O Mito da Amazônia: reflexões sobre como quebrar o ciclo de exploração

flores laranjas, amarelas e azuis na Amazônia
A ocupação predatória da região amazônica criou e perpetua gargalos no entendimento do que ela realmente é. Sua sobrevivência depende da descolonização do olhar

A ambição do barão da borracha Carlos Fermín Fitzcarraldo o levou a completar um dos feitos mais delirantes da história moderna. Explorando as profundezas da floresta amazônica durante a década de 1890, o filho de irlandês descobriu um tesouro escondido: um aglomerado de seringueiras (as infames Hevea brasiliensis), intocadas na região de Madre de Dios, no Peru. O país, assim como o Brasil, estava passando pelo boom da borracha, o que fazia do látex sinônimo de riqueza. Se as exportações peruanas do produto eram de 3.000 toneladas por ano nos anos 1860, passaram a 44.000 toneladas até 1911 — no Brasil, apenas 1 tonelada era exportada em 1850, passando para 42.000 em 1912, ou 25% de todo comércio exterior1. A Amazônia virou um Eldorado mundial. O pirata Fitz, portanto, não pouparia esforços para desenterrar seu precioso tesouro e aproveitar seus rendimentos ao máximo.

Para ter acesso à região, isolada por perigosas corredeiras no Rio Caspajhali, ele navegou contra a corrente nos rios Amazonas e Serhali, pagou 200 seringueiros para escavar um caminho de 13 quilômetros por cima de uma montanha entre as duas bacias hidrográficas, e depois obrigou 1.000 indígenas escravizados do povo Yine a transportar o Contamana, seu navio a vapor de 30 toneladas, pela trilha. Conhecido posteriormente como o Istmo de Fitzcarraldo, o caminho por terra conectou Iquitos ao Puerto Maldonado (e, por extensão, à Bolívia) para o comércio da borracha. O preço: a vida de centenas de indígenas, constantemente ameaçados de tortura pelo barão da borracha e sua companhia. Mas foi tudo por nada. Como uma tragédia grega — ou, no caso, amazônida — o explorador se afogou em 1897, com apenas 35 anos, quando o Contamana afundou no Amazonas2.

Cerca de 85 anos depois, o premiado diretor de cinema alemão Werner Herzog estreou o filme “Fitzcarraldo” (1982), inspirado na façanha de Carlos Fermín. O protagonista, contudo, não era um aterrorizante barão da borracha que escravizou milhares de indígenas enquanto enchia os próprios bolsos exportando látex, mas um amante das artes chamado Brian Sweeney Fitzcarraldo, cujo sonho era instalar uma casa de ópera na cidade peruana de Iquitos (à moda do Teatro Amazonas, de Manaus). Já falido devido ao empreendimento anterior de uma estrada de ferro Trans-Andina, ele se rende ao ouro líquido da Hevea brasiliensis para angariar fundos para o seu projeto, apelando ao mesmo plano mirabolante do Fitz original. Ele completa o feito, mas não consegue implementar o cultivo da borracha e é forçado a vender sua navegação — não sem antes montar um espetáculo com o tenor italiano Enrico Caruso sobre as águas do Amazonas.

À moda Herzog, a produção realmente arrastou um barco a vapor de 320 toneladas pela crista de uma montanha, com a participação do povo Aguaruna. Assim como a história que retrata, a equipe também foi afetada por inúmeros ferimentos, incluindo um caso de paralisia por queda de avião e mortes de vários figurantes indígenas. Neste estranho caso de vida-imitando-arte-imitando-vida, o diretor alemão foi acusado de explorar povos locais durante as filmagens, como o próprio Fitzcarraldo. Tudo pela sétima arte, certo? (Herzog ganhou o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes de 1982, entre outras condecorações, devido à controversa produção).

Todas estas narrativas são unidas por um denominador comum. Tanto Fitz histórico e Fitz personagem quanto o diretor de cinema são estrangeiros no meio da floresta amazônica, tentando impor seu olhar estrangeiro ao ambiente e àqueles que nele habitam. Um povo indígena ou uma comunidade ribeirinha jamais teriam visto sentido em transpor uma embarcação mastodôntica de um rio ao outro tirando um pedaço de montanha de modo a aumentar a lucratividade de um empreendimento. Afinal, como diz o líder yanomami Davi Kopenawa, os brancos são o “povo da mercadoria”: pessoas que se definem pelas coisas, transformaram seus meios em fins3. E o resultado dos empreendimentos desses estrangeiros é, sem falha, o desastre. A desgraça não recai apenas sobre a região, mas também sobre os próprios exploradores, porque estão cegos e surdos para o que é a Amazônia.

No filme alemão, quando o navio parte em direção ao seringal, Molly, a esposa do protagonista, se vangloria: “É isso mesmo. Brian Sweeney Fitzcarrald está indo contra o Amazonas”. De fato, tanto ele quanto seu homólogo na história e Herzog foram contra o Amazonas e a Amazônia. Forçaram suas visões de mundo para dentro de uma região que nada tem a ver com Irlanda, Alemanha ou óperas italianas. Foi assim desde sempre, é assim hoje. “A Amazônia inaugurava-se para o Ocidente numa linguagem que a furtava inteiramente e que preferia a alternativa de uma convenção quase sempre arbitrária”, escreve o jornalista e romancista manauense Márcio Souza, referindo-se à conquista do Brasil.

A começar pelo nome. Em 1541, o frei Gaspar Carvajal acompanhou o explorador Francisco de Orellana e mais 57 soldados na primeira travessia do Rio Amazonas por europeus. A viagem, que levaria oito meses, foi uma sequência de desventuras, cujo principal motivo era a falta de conhecimento da área pelos estrangeiros. Em uma região que concentra 20% da fauna planetária4 e onde são encontradas 50 espécies de peixe em uma transecção de 150 metros de um pequeno igarapé (equivalente a todas as espécies da Dinamarca), o maior inimigo dos colonizadores era a fome. “À falta de outros mantimentos […] chegamos a tal extremo que só comíamos couros, cintas e solas de sapatos cozidos com algumas ervas, de maneira que era tal a nossa fraqueza, que não nos podíamos ter em pé”, escreveu o frei em relato. Em certo ponto, a expedição deu-se com uma comunidade indígena que tentou atacá-los, e foi com as seguintes palavras que Carvajal entrou para a história: “[…] e foi servido Deus que, dobrando uma ponta que o rio fazia, víssemos alvejando muitas e grandes aldeias ribeirinhas. Aqui demos de chofre na boa terra e senhorio das amazonas.”5

A hipótese é que, dominado pela fome e condicionado por seu repertório cognitivo europeu, Carvajal tenha confundido homens amazônidas de cabelos compridos com integrantes da antiga nação de mulheres guerreiras da mitologia grega. Mesmo se ele estivesse apenas fazendo uma analogia, a região na América do Sul foi batizada com um nome que resultou de uma ilusão de ótica, ou de uma interpretação equivocada, de um estrangeiro. Continua João Moreira Salles: “[…] Desde o primeiro momento, esteve aí a dificuldade que iria amaldiçoar a floresta, nessa incapacidade do forasteiro de vê-la em termos próprios, tal como ela é, não como ele queria que fosse.”

Carvajal não só viu o que queria ver, mas o que já conhecia. Assim o fizeram Fitzcarraldo, Herzog, e tantos outros exploradores depois, como Henry Ford, Daniel Ludwig e o próprio governo brasileiro. Desde sua primeira invasão, a Amazônia nunca conseguiu se desvencilhar desse olhar estrangeiro que impregna a forma como o mundo enxerga, interpreta e comunica sobre a região até hoje. Nasceu de um mito importado e permanece mito até hoje, insólita. E as fábulas que se contam sobre a maior floresta tropical do mundo, ora inferno verde infestado de doenças e animais selvagens (como escreve Euclides da Cunha em “À Margem da História”: “Aquela natureza soberana e brutal, em pleno expandir das suas energias, é uma adversária do homem”), ora Éden habitado por povos puros de moral e alma, perpetuam sua condição de inferioridade em relação às outras partes do Brasil: sempre a colônia, sempre o quintal.

“A Amazônia não existe”, declarou Ailton Krenak, prosaico. “Quando tentamos apanhar um punhado de areia bem fina na praia, os grãos escorrem entre os dedos e se espalham com o vento. A mão se abre, e não tem mais nada lá. Isso é a Amazônia. É uma colagem de signos, sentidos, significados. Como a areia, ela paira sobre a nossa ideia de mundo material e flutua”, completou.

Durante todo o período colonial, a Amazônia não teve quase nada a ver com o país. Funcionava quase como nação autônoma. Inclusive, antes da invenção do vapor, era mais rápido ir de Belém a Lisboa do que de Belém ao Rio de Janeiro. É com a onda de cientistas viajantes que começa a ser consolidado o persistente mito de que a Amazônia é um vazio demográfico, hostil aos homens civilizados, habitada por povos primitivos, sem política ou cultura. Depois, tanto no período democrático quanto na ditadura, seu valor foi atrelado não à pujante biodiversidade, mas à quantidade de floresta derrubada. Abandonou-se a característica intrínseca da região, trocada por seu exato oposto: anti-floresta. O valor de terrenos era determinado pelo conceito VTN, o Valor da Terra Nua: quanto mais desnuda fosse, mais valiosa era. A ocupação e comunicação sobre a região foi regida por pessoas cegas ao seu potencial e funcionamento, que viam o que havia de mais valioso como um estorvo.

Isso se perpetua até hoje nas atividades da indústria de minérios, energia, madeira e agropecuária. Recorrendo mais uma vez à explicação de João Moreira Salles: “A Amazônia foi sempre chamada a suprir as carências do Brasil. Projeta-se nela o que falta no resto do país: terra para gente excluída, pasto barato para boi que perdeu espaço no Sul, energia para os grandes polos econômicos e para pessoas que, em sua imensa maioria, vivem em outro lugar.” Entre ser ignorada e explorada até o talo, este parece seu destino manifesto.

“Mesmo sendo constituída pela maior floresta tropical do mundo (com um terço da mata remanescente), a maior de todas as bacias hidrográficas e a presença humana remontando a mais de 10.000 anos, a Amazônia, nessa bitola colonial, seria um ‘espaço vazio’.”6 Sua narrativa, seja o panorama a longo prazo dos historiadores ou os informes correntes de jornalistas, foi sumariamente registrada por brancos de metrópole, fragmentada. Não é à toa que o conhecimento que se tem sobre a Amazônia é, desde sempre, insuficiente e distorcido. Fala-se de lá como um bloco único, um monolito, um bairro. Fala-se do ecossistema como uma coisa só. Fala-se dos povos da floresta como um grande aglomerado uniforme, “índios”. Denúncia de um preconceito enraizado.

A verdade é que não há uma, mas várias Amazônias. E mesmo que seja relegada, seu potencial está guardado. “[…] é um espaço em que a humanidade pode aprender um pouco mais sobre si mesma. […] Como um útero prolífico, essa região guarda mais biomassa que qualquer outro habitat da terra. É de longe o mais rico ambiente terrestre, e ficou praticamente intocado desde os tempos pré-históricos. Andar em certas partes da área equivale a saber como era o nosso planeta 70 milhões de anos atrás, e foi na Amazônia que há 120 milhões de anos, durante o período Cretáceo, as primeiras flores se abriram”, escreve Souza. A Amazônia também abriga 8% da água superficial doce e um terço das florestas tropicais do planeta, além de abranger 60% do território nacional brasileiro7. Se ela sumisse, por mágica ou por consequência das mudanças climáticas, o estado de Goiás, o norte do Mato Grosso, o norte da Bahia e boa parte do Sudeste brasileiro perderiam até 1,8 mm de chuva por dia, e choveria em média 25% menos no país — deixando o agronegócio de joelhos8.

Por isso, quem comunica sobre a Amazônia está diante de um desafio incomum. Ao mesmo tempo que é extremamente importante para o funcionamento do Brasil e do mundo — além de importante em si —, a região é historicamente ignorada pela população e pelos governantes. Mesmo nas próprias políticas públicas voltadas especificamente para lá, já que 1) o Estado brasileiro nunca teve uma agenda para a Amazônia (apenas na Amazônia, com base nos interesses de desenvolvimento sob a lógica capitalista industrial); 2) a ignorância acerca do território ainda é extensa e fica impossível gerir o que não se mede ou estuda; e 3) não se interessa pelo melhor modelo de desenvolvimento para o bioma, preferindo continuar dando murro em ponta de faca. Neste ínterim, a mídia luta para fazer uma boa cobertura desta região relegada e cheia de nuances. Por enquanto, está falhando.

Primeiro, porque o território em questão está fora do eixo Rio-São Paulo-Brasília. Qualquer lugar que não esteja neste umbigo do mundo já recebe menos atenção, especialmente o Nordeste e o Norte. Enquanto há enorme preconceito contra nordestinos e alguns brasileiros dizem que o mapa ideal do Brasil não contaria com a região, a piada com o Norte é que “o Acre não existe”. Discriminação e apagamento, dois lados de uma moeda cruel. Segundo, principalmente nos últimos tempos de passaralhos e enxugamento de redações, o investimento para fazer reportagens na Amazônia caiu vertiginosamente. O jornal O Estado de São Paulo, por exemplo, durante os anos 1970 e 1980, montou na região uma rede de cair o queixo. Incentivado pelo jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, destacado pela ONG Repórteres Sem Fronteiras como um dos mais importantes do mundo, Júlio de Mesquita Neto instalou um correspondente em cada capital da Amazônia Legal—conceito político que engloba regiões com problemas socioeconômicos semelhantes, não se confunde com o bioma Amazônia (49% do território) e abarca também 20% do bioma do Cerrado e do Pantanal mato-grossense — e uma sucursal em Belém, no Pará. Hoje, a rede se foi.

O faturamento dos jornais brasileiros cai desde o início dos anos 2000, de acordo com o projeto InterMeios, do portal Meio & Mensagem. A tendência perdurou até, pelo menos, 2014, quando o projeto foi descontinuado — em cruel metalinguística9. O ano de 2018 ficou marcado pela demissão em massa no Grupo Abril, quando 800 funcionários e 200 freelancers foram desligados de uma só vez, com o encerramento de várias revistas10. O projeto “A Conta dos Passaralhos” (corte de funcionários na atividade jornalística), da agência Volt Data Lab, contabiliza 2.327 demissões de jornalistas nas redações de 2012 a agosto de 2018, quando foi feita a última atualização. Foram 7.817 demissões totais em empresas de mídia durante o mesmo período11. A cada 10 brasileiros, três ainda vivem em municípios classificados como “desertos de notícias” — que não têm a presença de veículos jornalísticos — ou “quase desertos” — municípios que têm apenas um ou dois veículos.

A Região Norte é a mais afetada, com 69,8% dos municípios classificados como “desertos”12. Um dos únicos correspondentes fixos de um grande jornal brasileiro remanescentes é o repórter Fabiano Maisonnave, da Folha de São Paulo. A grande imprensa se distanciou da região e são raros os casos de amazônidas falando ao Brasil sobre seu lar, dando continuidade ao olhar estrangeiro. Ela não é dona de sua história.

Em terceiro lugar — e tirando um pouco da reta a responsabilidade das redações —, o Estado não exatamente facilita a atuação de comunicadores na Amazônia. Longe disso. Com o poder público ausente, o espaço se abre para outros poderes que tomam conta da região. De grandes empresários pecuaristas a jagunços do garimpo, essas forças alternativas exercem sua influência de acordo com os próprios interesses, ameaçando o trabalho e a integridade física de funcionários de ONGs, jornalistas, lideranças indígenas, cientistas, documentaristas, fotógrafos e demais locutores e interlocutores da região. A situação piorou ainda mais depois que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, em 2019. Com quatro meses de cargo, por exemplo, manifestou-se contrário à queima de caminhões e tratores usados por criminosos para derrubar floresta, apesar do procedimento ser previsto por lei. Entre a ordem e a desordem, o governo amiúde prefere a segunda, favorecendo garimpeiros, invasores de terras indígenas, desmatadores.

A quantidade de multas aplicadas pelo Ibama no primeiro bimestre de 2019 foi a menor em quase 25 anos13. O desmatamento (que já vinha subindo aos poucos desde 2014) cresceu 34% de agosto de 2019 a julho de 2020 em comparação com o mesmo período anterior14. O governo também propôs a criação de um marco regulatório para controlar 100% das ONGs que atuam na região, muitas vezes responsáveis por suprir a ausência do governo e fiscalizar atores com interesses próprios. Não é à toa que o Brasil viu outro indicador disparar ao lado desses: em 2020, a violência contra jornalistas aumentou mais de 105%15. Desde 2005, houve ao menos 48 registros de violência contra jornalistas na Amazônia Legal. Entre os incidentes, estão ao menos seis assassinatos (três deles no Maranhão) e 14 casos de agressão física. Em 2019, houve ao menos duas ocorrências de violência16.Comunicar sobre a Amazônia não é apenas difícil, mas também arriscado.

O quarto fator é, talvez, o mais contra-intuitivo. Era de se esperar que o aumento das discussões sobre clima afetassem a maneira como se fala e se reporta sobre a Amazônia. Em 2015, uma pesquisa do Pew Research Center analisou dados de 40 países e revelou que 54% dos entrevistados achavam que mudanças climáticas eram um problema “muito sério”17. Cinco anos depois, o relatório anual de notícias digitais do Instituto Reuters da Universidade de Oxford passou a incluir o questionamento, e os resultados mostraram um aumento significativo na preocupação com a crise climática. Com base em mais de 80.000 entrevistas em janeiro e fevereiro do ano passado, a pesquisa revelou que 70% do mundo considera as mudanças climáticas “um problema muito ou extremamente sério”, sendo que menos de 3% disse que a questão não era nem um pouco séria.18

De forma semelhante, a mídia acompanha a tendência, dando cada vez mais importância à pauta climática. Já em 2007, o tema tornou-se relevante na cobertura de jornais, revistas e portais jornalísticos ao redor do mundo19. No Brasil, o efeito das mudanças climáticas na Amazônia também tem se feito mais presente nas manchetes, especialmente desde que Bolsonaro, negacionista dos perigos do aquecimento global, chegou ao poder. De certa forma, isso aumentou a inclusão da região no noticiário e no discurso circulante. Contudo, também significou um tiro no pé.

As ameaças à Amazônia resultantes da exploração e das mudanças climáticas se manifestam de forma sazonal — o que não quer dizer que o problema seja sazonal. O maior exemplo disso são as queimadas na região. Em 2019, ano que o assunto explodiu nas redes (tornando-se o assunto mais comentado na história do Twitter brasileiro, depois apenas do impeachment da ex-presidente Dilma Roussef e da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de acordo com pesquisa da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas)20, dezenas de jornalistas de todo o Brasil correram para filmar, fotografar e escrever sobre a tragédia, heroicamente aspirando fumaça e queimando as solas dos pés. “A Amazônia está pegando fogo”, exclamava o Jornal Nacional.
E depois, silêncio de novo.

Que Amazônia é essa? Que tipo de fogo? Alguns veículos até avançaram na discussão e responderam essas perguntas, mas depois se ausentaram novamente da região (até a próxima queimada, até a próxima tragédia). Então mesmo quando é dada importância para o que está acontecendo nesta área que ocupa 60% do território brasileiro, perpetua-se o exotismo, o mito, porque não há continuidade da cobertura. A Amazônia foi reduzida ao tema ambiental de forma superficial e perderam-se as nuances. É isso que o resto do país absorve. Quem sabe, postem no Twitter #rezempelaamazonia. Depois bloqueiam a tela do celular e, com ela, qualquer interesse pelo tema.

Muitos fatores históricos contribuem para a falta de informação e a desinformação sobre a região amazônica que se perpetua até hoje. A principal consequência desses buracos é que, mantendo-a mitológica, fica impossível protegê-la para que se consolide como o que realmente é. Fica impossível descobrir o que realmente é. Uma divulgação mais clara e eficiente tem o potencial de, se não reverter, diminuir o abismo cognitivo em relação à Amazônia e beneficiar a região.

Como começar o trabalho para desconstruir o mito?

Uma coisa é certa: é impossível comunicar-se sobre a Amazônia sem entendê-la, e é impossível entendê-la sem uma vivência profunda do território. Trabalhar na região por alguns (muitos) meses. Mudar-se para um dos estados que o bioma amazônico ocupa. Nascer amazônida. Em 2019, Eliane Brum, jornalista premiada recém-mudada para Altamira, no Pará, fez um discurso no primeiro encontro do Rainforest Journalism Fund, chamado “A Amazônia é o centro do mundo”. Além de traçar críticas cirúrgicas ao governo de Jair Bolsonaro, em especial a Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente (ou melhor, anti-ministro do Meio Ambiente, agora substituído pela cara-metade, Joaquim Pereira Leite), definindo o projeto de governo como uma tentativa de “converter as terras públicas que servem a todos, na medida em que garantem a preservação dos biomas naturais e a vida dos povos originários, em terras privadas para lucros de poucos”, defendeu que é necessário mudar o ponto de vista a partir do qual olhava para o país e o planeta, porque aquela floresta é o centro do mundo. “[…] Essa não é uma frase retórica. Também não é uma tentativa de construir uma frase de efeito. No momento em que o planeta vive o colapso climático, a floresta amazônica é efetivamente o centro do mundo. Ou, pelo menos, é um dos principais centros do mundo”21.

Para ela, que mudou-se para o Pará para deixar de ser “enviada especial” à Amazônia — sempre retornando a Porto Alegre, primeiro, e depois para São Paulo —, Manaus é reflexo do Brasil, uma escultura viva do conflito iniciado em 1500, “tanto uma floresta em ruínas como as ruínas de uma ideia de país”. Afinal, o Brasil nada mais é que um grande construtor de ruínas, e “se existe uma verdade ela está nas ruínas”.

Aqui, na Amazônia, se você come boi, tem certeza que é boi de desmatamento. Se você compra madeira, sabe que (quase) não existe madeira efetivamente legal no Brasil. Se você compra uma mesa ou um guarda-roupa vai ficar olhando para esses móveis e pensando que muito provavelmente eles foram feitos com madeira arrancada de terra indígena ou de uma reserva extrativista. Aqui, no centro do mundo, a relação com a morte da floresta e dos povos da floresta, assim como com a morte dos agricultores familiares, é direta. É inescapável. E só podemos viver carregando — conscientemente — tanto nossas contradições quanto nossas ruínas
Eliane Brum. A Amazônia é o centro do mundo. EL PAÍS, 9 de agosto de 2019.

É ignorância acreditar que a Amazônia é periferia, que para ser superada é preciso esforço árduo e diário. A resposta está na construção conjunta com as populações locais, os povos da floresta. Jornalistas, cientistas e outros comunicadores precisam deixar de usá-los apenas como fontes de trabalho, ou de colocarem-se em posição de heróis com o dever de ajudá-los. Não é nada disso: “estamos aqui para, humildemente, perguntar se eles nos aceitam ao seu lado na luta. Somos nós que precisamos da ajuda dos povos da floresta. É deles o conhecimento sobre como viver apesar das ruínas. […] Para que tenhamos alguma chance de produzir movimento de resistência precisamos compreender que, nesta luta, nós não somos os protagonistas”, declarou Brum.

Ailton Krenak escreveu de forma bem-humorada sobre isso em “Ideias para adiar o fim do mundo”: “Em 2018, quando estávamos na iminência de sermos assaltados por uma situação nova no Brasil, me perguntaram: ‘Como os índios vão fazer diante de tudo isso?’. Eu falei: ‘Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa’. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos.”

Para resistir e reinventar a forma de comunicar-se sobre a Amazônia, é preciso “nos tornar floresta — e resistir como floresta”, como disse Brum. Uma floresta que carrega consigo tanto o que é quanto o que deixou de ser. A proposta é a descolonização: desta vez, nos deixarmos ocupar, não com a violência com a qual a Amazônia foi ocupada, mas como mistura. Será um processo longo, afinal, faz pouco tempo que se olha para este centro do mundo. Arbex Júnior localizou as primeiras aparições da região Norte na mídia ainda no final da primeira metade do século 1922, momento do ciclo da borracha.

Contudo, a importância da Amazônia para o projeto de crescimento e amadurecimento da nação brasileira, assim como para a busca de definição de uma caracterização histórica e cultural para o país, se faz evidente. E embora transformar o mundo não seja possível apenas com uma reportagem, uma pesquisa, nem mesmo ao longo da duração de uma vida, a esperança é de que o conjunto de todas as obras possam produzir alguma mudança. Juntos. Na Multiplicidade. Quem sabe seja preciso até fazer uma pequena exceção às utopias, em falta nestes tempos difíceis. Como escreveu Claude Lévi-Strauss: “Se os homens se dedicaram apenas a uma tarefa, que é construir uma sociedade vivível, as forças que animaram nossos distantes ancestrais estão igualmente presentes em nós. Nada é definitivo; podemos tudo recomeçar. O que foi feito e falhou pode ser refeito.”23

Referências

Foto destaque de Bianca Piyako (Amazônia Latitude)
Este ensaio é inspirado no trabalho de conclusão de curso: O Mito da Amazônia. Acesse o texto neste link

 
 

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