“Não vi nenhum fazendeiro recorrer à Justiça contra Belo Monte”

Para Ana Laide Soares Barbosa, ribeirinha do Xingu, o desenvolvimento da hidrelétrica favoreceu poucos e rompeu as raízes culturais dos povos da região.

Ana Laide Soares Barbosa foi testemunha das mudanças que Belo Monte trouxe à região em que ela mora. Educadora popular do movimento Xingu Vivo para Sempre e pesquisadora do mestrado em Sustentabilidade Junto a Povos e Territórios Tradicionais da Universidade de Brasília (UnB), a ribeirinha vem de uma tradição de pescadores artesanais que tinham no rio sua riqueza material e simbólica.

Com a inauguração do canteiro de obras no Xingu, Ana viu seu território ser transformado com alagamentos, expulsões e demolições. “O rio não era mais rio”, lamenta. Ela percebeu que os peixes se tornaram mais escassos e que as águas perderam seu contorno e ritmo naturais. Mais do que a perda de um recurso natural, as pessoas perderam “sua utopia que era motivada pelo rio”.

Ana Barbosa diz que o tipo de desenvolvimento trazido por Belo Monte – enraizado em ideias colonizadoras do meio ambiente – não foi pensado para o povo da Amazônia. As vidas sofridas dos ribeirinhos servem de prova disso. “Eu não vi nenhum fazendeiro recorrer à Justiça contra Belo Monte. Mas eu vi, presenciei e acompanhei centenas de mulheres batendo no escritório da Norte Energia atrás de uma casa”.

Questionando a essência de Belo Monte e a ideia de que o megaprojeto trouxe progresso, Ana sustenta um ideal de desenvolvimento a partir da ancestralidade dos povos originários. Este ‘novo’ desenvolvimento ancestral compreende “o poder de planejar seus projetos de vida e ter autonomia e governança nos nossos territórios”. São projetos de vida, em conexão com a natureza e com o passado, que só podem ocorrer na união entre os atingidos.

É o que fundamenta o processo de luta contra os impactos de Belo Monte, acredita Ana. “Começamos a unir os laços fraternos que foram rompidos pela barragem de Belo Monte. Começaram a surgir os núcleos de vizinhança na dor, no sofrimento, na alegria para resistir e para recuperar aquilo que perderam, seus direitos e seu plano de vida”.

Mesmo que os mais velhos não recebam em vida a recompensa por aquilo que perderam, “os netos e bisnetos vão herdar os resultados da luta. Essa dívida vai ser cobrada por eles em cima dessa resistência que nós aprendemos com os nossos avós”, assevera a ribeirinha.

Um homem encurvado na beira do rio

Pescador as margens do rio XIngu, no perímetro urbano de Altamira (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Como uma das pessoas atingidas por Belo Monte, você imaginou que os impactos da obra seriam tão devastadores?
Vivemos de perto os sintomas do desenvolvimento na região onde eu nasci. Ver acontecer a construção de Belo Monte foi humanamente terrível, falando pelos povos que olhavam pela vitrine o que estava acontecendo e não sabiam como isso seria em suas vidas.

E o povo chegando. Mais de 20 mil pessoas naquele município. Todo tipo de gente humana, chegando ali como um formigueiro. Cada um com suas atitudes, com seus modos de viver e de vivenciar. Foi um impacto muito grande, mas até então sem a dimensão do que seria. Parecia um circo que estava chegando numa comunidade ainda às luzes de lamparina, sem saber qual seria o final daquele enredo. Foi um pouco essa sensação quando eu vi chegando o empreendimento Belo Monte.

Apesar da dimensão, os prejuízos que você vivenciou são irreversíveis?
Muito dura essa palavra, irreversível. Muito dura, muito forte. Não quero acreditar. Mas podemos dizer que é irreversível para espécies do ecossistema, para a biodiversidade, para pessoas que perderam sua vida. Com certeza, foi, é irreversível.

Belo Monte foi vendida como uma obra de desenvolvimento. Que visão os atingidos por Belo Monte têm desse tipo de progresso?
Tem um pescador chamado Hélio, que quando se fala de Belo Monte, ele diz: um Belo Monstro. “O Belo Monstro chegou, tirou o meu sossego, tirou o meu rio. E eu estou à margem do rio ainda esperando o meu remo para poder ir atrás da esperança.” Esse sentimento que o Hélio traz foi vivenciado pelo seu próprio corpo-território. Hélio foi um dos primeiros pescadores a perder sua comunidade, a Vila Santo Antônio, que fica quase em frente à barragem. Eu acompanhei a saída desses moradores, a expulsão desses moradores. Aos poucos, eles foram deixando suas casas cheias de quintais frutíferos e jardins, foram aos poucos cedendo a demolições, a escombros e a caminhoneiros que chegavam que ninguém sabia quem eram. A comunidade foi tomada por estacionamentos e muitos homens. Era um cenário de machos truculentos, com botas pisando em tudo. Por cima de sentimentos e da convivência com familiares. Era como se tivessem chegado de uma guerra ou estavam vindo para uma guerra.

Essas famílias – quase 40 que moravam ali há mais de 40 anos na Vila Santo Antônio – foram perdendo espaço, sua dignidade, seus modos de vida e, literalmente, seu território. Ali já percebi o quanto Belo Monte não tinha nada de energia limpa, o quanto Belo Monte era truculenta e perversa no espaço onde estava se apossando para construir um projeto faraônico.

Essa versão de desenvolvimento não considera a percepção dos povos da região?
A palavra desenvolvimento foi pensada a partir do pós-guerra, no qual os ricos se apropriaram do mundo e começaram a tramar como ele seria. Dividiu-se o mundo no bloco do desenvolvimento capitalista e o bloco de esquerda pelas teorias do desenvolvimentismo, do Estado como o gerenciador de tudo pelo marxismo-leninismo. Esses dois blocos, dois modos de ver o mundo, começaram a pensar no desenvolvimento. Só que a partir de visões do seu próprio mundo. A América Latina, a África e outros países que não tinham nada a ver com esse mundo não tiveram lugar nessa discussão.

A gente percebe que esse desenvolvimento não era para o povo, mas para manter uma elite, um grupo dominando os outros. A gente sente na pele aqui na Amazônia a concretude desse desenvolvimento. O que é a Amazônia? Como são vistos nossos rios, nossa floresta, nosso povo originário, nossos indígenas, nossos quilombolas e nossas comunidades extrativistas?

Para esse tipo de desenvolvimento, gestado por pensamentos colonizadores da sociedade moderna europeia, a gente não é nada. Continuamos para eles em uma posição de subalternidade. E aí quando veio Belo Monte para o nosso território, concretizou tudo isso. O povo está cada vez mais à margem desse desenvolvimento. Os direitos humanos são passados por cima. A natureza é vista apenas como mercadoria, apenas como algo que vai produzir economicamente para esses grupos. Mas, para nós, isso é um desastre. A gente chama Belo Monte como projeto de morte. Para nós, é isso desenvolvimento. Não tem cabimento esse desenvolvimento em nossa concepção, em nossa cosmologia, no nosso mundo aqui na Amazônia.

Parte das políticas de remoção da população da região incluiu indenizações em dinheiro, crédito ou imóveis. A comunidade está sendo assessorada juridicamente para conseguir essa compensação?
Há dez anos Belo Monte tem dívidas sociais e humanas que talvez não vão ser ressarcidas. O povo perdeu sua terra, sua ilha, seu cacau, seu plantio de banana, seu plantio de roça, seu rio. Não há indenização nenhuma que pague isso; e as pessoas que perderam foram mal indenizadas, foram mal respeitadas nos seus direitos humanitários, nos seus direitos de pessoas. Hoje a gente tem pessoas que perderam todo seu território e vivem de cestas básicas. Quando as cestas acabam, elas passam fome. Elas também não têm leito nos hospitais.

O Hospital de Altamira, que deveria ser a referência para um empreendimento como Belo Monte, não tem vagas. Têm pessoas morrendo por falta de vagas. A cidade não estava estruturada para receber tanta gente, tanto o automóvel. Pessoas sem habilitação nenhuma. Pessoas que não estavam acostumadas a viver num trânsito caótico são mortas em acidentes. Eu vim do hospital agora. No ônibus, veio comigo uma família de Anapu (PA). A esposa estava indo embora porque desmarcaram sua cirurgia. O leito estava sendo ocupado por pessoas que sofreram acidente de moto e estavam gravemente feridas.

Eu estou falando isso para dar um exemplo de como é a situação hoje pós-Belo Monte. Até hoje a gente tem notícias de aldeias indígenas que foram realocadas em que o cacique faleceu há alguns anos e não conseguiu ver suas terras demarcadas. O processo de Belo Monte continua. O que nos vale ali na questão jurídica são as defensorias que protegem os direitos humanos do povo.

Mas são tantos os pedidos que elas não dão conta. Não têm pessoal suficiente para dar conta da demanda individual das pessoas que foram afetadas por Belo Monte. E você sabe, essas instituições são limitadíssimas. E quando se fala de defensoria estadual, ainda há muitos interesses por trás. Os processos não caminham, não andam. Juridicamente falando, nós estamos muito aquém do desejado para reaver esses danos que Belo Monte causou.

Você diz que não há indenização que pague o que aconteceu. O que as comunidades do Xingu perderam de mais precioso nesse processo?
Se a Norte Energia realmente fosse uma referência, como se dizia em suas propagandas – “Energia limpa, renovável que não iria afetar a vida dos povos” – o povo impactado não estaria com processos para pegar uma indenização. A empresa valorou a casa de alguns moradores da Vila Santo Antônio em sete mil reais, só porque eram de madeira. A riqueza das casas era o rio e sete mil reais não pagam o que eles perderam, os 40 anos de dedicação àquela comunidade. É o tipo de situação que Belo Monte trouxe para esses povos.

Eu não vi nenhum fazendeiro recorrer à Justiça contra Belo Monte. Não vi fila de fazendeiros, como eu vi e presenciei e acompanhei centenas de mulheres batendo no escritório da Norte Energia atrás de uma casa. A casa onde elas moravam nos baixões de Altamira foi toda destruída, ainda com elas dentro no final de 2014 e início de 2015. Nós acompanhamos essas mulheres, sofremos com elas. Andamos quilômetros para chegar ao escritório da Norte Energia para fazer com que a empresa reconhecesse que as mulheres tinham direito a uma casa. É o tipo de desenvolvimento que a gente está vivendo.

Uma equipe de médicos veio de São Paulo para acompanhar a depressão que se instalou em muitos ribeirinhos. É um diagnóstico do adoecimento humano. O que é o adoecimento humano? As pessoas foram aos poucos definhando de uma tristeza tão profunda; é igual a um passarinho que está preso e começa a morrer aos poucos porque não se adaptou à aquela gaiola. Isso mostra como foi difícil para essas pessoas perder a relação com o Xingu. Com os avisos do rio, com suas águas, com sua sabedoria e sazonalidade. Eles dialogavam com aquelas águas. Era o invisível falando com eles. Eram os encantados dialogando no momento em que eles pediam uma boa pescaria ou uma ida para os rios sem problemas. Quem os protegia naquele momento eram os seres do Xingu, conhecido como morada dos deuses e deusas.

Era visível nesta relação a cosmovisão desses pescadores, desses mestres e mestras dessas águas. Só eles tinham contato direto com essa realidade dos encantados do rio. E isso foi perdido. Não se sabe nem mensurar porque é algo intrínseco a cada um deles. Nós da Amazônia temos nossa religiosidade, nossa fé, nossa relação com a mãe da água e com a mãe da floresta. São nossas próprias regras que não estão no Código Civil, na Constituição. Estão dentro de cada um de nós. E isso foi roubado. O rio não é mais rio. O rio hoje tem banheiro, enche e sobe de uma forma não natural como é a maré. O ciclo do rio ninguém mais conhece, ninguém sabe mais onde estão os locais sagrados, as cidades encantadas. É o lado invisível que foi destruído. As pessoas foram definhando, morrendo, perdendo sua utopia que era motivada pelo Rio. Você entende o que significa isso?

Não entendo, mas consigo capturar a dimensão da fala na emoção que você transmite. A violência foi e é um aspecto bem visível dos impactos de Belo Monte. Há alguma relação entre essa violência e a perda da conexão com a natureza?
Um povo sem identidade é um povo morto que não tem mais segurança. A maioria dos jovens dentro do presídio de Altamira e os que foram mortos lá vieram das ilhas inundadas pelo Xingu. O que sobrou foi a cidade, que não era mais a Altamira do interior. Há uma diferença com a chegada de Belo Monte. Os jovens estão envolvidos com as facções que chegaram com a obra. Esses jovens são filhos das pessoas que vieram das ilhas, que foram expulsas por Belo Monte.

As ilhas não eram só uma fonte de economia, mas também de lazer e alimento para o povo. Muitos jovens estão no presídio, e os que estão do lado de fora estão nas facções que vieram pela grilagem de terra, pela possibilidade de lavagem de dinheiro. A violência está institucionalizada de todas as formas, mas a barbárie é a pior delas. O povo deste território foi lesado. E a juventude está morrendo e está matando.

É uma situação que vai perdurar por muito tempo porque não contamos com uma justiça suficiente e eficiente. O povo poderia ter um pouquinho de indenização para dar um aconchego melhor para a sua família, um lar mais agradável. E o povo está aí batalhando na justiça e a gente não sabe quando isso vai se resolver. A violência está imperando: feminicídio, estupros, todo tipo de violência que você imagina. Não é diferente das grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.

Qual foi a reação dos movimentos sociais contra os impactos de Belo Monte? Foi pacífica?
Não é possível que a gente sente na mesa com nossos opressores. Mas a gente busca nossos direitos. Essa situação deu força de resistência para que a gente percebesse que pode fazer muita coisa. Para algumas pessoas de 70 a 80 anos, eles só vão ver morte. A morte do rio, do pacu, da onça. O rio se transformando em lama. Talvez elas não recebam a recompensa por aquilo que perderam do rio, porque vai ser uma briga na Justiça. Mas não tenho dúvida de que seus netos e bisnetos vão ver a recompensa. Essa dívida vai ser cobrada por eles em cima dessa resistência que nós aprendemos com os nossos avós. Eles foram resistência para eu estar aqui hoje. Meus ancestrais resistiram e ainda conseguiram, na sua resistência, deixar o rio com peixe para mim e para os meus irmãos. Conseguiram deixar ainda uma floresta com árvores e frutas nativas.

Começamos a unir os laços fraternos que foram rompidos pela barragem de Belo Monte. Começaram a surgir os núcleos de vizinhança na dor, no sofrimento, na alegria para resistir e para recuperar aquilo que perderam, seus direitos e seu plano de vida. Os núcleos guardiões da Volta Grande do Xingu estão focados e a cada entrevista, podcast, documentários que desnudam o que é esse desenvolvimento, a resistência dos povos indígenas locais, a existência dos ribeirinhos pescadores, é uma pedra que vai destruir Belo Monte. Essa é a nossa convicção.

Como se deu esse processo de organização para lutar contra Belo Monte?
É uma construção o processo de resistência. No início, muitos pesquisadores do Brasil e do exterior criaram um painel de especialistas no qual eles iam contrapondo Belo Monte por meio de pesquisa. Isso gerou muitas informações verdadeiras que estão sendo comprovadas, como a ineficiência da água. Ou como a avaliação inicial de que o impacto da hidrelétrica seria só de 400 quilômetros e não atingiria terras indígenas. Mentira. Foram 700 quilômetros. O papel dos especialistas foi fantástico. A ciência também foi questionada porque ela teve um papel na construção desse desenvolvimento. Mas existem pessoas sérias e éticas dentro da ciência. Eles estavam ali para mostrar, com uma ciência sem lado, o que ocorreria com a mudança no rio Xingu.

Grupos jurídicos também foram fundamentais nesse processo para entender onde o dinheiro estava vindo e para entender os processos da consulta prévia. Houve também um grupo de ambientalistas para mostrar como ficaria o rio Xingu e sua biodiversidade. E dentro da cidade, havia os movimentos sociais que estavam lutando contra isso. Alguns desistiram por conta de relações políticas, mas outros permaneceram e estão até hoje, lado a lado com as pessoas afetadas por Belo Monte. Não são estranhos: são pessoas que foram impactadas por esse projeto desenvolvimentista, que sentiram e vivenciaram na pele.

Essas pessoas ainda lutam e resistem contra esses projetos, que não são só Belo Monte. Há outro empreendimento na boca grande do Xingu, a mineradora canadense Belo Sun, que tem a mesma postura e a mesma lógica de desenvolvimento de Belo Monte. Existem grupos de jornalistas comprometidos chegando em Altamira. São inúmeras pessoas da região, do Estado da Amazônia. Alianças foram feitas entre povos indígenas, como os Munduruku que vieram do Tapajós fazer aliança com o povo daqui. Por fim, a Universidade Federal do Pará também foi importante e ainda continua nessa aliança em defesa dos povos e da mãe natureza.

Quais foram as conquistas que nasceram dessa luta comunitária?
As alianças sérias que perduram até hoje entre pesquisadores, ambientalistas, movimentos sociais, jornalistas e advogados. É uma resistência com e pelo povo que perdeu o rio. É triste saber que milhares de metros cúbicos de árvores centenárias foram tiradas para dar lugar para esse empreendimento. Árvores que a Norte Energia quer transformar em carvão.

Esse é o mundo do desenvolvimento, que parte da economia do lucro fácil, da financeirização da natureza, do envolvimento das pessoas e dos povos. Para nós, a riqueza é a floresta em pé, é o rio, é a água limpa, é a convivência com tudo isso que estamos perdendo aceleradamente para esse desenvolvimento, que transforma nossa Amazônia em concreto. Estão concretando nossos rios. Mas uma coisa eles não podem fazer. Concretar nosso coração, nosso sentimento, nossa alma, porque estamos com a força dos encantados e da nossa ancestralidade.

Escavadeiras parecem minúsculas próximas do canteiro de obras de Belo Monte

Canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte (Anderson Barbosa/Amazônia Latitude)

Havia no poder político e financeiro da Norte Energia alguma pressão sobre essas lideranças?
O povo tinha muita dificuldade de relacionamento com autoridades. Era quase um mito. Quando se falava “lá vem um advogado, um juiz” o povo tremia. Tremia na frente dessas pessoas. Eram autoridades que tinham poder e a gente, humilde. Foi uma grande vitória perder esse medo. O povo hoje fala na frente do juiz sem vergonha, sem medo. Ele aprendeu a ser sua própria voz. O Movimento Xingu Vivo não precisa falar por eles. Eu não preciso falar por eles. A potência de se comunicar e dizer seu pertencimento foi valorizada. Eu sou o Xingu, a natureza. Eu sou cheio de direitos.

As discussões sobre um novo desenvolvimento na Amazônia passam pelo conceito de ancestralidade. O que ele significa para você?
Nós não defendemos a palavra desenvolvimento. Não defendemos porque ela é cunhada na colonização. Não muda a estrutura. Agora, nós povos e comunidades tradicionais criamos nosso projeto de vida que é diferente do “desenvolvimento sustentável”. Quando você fala nessa palavra, você olha o macro – fazer algo para energia, para o Brasil inteiro e para todas as indústrias – e implanta uma barragem com 18 turbinas, algo grande e faraônico. São megaprojetos, mas não são para nós. Nosso projeto é ter autonomia e governança nos nossos territórios. É ser e tratar os outros a partir de uma perspectiva que não se sobreponha ao outro, na qual nossos conhecimentos são partilhados. As novas tecnologias surgidas pelos povos e comunidades tradicionais são partilhadas e não privadas, principalmente na questão da saúde.

Nossos saberes e conhecimentos tradicionais, como remédios caseiros, são para servir nosso povo, nosso território. Não é para ser transformado em pílulas e ficar na prateleira de uma empresa farmacêutica ou de um laboratório. Esse tipo de desenvolvimento não é para nós. Há uma diferença: tudo o que a gente tem é partilhado; e mais, quando nós cuidamos das florestas centenárias, não é só para nós. É para termos um clima para o planeta, para os rios voadores, para nossos rios subterrâneos, para nossos rios submersos imensos.
Então, não existe para nós “desenvolvimento”, essa palavra é morta. Essa palavra é significado de morte, mesmo que se coloque sustentável na frente. Essa palavra envolve dinheiro e acúmulo de sangue de destruição. Para nós, não é desenvolvimento. Não criamos um desenvolvimento, estamos criando projetos de vidas voltados para a própria comunidade, para as esperanças locais.

Se a gente sai do nosso local, aonde nós vamos? Para a periferia de Altamira, para a periferia de Belém. E o que nós vamos encontrar lá? No nosso território, a gente precisa ter uma boa educação, uma boa saúde. A gente precisa ter cultura, lazer. Não precisamos ser deslocados por conta disso. Precisamos dos recursos que vêm para esse tipo de desenvolvimento. Em Belo Monte, foram 40 bilhões. Se esses recursos fossem para fazer os projetos de vida das comunidades, haveria muito mais emprego do que aqueles que Belo Monte trouxe nos primeiros anos, e o povo estaria com mais qualidade de vida. Nós estávamos sem presídios abarrotados de jovens. Se tivesse vindo esse dinheiro para os projetos de vida dos territórios, nossa vida não teria lamentações e lágrimas nos olhos hoje, cada dia enterrando um filho, um parente e um amigo. Isso não é desenvolvimento.

Que futuro você almeja, a partir da ancestralidade, para a Amazônia e para os povos do Xingu?
Eu não posso falar por mim sem dizer como é que isso se move no meu ser. Em uma situação muito grave, os povos da Volta Grande na área da Vila Ressaca estavam pressionados por Belo Monte e por Belo Sun. E as duas empresas começaram a mandar que eles parassem de trabalhar, parassem de entrar nos roçados porque aquilo ali tudo já era de Belo Sun. Eu fui visitá-los e a gente não sabia o que fazer. Já havia denúncia na Justiça. O que vamos fazer então? Qual vai ser a saída?

E aí todos nós, cansados de ficar em pé porque estávamos no meio da área de trabalho deles, sentamos e começamos a tocar o chão. E ali naquele tocar o chão, como se eu quisesse plantar minhas mãos, fui envolvendo cada vez mais profundamente elas na terra. E ali surgiu algo muito profundo. De repente, veio aquela coisa, de cima para baixo, e disse: “por que a gente não começa a plantar açaizal nesta área que Belo Sun está destruindo?”. Ainda pensando, fomos lembrando o que essa bebida significa para nós. E aí depois o pessoal começou a pensar sobre economia, os valores, a cultura do açaí. E de repente, todo mundo disse “vamos plantar açaí”. E nós fizemos um mutirão e fomos plantar açaí ali.

E hoje nós estamos com mais de 700 pés de mogno, com mais de um palmo para plantar nesse próximo inverno. Por que estou dizendo isso? É que o futuro é ancestral. E não existe ancestralidade sem árvore em pé, sem rios correndo, porque é a morada dos deuses e das deusas de nossos encantados. Nossa ancestralidade está em cada árvore e é isso que o mundo precisa para viver o futuro. Não é a partir do homem, mas da natureza. Os dois têm que estar conectados. Há espaço para todos: um depende do outro.

Precisamos acabar com esse mundo colonizador dualista, que se baseia apenas na economia. Esse mundo pensado pelo desenvolvimento de acumulação precisa ser morto. E nós precisamos construir outro mundo; não diria em harmonia, porque não há harmonia com a natureza, mas há um atrito que vai gerando vidas. É isso que nossos avós, que nossos ancestrais nos diziam. Não existirá uma outra vida se a gente não construir isso, não limpar o nosso meio, não limpar nossa mente. Nossa mente precisa ser reflorestada. Assim construiremos um mundo diferente.

Tudo o que você falou aqui é um registro importante sobre o futuro e conflitos da região. Alguma reflexão final para nossos leitores?
Terra não se vende, terra se planta, terra se produz. Nosso futuro é acabar com a comercialização das nossas terras, porque assim nós vamos poder ter a terra como verdadeira mãe para todos. É a partir dessa negociação da terra e da natureza que vem toda desgraça. A terra precisa ser vista como um bem contínuo na vida de cada um de nós. Para nós na Amazônia, não vai existir futuro se continuarmos comercializando as nossas terras. Quem comercializa as terras não é o pequeno agricultor, o ribeirinho ou o pescador. São os grandes e eles comercializam para destruir e transformar a Amazônia, para tirar sua floresta e transformá-la em celeiro.

Nós vamos ter um deserto na Amazônia porque dependemos da nossa natureza em pé. Não vai existir futuro se a gente derrubar tudo, se a gente não começar agora a investir em uma Amazônia reflorestada. A gente precisa se conectar com a natureza, respeitar o seu ciclo. Não existe um futuro se a gente não pensar por aí. E é por isso que se dá um conflito com esses grandes projetos desenvolvimentistas. No nosso mundo, a gente já vivia nesse futuro, só que ele não era visível.

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