Documentário ‘Rios’ exalta a resistência de ribeirinhos por meio da música

Uma mulher indígena segura, submersa, uma tigela, com tinta laranja
Para Diego Orix Farias, diretor do curta, é necessário expandir as narrativas além da luta de indígenas e quilombolas, dando espaço à cultura destes povos, como nas letras e poesias do cotidiano

Há 10 anos Diego Orix Farias comprou sua primeira câmera e nunca mais parou. Apaixonado por arte e música, o cineasta lançou no último mês ‘Rios’, documentário que conta histórias do interior da Amazônia e a relação única que os povos da floresta possuem com a música, transformando seu dia a dia em versos, canções e poesia.

Pelas curvas dos rios Tapajós, Amazonas, Arapiuns e Jauari, o curta-metragem traz relatos de artistas paraenses quilombolas e indígenas que misturam arranjos eletrônicos e urbanos com os mais diversos ritmos tradicionais da região.

‘Rios’ é narrado pelo cantor de estilo popular amazônico pop, Felipe Cordeiro, que navega pelas comunidades ribeirinhas mostrando que não é apenas nos grandes centros urbanos que está presente a musicalidade.

O projeto é uma produção do coletivo Várzea Wave, do qual Diego Farias é cofundador, um coletivo sem fins lucrativos que tem o objetivo de reunir artistas amazônicos da nova geração para a produção de obras audiovisuais com a proposta de fortalecer o cenário regional e ribeirinho.

Em entrevista à Amazônia Latitude, o diretor fala sobre sua trajetória, seu mais recente trabalho, o desafio de dar visibilidade a artistas que não tiveram a oportunidade de mostrar seu talento e desmistifica a ideia de que as músicas tradicionais estão ligadas ao passado.

Você poderia contar um pouco da sua carreira, trajetória e como começou no cinema?
Minha história no cinema começa quando eu tinha 27 anos. Montei uma produtora de vídeos e trabalhei com pequenos vídeos institucionais e eventos sociais. Com o tempo, fui comprando equipamentos e me apaixonando por cinema. Depois, fiz filmes maiores e montei o projeto Várzea Wave, que é um projeto musical audiovisual. Trabalhei antes com cinema, editando filmes como o documentário “Beyond Fordlândia” (muito além da Fordlândia) e assim estamos nessa vida há 10 anos.

Diego Orix Farias segura uma câmera e veste uma camiseta do exército

Diego Orix durante as filmagens do curta Rios (Thásya Barbosa)

Qual é o objetivo do projeto Várzea Wave?
Quando montei o Várzea Wave, a ideia foi reunir e divulgar os artistas da região que produzissem musicais, audiovisual, danças e teatro para montar obras que fossem colaborativas entre esses grupos. Dessa união, produzimos videoclipes e obras cinematográficas para artistas com a participação de dançarinos, bailarinos e outros profissionais que quisessem participar. Nós conseguimos montar um primeiro videoclipe. O segundo tivemos duas músicas que produzimos. Devemos voltar a gravar, quem sabe no final do ano quando retorno para Santarém. Rios é uma continuidade desse trabalho pois traz a realidade de artistas musicais que estão ali nas comunidades e isso engloba o que a gente pensou para o projeto.

O documentário ‘Várzea Wave: Rios’ conta a história de personagens que vivem em comunidades nas margens dos rios Tapajós, Amazonas, Arapiuns e Jauari e suas experiências musicais cotidianas. Como foi esse processo de criação e produção do documentário?
Estava filmando um outro documentário que falava sobre saúde nas comunidades ribeirinhas. Nesse projeto visitei vários coletivos quilombolas e indígenas que sempre apresentavam alguma coisa para a gente. Foi quando percebi que tinham essas pessoas fazendo cultura e comecei a pesquisar.

Um tempo depois, em Arapiuns, filmei a inauguração de um centro de artesanato e lá encontrei ‘seu Juvenal’, que morava em outra comunidade. Já o conhecia porque ele havia enviado um vídeo para um Festival de Música que ocorreu de forma remota. Quando bati o olho nele, eu já sabia quem era.

Chamei ‘Seu Juvenal’ para conversar e pedi pra ele cantar um pouco a música ‘puxirum da farinhada’. Aliás, essa voz é a que eu uso no filme. Uma gravação feita na beira da praia de forma despretensiosa que depois editamos com arranjos e instrumentos. Depois disso, montamos o projeto e inscrevi no edital da Lei Aldir Blanc para captar recursos. Assim foi que conseguimos viajar pelas comunidades e gravar o curta.

Juvenal, homem negro, veste uma regata rosa e um chapéu branco, sorrindo

O compositor santareno de Aminã, no rio Arapiuns, Juvenal Imbiriba é o primeiro personagem retratado no filme.(Thásya Barbosa)

Como foi se deparar com esse universo dentro dessas comunidades, com tantas histórias e criações de músicas a partir das experiências de vida desses personagens?
Uma coisa é você ver um artista que canta música dos outros e do mercado. Outra completamente diferente é você ver alguém que está escrevendo as músicas, compondo e falando de um cotidiano. Sejam coisas banais da vida ou proteção à natureza e à resistência e era isso que mais me chamava atenção. Gostaria de ter focado em uma história ou outra, mas acabei englobando todos nesse projeto. Devo futuramente fazer um videoclipe de cada um deles. Gosto de fazer isso para difundir porque acaba que o cinema atende a um tipo de público, mas o mais popular se interessa mais pelo videoclipe e música que é uma maneira de ajudar mais o artista localmente.Tenho essa vontade de continuar fazendo isso com eles e me focar mais nesse seguimento de videoclipe.

Quais foram as principais dificuldades logísticas para produzir o documentário?
A principal dificuldade é a distância porque esses locais não têm estradas e não dá pra ir de carro. Chegar no Arapiuns, por exemplo, foi difícil porque tivemos que alugar um barco e choveu um dia inteiro. Até pensamos que não daria pra filmar. Quando vimos que a chuva não ia cessar, resolvemos filmar logo começando pelo roçado do ‘seu Juvenal’. O pessoal da comunidade acabou nos levando em motos que eram utilizadas para o roçado e foi uma experiência interessantíssima.

Já para chegar em Jauari, foi um pouco mais complicado. Tivemos de viajar para a cidade de Oriximiná em uma balsa que saia de Santarém às sete da noite para chegar na manhã do dia seguinte. Depois, pegamos uma lancha com um rapaz da comunidade do Jauari e navegamos pelo rio Erepecuru.

Inclusive, quando voltamos de lá, enfrentamos uma chuva muito forte. Eu encarei tudo como uma experiência positiva. Foi incrível sentir a força da natureza, claro que foi perigoso, mas deu tudo certo.

Um homem negro forte, vestindo uma camiseta branca, sorri em pé

No quilombo do Jauari, próximo da cidade de Oriximiná, os artistas criam seus próprios instrumentos com os materiais que existem na natureza. (Thásya Barbosa)

Você acredita que a música paraense já foi bem difundida?
A música paraense teve um boom entre 2009 a 2011. Foi nessa época que surgiu Gaby Amarantos, que acabou tendo uma música na abertura de uma novela. Então, durante esses anos a música paraense foi bem difundida no país. Se você escuta música pop brasileira alternativa, você está ouvindo algo que saiu do Pará. Hoje ela está bem assimilada nacionalmente, virando uma coisa brasileira. Agora a gente deve continuar e quem sabe acontece um renascimento ou um novo movimento de música paraense.

O que falta para outros artistas também terem oportunidades?
A primeira coisa que falta é a pessoa ser artista e colocar isso na cabeça dela. O ‘seu Juvenal’, por exemplo, tem muito isso. Às vezes falta isso para outras pessoas que estão ali atuando, mas ainda de forma muito tímida. Vejo isso no ‘seu Juvenal’. Ele é um artista. Claro que para ter isso é preciso incentivo que pode vir da comunidade. Quando a gente começa a fazer esses trabalhos nesses locais, as pessoas do convívio começam a respeitar mais o artista local. Então divulgar esse trabalho ajuda a comunidade a apoiá-los. E isso é o mais importante. Ter pessoas próximas que apoiem.

O que você espera conseguir com o lançamento do filme no Brasil?
Espero que as pessoas conheçam esses artistas e isso já está acontecendo. Por exemplo, o Filipe vai tocar numa festa tradicional lá em Santarém em que o público é mais de fora. Ele vai tocar a música da farinha do ‘Seu Juvenal’ e vai encaixar no show dele. Isso é o que eu espero que aconteça. Que esse público que o Felipe está atendendo, que é o de fora, veja também esses artistas. Conheçam, apoiem as causas, as lutas de indígenas e quilombolas. O objetivo está sendo alcançado aos poucos.

Qual a sua opinião sobre o espaço dado à difusão das causas indígenas e quilombolas na televisão?
O espaço dado é o mínimo possível. Hoje nós temos um conflito de interesses. Como a causa indígena geralmente entra em conflito com os grandes produtores agrícolas, mantém-se esse conflito e, de certa forma, isso diminui o espaço deles na mídia. Você vê a TV diariamente mostrando e propagando o agronegócio. Aí você fica pensando ‘Será que esses veículos vão mostrar essas causas?’ O espaço dado é só o mínimo. Nós mesmos temos que criar nossos espaços.

Qual a importância de ter cada vez mais exposto na mídia o trabalho de artistas indígenas e quilombolas?
Acho que é importante você mostrar a cultura das pessoas antes das suas lutas. Geralmente você mostra a luta em um filme. Nesse curta, nós falamos da cultura e nas letras das músicas você escuta o cotidiano e a vida das pessoas. É uma forma diferente de alcançar mais as pessoas e humanizar os personagens. A gente mostra que a pessoa gosta de música, faz música e que essas letras falam das lutas, de território, do dia a dia e como resistem ao grande capital. A cultura está em xeque e elas precisam resistir se não daqui a um tempo vai acabar.

Como você avalia que o documentário pode ajudar na ampliação desse debate?
Acho que o documentário serve como uma introdução a esse debate dos povos. Nós não tentamos explicar e colocar outras pessoas pra falar por eles como estudiosos. Serve como uma introdução para conhecer essas comunidades e esses povos. A partir do momento que as pessoas conhecem a cultura, vivências e lutas para manter a cultura deles, isso pode ampliar o debate e trazer mais pessoas para ajudar na causa, que é também o nosso objetivo. No futuro, a gente quer continuar fazendo mais coisas e nesses projetos encontrar outros parceiros para ajudar essas comunidades.

Assista ao trailer de ‘Rios’

O filme completo pode ser encontrado aqui

Capa Varzea Wave Rios. Um barco singra por um rio

Varzea Wave Rios (2021)
Direção: Diego Orix Faria
Produção: Marcos Colón
Direção de fotografia: Bruno Erlan
Direção de arte: Thásya Barbosa
Som: Diego Orix Faria
Onde assistir: Youtube

A foto de destaque é da fotógrafa Thásya Barbosa

 
 

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