Por uma ecoética do cuidado baseada nas mulheres da floresta

grupo de mulheres indígenas em pé lado a lado

A vivência das mulheres na Amazônia compõe um extraordinário repertório de cantos que fazem pulsar uma poética da floresta, com seus trabalhos e práticas sociais que nos permitem pensar numa estética autopoiesis. O poético lenteia no próprio viver, nos seus modos de vida, no cotidiano vivido, no coração da mata amazônica. A natureza intuitiva da poética, com seu verniz ecológico do ato de viver a vida, está presente no mundo prosaico da selva. O poético entoa o seu canto com luminosidade, embora, no caso das mulheres, essa luminosidade não as alcance com maior densidade no campo das ciências e da sociedade de modo geral.

Estamos falando das mulheres da floresta, aquelas da Amazônia profunda, que ficaram à margem, na sombra ou no subsolo do conhecimento e do pensamento ocidental (TORRES, 2005). De acordo com esta autora, “a própria ciência se encarregou de legitimar o preconceito e a discriminação em relação às minorias sociais, inclusive as mulheres, na medida em que busca fundamentar a negação do outro” (TORRES, 2005, p. 79). É bem recente o fato de as ciências terem voltado o olhar para as mulheres, sobretudo na Amazônia, onde envidamos esforços para visibilizá-las em nossas pesquisas. Essas mulheres têm histórias que precisam ser contadas, registradas, publicadas. Se elas não vierem à luz do conhecimento, não é história.

O pensamento poético é a maneira particular pela qual a pessoa se inventa, a forma como vê o significado nas coisas, sua forma de sentir, de pensar, de compreender, de ler, de ver e de viver (TORRES, 2005). Em Bachelard (1974), a poética evoca imagens, lugares, canteiros, pomares, bosques, porão, rios e águas. Dito de outra forma, “nossa alma é uma morada. E quando nos lembramos das ‘casas’, dos ‘aposentos’, aprendemos a ‘morar’ em nós mesmos […]. Voltamos a imagem que, assim como nos ninhos e nos sonhos, exigem que nos façamos pequenos para vivê-las” (BACHELARD, 1974, p. 355).

As mulheres da floresta têm uma conexão profunda com a terra, a floresta, a água como a sua casa, o seu lugar, o seu pertencimento. Uma relação com o eterno feminino, uma força vibracional que vem da sua experiência com a terra, lembrando o cheiro e o tato da sua ancestralidade. Esse cheiro, tato, paladar, visão e audição, que vêm de suas ancestralidades, são evocados nas narrativas, nos mitos, nos arquétipos das aquarelas, dos colibris, das cascatas, do arco-íris. Vêm do eterno feminino, húmus que exala energia de força, coragem, uma espécie de chakra vibracional que ilumina as mulheres e revive nelas as suas ancestralidades. O eterno feminino é uma energia cósmica que vibra nas práticas sociais das mulheres da floresta.

Vandana Shiva (1991) desenvolve um olhar feminista e ecológico para perceber, nessas práticas, um poder e um saber intuitivo das mulheres, que redunda na conservação do meio ambiente e no cuidado para com o planeta — nossa casa comum. É preciso, pois, recuperarmos o princípio feminino dentro de uma amplitude envolvendo a mulher, o homem e a natureza. Ou seja, “recuperar na natureza a mulher, o homem e as formas criativas de ser e perceber. No que se refere à natureza, supõe vê-la como um organismo vivo. Com relação à mulher supõe considerá-la produtiva e ativa” (SHIVA, 1991, p. 77). E prossegue a autora: “e no que diz respeito ao homem, a recuperação do princípio feminino implica situar de novo a ação e a atividade em função de criar sociedades que promovam a vida e não a reduzam ou a ameacem” (IBIDEM, p. 77).

Observe-se que a natureza é vista como um organismo vivo que estabelece conexão com mulheres e homens por meio do princípio feminino. É uma teia que se conecta, como sugere Capra (2004): é algo que está em nós, e nós nela. Esta é a pedra de toque do pensamento ecológico, a linha orientadora da agroecologia, o fio condutor da ecologia de saberes, do perspectivismo, da perspectiva rizomática; enfim, das linhas que nos alinhavam dentro do labirinto, “onde o caminho leva, e o caminhante deve ir para onde quer que ele o leve. Caminhar pelo labirinto […], escolher não é uma questão” (INGOLD, 2015, p. 25).

Essa é uma perspectiva do ecofeminismo genuinamente amazônico, de pertença humana com a natureza. Não é um movimento ou uma escola como nos moldes ocidentais; é uma conexão de mulheres e homens com a natureza em graus ou níveis diferentes. As mulheres exercem um ecofeminismo intenso, uma afetividade de amorosidade com a natureza, visivelmente presente em suas práticas sociais, em sua postura política bem definida no âmbito da defesa da floresta. Mulheres e homens querem a floresta em pé, lutam por justiça ambiental. Uma das mulheres ouvidas para nossa pesquisa, Rosário Macedo (50 anos), liderança da comunidade São Raimundo do Mutuca, mostra que a conservação ambiental advém de sua educação (doméstica) desde menina:

Meu pai passou para mim essa ideia de cuidar da floresta desde pequena. Trabalhar em grupo desde criança sem agredir o meio ambiente. Ele trabalhava com puxirum no trabalho da roça e da agricultura de arroz e feijão. Depois eu casei e comecei a trabalhar em grupo, sempre preocupada com a terra, a floresta (entrevista, 2021)

Morin (2003, p. 25) nos lembra que “os indivíduos conhecem, pensam e agem, segundo paradigmas inscritos culturalmente neles”. A forma como as mulheres se relacionam com o meio ambiente natural mostra que elas têm como ponto de referência suas próprias vidas. Essas referências estão relacionadas aos papéis que elas desempenham na reprodução social, cultural e biológica. E este desempenho de papéis “tem estreita conexão com conceito de equilíbrio que envolve a relação mulher-terra, terra-vida, homem-mulher e homem- natureza” (TORRES, 2009, p. 350). Isto nos remete, também, à ecologia profunda assinalada por Capra (2004).

Um outro sujeito ouvido em nossa pesquisa Jean Rivair (22 anos), da comunidade de São Raimundo do Mutuca, chama a atenção para as práticas agroflorestais que não agridem a floresta, nos seguintes termos:

Tem um sistema agroflorestal que aprendemos com os professores do IFAM, que consiste em fazer com que se produza sem forçar o solo com produto químico. A natureza tem seu próprio tempo. Leva-se em conta a quantidade de sombra que ela precisa. Ou seja, precisamos imitar a natureza para fazer com ela produza mais rápido sem uso químico. Leva-se em conta o foco que se quer, então, deve-se seguir o ritmo da natureza sem agredi-la (entrevista, 2021)

Guattari (2001, p. 25) admoesta dizendo que “mais do que nunca a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar ‘transversalmente’ as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referência sociais e individuais”. Os povos de comunidades tradicionais da Amazônia têm na natureza sua grande referência. “Dir-se-ia que a grande floresta, a terra e os rios representam o ponto de equilíbrio da própria vida do povo” (TORRES, 2005, p.18).

O estilo de vida dos povos tradicionais da Amazônia, mulheres e homens, mas, sobretudo, as ações das mulheres possuem um ethos de especial cuidado com a natureza. De acordo com Boff (1999, p. 135), “esses princípios dão corpo ao cuidado especial com a terra. O cuidado essencial é a ética de um planeta sustentável […]. Só essa ética do cuidado essencial poderá salvar-nos do pior. Só ela nos rasgará um horizonte de futuro e de esperança”. As práticas agroflorestais compartilham princípios do ecofeminismo na medida em que adotam uma metodologia de consciência participativa-cidadã, entrelaçada à perspectiva de perenidade do planeta, mote político do ecofeminismo.

As práticas ecofeministas na Amazônia assentam-se num projeto ético-político bem definido no âmbito da perspectiva agroflorestal, em defesa das nascentes, dos igarapés e da produção de alimentos orgânicos sem agressão à floresta. Assim, o trabalho agrícola qualificado contribui, com uma ação indutora, para dar maior celeridade à terra e à floresta sem uso de produtos químicos e tóxicos, que atingem a saúde humana de forma negativa. Mas não é só isso. Siliprandi (2000, p. 67) chama a atenção para o fato de que “as propostas passam por trabalhos com os consumidores visando a uma readequação de consumo, estímulo à experiência que busquem aproximar os consumidores dos produtos”.

Rosário Macedo, uma das entrevistadas da nossa pesquisa, é enfática ao dizer que “na produção de abelhas que fazemos aqui na comunidade do Mutuca, tem todo um cuidado com a floresta. Nós fazemos o mel e vendemos em Maués sem agredir a natureza” (entrevista, 2021). Observe-se que há uma consciência socioambiental em Rosário e em Jean Rivair, outro informante referenciado nesta pesquisa. A perspectiva da agrofloresta é patente nestas informações, a qual pode ter sido potencializada pelas atividades extensionistas de professores do Instituto Federal do Amazonas na comunidade, mas também pelas relações de pertencimento que os povos tradicionais têm com a natureza.

A ecosofia, como sugere Guattari (2001), é um estudo que envolve o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana. O planeta pode ser visto pela via das relações de gênero. Tudo gira em torno das relações: em última análise, relações entre mulheres e homens e destes com a comunidade, a sociedade, o mundo e a natureza. O zelo para com a natureza é concebido nesta pesquisa como uma ecoética, um ethos, que define a vida dos povos tradicionais da Amazônia. Não é só uma ética do cuidado; é também da afetividade e da amorosidade com a natureza (TORRES, 2015). Jean Rivair nos ensina dizendo que “na derrubada do roçado e roçagem, fazemos um aceiro para o fogo da coivara não invadir para o outro lado do roçado” (entrevista, 2021).

As práticas agroflorestais inscrevem-se no paradigma da sustentabilidade. O manejo, as formas de agrofloresta, o modo como os povos tradicionais da Amazônia produzem a sua existência e o cuidado que eles têm com o meio ambiente determinam a sua qualidade de vida (JACOBI, 2006). Os dados dessa pesquisa chamam atenção para o fato de que os povos tradicionais da Amazônia são os sujeitos centrais no discurso da sustentabilidade. O desequilíbrio ecológico é promovido pela ação antrópica, vinda de fora da região, especialmente pelas forças do capital, que se apropriam indevidamente de suas riquezas naturais.

Deve-se conhecer que a sustentabilidade não é unilateral, possui um duplo movimento. “Um movimento dos povos tradicionais locais que são repositórios dos recursos naturais, fazendo guarda das riquezas em patamares seguros no âmbito do contrato de convivência sociocultural” (TORRES, 2009, p. 354). E um outro movimento do Estado, que deve comparecer com políticas públicas e de proteção. A sustentabilidade supõe a participação de toda a sociedade, pois, como alerta Siliprandi (2000, p. 63), “o intuito é de fazer um convite a todos e todas que compartilham estas preocupações para constituírem esse debate”.

A sustentabilidade é entranhada na vida dos povos tradicionais. É um pertencimento que existe entre eles e a floresta; não está fora de suas vidas. Anderson Brito (39 anos), um dos sujeitos ouvidos em nossa pesquisa, alerta: “a floresta é a nossa vida, eu tenho fé nas ervas. São daqui da nossa floresta que levam as ervas para os laboratórios, e depois os remédios vêm para cá, pra gente comprar (entrevista, 2021). E acrescenta: “é Deus que faz acontecer a cura, mas é a floresta que fornece os meios. Eu ajudo as pessoas com desmentiduras, espinha na garganta, com óleos e ervas, mas não sou eu quem cura, é Deus e a floresta” (entrevista, 2021).

Anderson fala com emoção e vivacidade da floresta, apresentando um sentimento de afetividade e fervor como um princípio vital. Os nativos conhecem bem o solo, a flora, a fauna, a cheia e a vazante dos rios, os períodos secos e chuvosos, os perigos que a mata apresenta. Conhecem ervas, óleos e resinas, grãos, mel silvestre e plantas medicinais. Esta natureza dadivosa vem até os nativos e eles vão até ela numa relação de reciprocidade. Trata-se de uma razão sensível, como alude Maffesoli (1998), que estabelece uma relação de alteridade e reciprocidade com o outro que, neste caso, é a natureza.

A floresta aparece na fala de Anderson Brito como uma dádiva espiritual. Para Strathern (2006, p. 22), “as dádivas são vistas como uma forma de sociabilidade, como o modo de integração societária”. Também Rosário Macedo, liderança da comunidade de São Raimundo do Mutuca, refere-se à floresta como uma dádiva:

A produção de mel de abelha começou com duas colméias trazidas de Boa Vista do Ramos, da Cooperativa Acaiá. Cada colmeia tem cinco mil abelhas. A floresta, a natureza, é tão generosa conosco que deu tanto mel que nós não tínhamos vasilha para colocar. Vendemos bem o mel em Maués. Era o mel que ajudava na sobrevivência, inclusive com a gasolina, para levar as crianças para a escola em Maués (entrevista, 2021).

As energias da Pachamama engendram uma espiritualidade de bem-viver e de pertença dos povos ameríndios com a terra. Pachamama é a Terra, equivalente à mãe, Mãe-Terra. Está associada ao sentido da vida, envolvendo o nascimento e a maternidade. Há aqui uma ontologia de gênero nesta relação mística com a natureza, é a mãe que provê e que alimenta, é uma dádiva espiritual. De acordo com Mauss (2013, p. 27), “antes de tudo, há uma mistura de vínculos espirituais entre as coisas que de certo modo são alma, e os indivíduos e grupos que se tratam de certo modo como coisas”.

As relações das mulheres com a natureza, especialmente com a terra, possuem substrato simbólico vital de fecundidade e natalidade. A terra ou a Pachamama é vida, tem força geradora e criadora, ambas são fecundas e vitais. Pachamama é um conceito inspirado nas culturas andinas dos povos ameríndios, sobretudo dos indígenas bolivianos e peruanos situado no nordeste argentino, incluindo também os indígenas do extremo norte do Chile. É uma herança e um legado dos Incas que sopra espiritualidade para outros países da América do Sul, chegando até às fronteiras amazônicas Brasil/Peru/Colômbia e Brasil/Venezuela.

O ecofeminismo na Amazônia ameríndia encontra amparo no sopro da Pachamama. Neste sopro de vida de uma natureza dadivosa e que recebe dos nativos, especialmente das mulheres, uma reciprocidade, uma pertença de alteridade, no fluxo de uma poiesis. Mulheres e natureza se entrelaçam numa prática poiesis de criação, recriação e autogeração da vida. Envolve uma ética de reciprocidade que altera a percepção e constrói uma aliança das mulheres com o planeta.

Referências

Iraildes Caldas Torres é doutora em Antropologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora Titular da Universidade Federal do Amazonas

 

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