estudantis, comunidades religiosas, sociedades de jornalismo e MDAs [Movimentos em Defesa da Amazônia]. Todos esses diferentes grupos tiveram exibições de filmes bem organizadas como resposta à censura. Era uma forma de resistência clandestina. Conseguimos fazer cópias das filmagens e distribuí-las para esses grupos, então o filme circulou por todo o Brasil. Quando o filme chegou aos cinemas [após o fim do regime militar, em 1985], havia toda uma geração de pessoas que já tinha visto o filme. Iracema teve grande circulação, não me preocupei em poder exibi-lo oficialmente.
Parece que seus filmes têm uma vantagem política e se chocam com os regimes políticos atuais. Você está cansado de bater de frente com o status quo?
Absolutamente não. Faço filmes exclusivamente políticos. Por exemplo, o filme que estou fazendo agora é sobre envenenamento por mercúrio nos rios da bacia amazônica. Extremamente político. Está acontecendo agora e é uma grande crise. A Amazônia está sendo invadida pelo garimpo ilegal, e as propostas de mineração são controladas pelos políticos. Não só por políticos locais, mas pelo próprio Jair Bolsonaro. Ele promoveu ativamente essa mineração ilegal, porque fornece renda para seus apoiadores, que em última instância estão mais inclinados a votar nele, especialmente este ano [eleição presidencial de 2022]. Então, ele desencadeou completamente a indústria nesta região. Você pode fazer o que quiser agora: ocupar áreas indígenas, entrar em santuários, tirar ouro de qualquer lugar. Cada lugar que ele expõe é apenas um movimento político para obter mais votos. Mas não é só isso, é a filosofia dele. Ele acredita que a Amazônia deve ser usada economicamente, de forma ruim. Não de forma organizada, mas da forma ilegal e absurda que está acontecendo agora. Então eu realmente acho que este novo filme é talvez o filme mais político da minha carreira.
Se você voltasse a filmar Iracema hoje, mudaria alguma coisa?
Não, não. Eu não mudaria nada. Recentemente, fiz uma série para a HBO com seis capítulos de uma hora cada, traçando uma narrativa sobre a Rodovia Transamazônica. Eu revisitei todos esses temas novamente. A estrada não mudou, e eu não mudei meu ponto de vista. É importante dizer essas coisas. À medida que envelhecemos, ganhamos mais perspectiva. Mas a minha visão da situação e como a conto hoje é a mesma que contei na época. Então, se eu voltasse a filmar Iracema, filmaria de forma bem parecida, porque continuo operando com produções de baixo orçamento hoje. A realidade é que eu mesmo faço meus filmes e trabalho principalmente com não-atores. Então seria muito parecido.
Mas, para falar a verdade, seria impossível filmar Iracema hoje. Primeiro, porque você não pode usar um menor de idade para fazer um filme desses. A lei não permite. Segundo, é muito perigoso. Na época, era perigoso também. Tivemos a ditadura militar. Se eles tivessem nos descoberto, poderíamos ter sido presos. Mas hoje há violência de milícias. Não seríamos presos, seríamos baleados! [Risos] E terceiro, a informação viaja mais rapidamente hoje. Todo mundo tem um telefone. Se nos vissem fazendo um filme crítico como esse, podiam entrar em contato com alguém instantaneamente. E quando fôssemos para o próximo lugar de gravação, todos já saberiam quem somos e o que estamos fazendo. Antes, era diferente.
Jorge, obrigado por esta conversa. Antes de irmos, qual é a coisa mais importante que você quer que as pessoas tirem disso? Que imagem você quer que tenham da Amazônia?
Iracema mostra tudo: a ocupação, os trabalhadores escravos, a prostituição, a violência. Todas as questões que Iracema expôs são piores hoje. O que está acontecendo na Amazônia é realmente um projeto que começou na ditadura militar e continua mesmo sob um governo mais democrático. O governo não mudou sua maneira de enxergar a Amazônia. A ocupação continua sob a mesma filosofia da ditadura militar dos anos 60. Para mim, o mais importante não é o filme em si, mas o que o filme mostrou. Eu queria que o filme contribuísse para a discussão sobre o que está acontecendo na Amazônia. Então, fico muito feliz em ver que, mesmo 40 anos depois de filmado, Iracema continua provocando essa discussão.
Entrevista feito pelos alunos de graduação do curso “Narrativas de filmes de viagem: Um mapa para a(s) Amazônia(s) (“Film Travel Narratives: A Road Map to Amazônia(s)”), da Florida State University, nos Estados Unidos, oferecido por Marcos Colón no primeiro semestre de 2022. Moderada por Alyssa Ackbar (Relações Internacionais) e André Mancebo Heizer (Inglês, Redação e Mídia), os alunos Mariana Dos Santos (Relações Internacionais e Ciências Sociais Interdisciplinares), Milena Watt (História da Arte), Chris Ahrendt (Produção de Mídia Digital) e Giovanni Grossi (Relações Internacionais) participaram desta entrevista.
Foto de destaque: Equipe de gravação de Iracema, em 1974 (Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude)