Conversando com Krenak: a economia do desastre
Durante as gravações do documentário Pisar Suavemente na Terra, líder indígena narra histórias sobre parentes e os efeitos visíveis da mineração na Terra Indígena Krenak, próxima ao Rio Doce
Eram meados de julho de 2021 quando partimos (Diego, Bruno e este que vos escreve) de São Paulo com destino a Vitória (ES), antes do crepúsculo; de lá, seguimos por mais cinco horas pelas sinuosas curvas da BR 101. Já passava do meio-dia quando chegamos a Resplendor, cidadezinha mineira com pouco mais de 17 mil habitantes, avizinhada à Terra Indígena Krenak.
Ali foi nossa primeira parada no encontro, que duraria cinco dias, com o escritor, filósofo e ativista ambiental Ailton Krenak. Os impactos da Covid-19 ainda se faziam sentir. Tomando as devidas precauções e preocupações, finalmente chegamos ao nosso destino.
A longa jornada foi recompensada pela alegria de ouvir e ver nosso querido Txai, como costumeiramente nos saudamos, mas ainda sem o tradicional abraço. Naquele momento, eram passados já 18 meses desde o início da pandemia. Fomos, inclusive, fomos os primeiros a visitar o Krenak e sua família na aldeia durante o distanciamento necessário que exigia a cooperação de todas e todos.
A alegria de poder vê-lo e escutá-lo contagiou as horas e dias que permanecemos naquele recorte espacial, quase mágico. Escutar Ailton Krenak é entrar numa simbiose imagética, onde as palavras perdem a noção de tempo e espaço, deixando o encantamento do saber em quem as ouve. O difícil era parar de ouvir nosso anfitrião.
Depois do almoço-janta, antes de irmos para o hotel, que terminou sendo a casa do ilustre Raush, Ailton nos convidou para um breve tour pela aldeia Krenak. Foi durante essa longa caminhada que cruzamos a T.I. com uma conversa ao pé do ouvido onde as imagens de suas palavras nos conduziram.
“Naquela estradinha era tudo área de triangulação dos botocudos, dos nossos”, explicou Ailton Krenak, apontando o dedo para uma estrada no território. Seguimos.
Mais que uma prosa entre amigos, Krenak nos deu uma aula e, durante algumas horas, percorreu a história de seus antepassados na região, dos enfrentamentos com colonos, governos, ditaduras, no estabelecimento da T.I., da chegada das mineradoras às mudanças radicais no modo de vida dos povos da região.
“Era 1910, 1915. Eram nossos bisavôs, não é tão longe”, continuou.
Marcos Colón: São umas três gerações.
Ailton Krenak: É, duas, três gerações atrás. Eles andavam por aqui tudo, porque eles não tinham uma aldeia. No Baixo Amazonas, tem essa história de aldeias que são antigas, sedentárias, que os índios ficam lá fazendo agricultura. Os meus parentes aqui são caçadores-coletores, igual xavantes ou aos Krahô. Não chega a ser nômade, porque o nômade não ia ficar aqui nessa região. O nômade ia parar lá em São Paulo ou em Brasília. Os Krahô ficam lá naquela região do Tocantins, os xavantes não vêm para Goiânia, eles ficam na Serra do Roncador, mas também eles não ficam no mesmo lugar; então eles andam para não sair do lugar. A parábola que eu inventei sobre os meus antepassados era isso: eles andavam muito para não sair do lugar. Eles ficavam aqui nesses morros e o rio era o principal elemento que segurava a onda deles, que constituía o ciclo de vida geracional e tudo. Em 1909, 1910, por aí, começa a estruturar as ajudâncias, uma coisa que o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) começou a criar.
Ajudâncias são os postos de atração?
A estrutura principal eles chamavam de ajudância, era uma delegacia. Botavam um cara ali, geralmente ligado, de alguma maneira, com o sistema público, sistema de governo. Em 1912, 1913, tinha uma inspetoria de índios em Salvador, na Bahia. Depois, de lá de Salvador, eles tinham os postos, tinham uns cinco ou seis postos no Espírito Santo.
A história das cidades próximas à Terra Indígena Krenak é a história também criada em torno dos postos de atração?
Não, o eixo aqui foi a mineração. O curso do Rio Doce inspirou a ferrovia. Essa Estrada de Ferro Vitória-Rio nasceu em Itabira, na terra do [Carlos] Drummond, para tirar minério de lá e levar para o Porto do Espírito Santo. E esses vizinhos aqui foram incentivados a invadir essa área na década de 1930 e botar os índios para correr daqui. Aquela formação ali se chama – para nós ela parece um jabuti – a Pedra do Jabuti.
Do lado de cá, a vegetação e o morro interrompem a formação da pedra, mas do lado de lá, não, é tudo pedra; se vocês olharem bem, ela tem a forma de um jabuti. Então, essa Pedra do Jabuti era o último reduto dos índios contra esses colonos. Aí, chega por aqui, em 1913, alguém que na biografia do SPI é ilustre, um cara chamado Estigarribia. Não sei se esse cara era um geógrafo, mas ele foi designado para vir fazer a identificação dos botocudos, ver que índios eram esses que estavam conflitando com os colonos aqui.
A sede do governo era no Rio de Janeiro e os colonos reclamavam, dizendo que não conseguiam ocupar, porque os índios ficavam botando fogo na fazenda. Aí, os caras vêm para cá com esse papo de identificar os índios e encontraram os botocudos literalmente encurralados aqui na beira do Rio. Os colonos querendo matar os índios, empurrando os índios para lá e sacaneando mesmo; quem eles conseguiam botar para trabalhar, na marra, para eles, eles deixavam mais ou menos vivo; quem não queria trabalhar para eles, eles metiam bala, facão. Uma crueldade sem tamanho!
Esses colonos que estavam se enfiando por aqui, já tinham vindo do Espírito Santo. Tinha muito colono descendente de alemão, diferente de alguns outros lugares, onde quem foi colonizar foram cearenses, baianos, sergipanos. Aqui, foram os italianos e os alemães que entraram pelo litoral do Espírito Santo, subiram o Rio e vieram colonizando para cá. Esse vale aqui em cima era um lugar mais de mariscar, circular e, em uma rara saída para mais longe do que aqui, o pessoal descia o rio e ia até o litoral. Óbvio que eles iam pelo rio, não é, gente?! E vocês sabem como eles iam pelo Rio? Andando. Eles não faziam canoa, não faziam jangada, nem nada. Então, quando o rio começava a subir água, eles voltavam para a casa pelas encostas e, quando o rio estava cheio, eles já estavam aqui mesmo, nesse lugar que eles gostavam de ficar, na aldeia que eu moro agora. Eles botaram um posto lá dentro — um posto de atração — e, como os índios ficavam perambulando por aqui, os caras do SPI negociaram com os colonos que iam confinar os índios na beira do rio, em uma área concedida, diferente de uma demarcação. Limitou os indígenas a um posto que eles literalmente chamavam de Posto Indígena Guido Marlière, que homenageava um cara, um militar, que no século XIX foi designado pelo Dom Pedro II para controlar esses índios daqui.
Sempre houve uma pegada repressiva em cima desses parentes aqui. Nessa região, tinha gente de mais ou menos 6 subgrupos, igual aos kayapó, que têm xikrin, kuben-krân-krên, metyktire. É o mesmo povo, mas com vários subgrupos. E aí, a gente tinha vários subgrupos que ficavam ao longo do rio, da cachoeira de Colatina, onde vocês pararam para comprar queijo, onde vocês viram o Buda por ali afora. De lá para cá, nesses lugares, havia pequenos ranchos onde os índios paravam. Para convencê-los a ficar aqui, o governo armou uma sacanagem com os colonos. Os colonos viraram fornecedores de carne, com abate semanal de um número de boi e vaca; botavam em cima de um carroção, contavam e entregavam para os índios comer. Então, os índios foram aliciados a ficar comendo no rancho dado pelo governo, e os colonos faziam de conta que estavam cuidando dos índios. É preciso cuidado com a ideia da SPI, do Rondon, com o lema “morrer se preciso for, matar nunca”.
Na verdade, o pau quebrava. Os caras escravizavam, roubavam, abusavam, matavam e foram encurralando o que sobrou dessas famílias indígenas aqui nesse aldeamento do Posto Indígena Guido Marlière. Em 1923, foi feita uma escritura de terra indígena. Daqui a dois anos vai completar cem anos que aqui é uma terra indígena. Vocês conhecem alguma terra indígena que tem cem anos? Eu acho que nenhuma.
A terra indígena da Kátia, também do Pisar Suavemente na Terra, foi reconhecida há poucas semanas.
Essa terra aqui, a escritura foi feita pelo presidente da província, o Arthur Bernardes, que depois virou presidente da República. O Artur Bernardes fez a escritura da terra como doação para os índios, o que é um escárnio: eles tomaram tudo, estragaram tudo, aí separam uma birosca e dizem “isso aqui é para vocês”.
Uma doação paga com carne…
Eu estou falando coisa da década de 1920 e 1930, não é?! Aí, o SPI designou um xerife para chefiar aqui, um fiscal, um indigenista, um sertanista. Aí, botou um sertanista aqui, ele transformou a terra indígena em uma fazenda e arrendou as propriedades aqui dentro, quase 4 mil hectares. Esse homem viveu mais de 20 anos aqui, sozinho, governando e o SPI não fiscalizava o que ele fazia. Ele chegava um dia, matava, trocava, fazia o que ele queria com a vida dos índios e administrava uma fazenda pública de 4 mil hectares, que é a terra indígena. Imagina como é que esse homem roubava. Ele roubava de todas as maneiras. Recebia dinheiro da Administração Pública Federal. Ficou rico, comprou terras na Bahia, fundou cidades para lá, sacaneou todo mundo. Com a chegada da Estrada de Ferro em 1927, que demarcou a aldeia, confinou os índios. Passa a Estrada de Ferro, come a montanha, acaba com a floresta.
Primeiro enche de fazendeiros e depois come a montanha.
Para comer os índios, comer a montanha, vai comer tudo. A predação que, quando você acompanha dentro da linha do tempo, é orquestrada. É para fazer essas coisas, essa maldade, essa sacanagem. Eu nasci em 1953, trinta anos depois que isso aqui foi definido como terra indígena. Quando eu nasci, eram trinta anos de TI e uns cinquenta anos de esbulho. No final da década de 1930, os colonos estavam tão folgados, que eles contrataram homens da sede do município para simular um ataque ao posto. Eles foram na beira do rio, dinamitaram o posto e comunicaram ao Rio de Janeiro que estava extinto o posto. “Comunicamos ao Serviço de Proteção ao Índio que não tem mais índio aqui e queríamos que vocês dessem a titularidade da terra para nós”. Aí eles conseguiram extinguir o posto e declararam que não tinha mais índio aqui.
Nessa época, do final da década de 1940 até o começo da década de 1950, o Darcy Ribeiro fez uma pesquisa para escrever o livro Os índios e a civilização – A integração das populações indígenas no Brasil moderno. Na obra, aparece uma prancha que mostra que esse posto aqui foi extinto, que os índios daqui foram extintos. Os caras que ocuparam aqui, faziam barramento no rio para ter geração de energia elétrica particular dentro da terra indígena. Ainda na terra indígena, havia uma fazenda tão grande que ela tinha uma pequena barragem para produzir energia elétrica só para ela, produzindo porco, boi, frango. A fazenda drenava um monte de lagos artificiais e córregos aqui para encher açudes e criar peixe. Era uma coisa muito próspera, uma fazenda modelo dentro da terra indígena e ninguém dizia nada; e os índios, perdidos por aí, exilados,desesperados. Olha que sacanagem! Quem é de fora fala: “que legal, os índios têm ali uma aldeia na beira do rio”. Aí, para não parar a sacanagem, a mineração vai mutilar o corpo do rio até botar o rio em coma. Costumo dizer que o Watu ficou em coma por essa sacanagem da mineração. E como a gente ficou sem água potável aqui dentro…
As pessoas vão perguntar: “Por que tem essa ponte dentro da aldeia?”. A Vale construiu essa ponte como compensação pela construção da barragem lá em cima. Você conhece o papo da compensação? Foi uma compensação. A sacanagem da Vale, desde quando ela se tornou dona do Médio Rio Doce, é transformar a população dessa região ribeirinha em clientela. Ou você vive de compensação, assistência, esmola deles, ou você vai embora. Eles conseguem uma abrangência tão grande que esses municípios, que vivem do dinheiro da mineração, da compensação, da construção das barragens, da ferrovia e do fato da linha férrea passar dentro do município.
Uma cidade inteira, não é?!
É, é refém. Olha as caixas d’água. Cada lugar que você vê uma moradia, você vai ver um conjunto de estruturas que são para os caminhões-pipa que passam nessa estrada.
Nem é bomba, nem tira a água…
O rio está passando ali [apontando], mas a água do rio, o material que corre lá dentro não pode ser consumido. Não pode ser usado nem pelos animais, nem um cachorro pode ir lá beber aquela água porque o focinho dele necrosa. Eu falo que a tabela periódica inteira caiu dentro do rio, lá dentro tem chumbo, mercúrio, iodo; a tabela periódica caiu e afundou no corpo do rio. E aí, vem uns engenheiros pilantras, que ganham R$30 mil por mês da Vale e faz relatório dizendo que a água pode ser reaproveitada em ciclos de irrigação, por exemplo, e que os índios podem desenvolver atividades com aquela água, irrigando. Irrigando o quê? Aí, vem aquele papo furado de botar projeto econômico aqui dentro.
O lucro da Vale, no primeiro trimestre de 2021, foi de R$ 30,5 bilhões…
Eu fiquei sabendo. O capitalismo, as corporações descobriram que eles têm que criar ativos com alta rotatividade. O ouro, por exemplo, tem alta liquidez que chama, não é?! Ouro é ouro, não precisa nem ser transferido, ele já é.
É a coisa mais segura, no ponto de vista da nacionalidade dele.
Há muita gente investindo para comprar o minério. A China, por exemplo, está comprando qualquer tipo de minério, de qualquer lugar do mundo, inclusive da África. E nós viramos a bola da vez. A gente tinha um tipo de minério aqui, que era considerado “respolho”, um minério de baixa resolução, de baixo teor de pureza. Aqui mesmo, em Minas, que eles chamam de Quadrilátero Ferrífero, onde o Eike Batista fez a lambança dele.
Em Carajás, tem uma pureza de 80%. Abaixo de 50% eles não exploram.
Agora, eles estão comprando tudo, tudo. Tem gente que vivia em uns altos que a terra deles não valia nada. Este percurso [mais uma vez aponta] é um rali das empreiteiras. Eles entram no território e governam o território para você; eles decidem, por exemplo, quem faz a manutenção das estradas. São as patrolas das empreiteiras. Quando a água do rio virou lama podre, eles contrataram empreiteiras que vieram aqui e furaram para todo lado, nessa bacia, e quebraram as brocas deles, porque aqui embaixo é laje. Quando eles conseguiram fazer um poço artesiano, o material que sobe é todo contaminado, porque o lençol freático está contaminado.
Algo parecido aconteceu em Baixo Guandu.
Aquilo foi para o espaço. Todo mundo aqui que tinha grana montou uma frota de caminhão-pipa para participar da licitação e entregar água nas barragens do rio. Gente que comprou três caminhões e agora tem dez; tudo é abastecido por caminhões-pipa. É por isso que eu chamo de rali das empreiteiras. Uma vez chamaram o pessoal da Universidade de Viçosa, encheram isso aqui de estagiários, todo mundo com a pranchetinha na mão. Depois eles voltaram e fizeram reunião com as famílias daqui – 130 famílias aqui –, fizeram aquelas audiências manipuladas para apresentar “projetos incríveis”. O projeto era gado leiteiro, canarama, capim, trens de transporte de gado. Tudo que vai reproduzir a mesma paisagem dos outros lugares, com as casas, as caixas d’água. É um implante. É óbvio que, espontaneamente, ninguém se organiza desse jeito. Só se organiza desse jeito quando é induzido, induzido por uma ocupação.
Projetos para fluir a mercadoria, não é?!
É. Aí, se juntaram com o secretário de Indústria e Comércio do Estado de Minas, com o governador e, em um conluio, eles decidiram que a melhor coisa que o pessoal teria aqui é gado leiteiro. Como os Krenak não têm nenhuma experiência com agricultura, era melhor criar oito núcleos de produção leiteira aqui dentro e distribuir pelo território. O gado daqui não tem aquela qualidade que justifica o manejo confinado, ele é só para criar bezerrinho e dar leite. E, obviamente, eles não estavam interessados em fazer uma coisa para dar certo; é para dar errado. Em cada unidade, o caminhão passa, pega os latões de leite e leva para uma área central, onde o leite é botado em uma unidade de resfriamento, porque tem que ficar em uma temperatura ali para não azedar.
Aí, vem o atravessador buscar.
Vem o atravessador, que é da Laticínios – um em Resplendor, outro em Conselheiro Pena – que prosperam bem, pegam o leite e vão fazer o que tem que fazer com ele: queijo, iogurte e Danoninho. E o território vai sendo exaurido. Agora, aqui está tudo muito seco, mas isso aqui é pasto. Se tivesse na época das águas, ia estar tudo verdinho, com vacas andando. Como agora está tudo destruído assim, eles ficam com o gado mais próximo do curral e dão feno. Eles dão ração que chega em fardos do tamanho desse carro aqui, chega o pacotão, os fardos de ração animal, porque cada curral daquele contrata alguém que vai fazer a gerência daquele pacote todo: vaca, ração e leitão. Aí, vai criando essa dependência tão terrível, que se você chegar e falar para tirar o gado dali, os caras falam: “Mas como? A gente vai tirar o gado daqui e fazer o que, agora que eu já tenho o trabalho?”. Então, é uma domesticação da vida, entendeu?
Uma colonização no horizonte, toda a sua perspectiva gira em torno disso?
Nem sei se dá para considerar que tudo gira em torno disso. Na verdade, isso vira só uma espécie de argumento, porque toda novela precisa de um argumento. Agora, os personagens agem de acordo com a sua criatividade. Quando o antropólogo, o sociólogo faz a reunião e cadastra todo mundo, ele tira um retrato, certo? E aquele retrato diz que cada unidade dessa vai ficar com seu curral, suas vacas; aí tem uma definição lá de quantas vacas vão ser entregues para cada família ou cada unidade. Quinze dias depois que aquelas matrizes foram entregues, nem 10% estão lá mais, elas já foram todas passadas na grama, aí os currais continuam. Como é tudo uma coisa para não dar certo mesmo, se eles entregarem trezentas cabeças de gado e o pessoal vende duzentas, as cem que ficam, elas vão fazer de conta que estão entregando leite; e eles vão fazer de conta que estão recebendo. Não é algo totalmente cínico? Com a duração desse bullying, alguns dos jovens são incentivados a virar técnicos das empreiteiras.
Ou técnico agrícola para mexer com leite.
É técnico, não importa. Por exemplo, tem o filho de um curral aqui perto que foi fazer engenharia civil. Aí, quando ele estava no terceiro, quarto ano, ele foi contratado para ser estagiário aqui dentro. Sabe qual era o estágio dele? Acompanhar as máquinas agrícolas, as máquinas fazendo terraplanagem, acompanhar a construção daquela ponte. Aí, ele termina o estágio dele, o que ele aprendeu?
A ferrar com tudo.
Agora, contratam ele como engenheiro, aí aqui dentro tem um engenheiro Krenak, contratado para ferrar com tudo. Mas ninguém pode reclamar, porque ele é Krenak. O tio, o pai, a mãe, a vó, todo mundo vai ficar chateado se você falar que ele está ferrando tudo. Como todo mundo é inteligente e ele também é, sabe o que ele conclui? “Eu não vou fazer nada, porque assim eu não ferro com nada. Mas, ninguém vai contar também que eu não estou fazendo nada, porque senão eu não recebo R$11 mil todo mês.”
Essa forma de barganha é replicada aqui como forma de aliciamento.
Uma vez, inspirado puramente na observação, eu fiz uma palestra lá no Parque Lage, no Rio de Janeiro, que eu chamei de economia do desastre. No contexto de uma palestra, foi possível dar conta de descrever como esses caras ferraram com nosso território e criaram uma economia que só pode existir se o desastre acontecer. Se você suspender a situação de flagelo, aquela economia não tem sentido. E aí, você pode ir também para a ideia da ecologia do desastre, porque quando você ferra tanto com a condição natural de estar naquele lugar, as pessoas se adaptam a uma condição de carência, de sofrimento, e vivem aquilo como se fosse uma ecologia própria daquele lugar. Aí, falam: “Vocês ficam respirando poeira, bebendo esse esgoto e comendo essas coisas estragadas”, mas aqui está ótimo. Basta você ver as condições que as pessoas vivem nas favelas do Rio de Janeiro com a milícia. Não sei como não explode uma rebelião assim. Sugere, inclusive, que o tal do homo sapiens se adapta até ao esgoto, a capacidade dele de resiliência, de se adequar a qualquer horror que você possa fazer com ele, que ele continua, a peste continua. Então, não tem uma ecologia no sentido radical, não existe uma ecologia intrínseca a esse corpo sapiens, ele é um monstrengo, ele vira qualquer outra coisa.
É a produção da pobreza, como diz o Viveiro de Castro, é a produção da pobreza.
Pisar Suavemente na Terra
Um filme de Marcos Colón
Com as participações de:
Kátia Akrãtikatêjê, Manoel Munduruku, José Manuyama & Ailton Krenak
Roteiro: Bruno Malheiros & Marcos Colón
Fotografia: Bruno Erlan & Marcos Colón
Edição & trilha original: Diego Orix
Produção executiva: Erik Jennings & Marcos Colón
Direção e produção: Marcos Colón
Produção: Amazônia Latitude Films
Filmado no Brasil, Peru e Colômbia
Duração: 73 min | País: EUA/BRASIL | Ano: 2022 Estreia: 29 de outubro de 2022
Instagram do documentário Pisar Suavemente na Terra.