Brasil como máquina de esquecimento da Amazônia

Um moto em movimento. Ao fundo, uma floresta queima.
Queimada, atinge área de ramal às margens da BR-230 (Tranzamazônica), neste domingo 15/08/2021, em Lábrea (AM), o município é o que registra os maiores focos de queimadas em 2021 no Amazonas, em todo estado já são mais de 3260 focos de queimadas entre Janeiro e Agosto de 2021.

Nunca a Amazônia foi tão saqueada e devastada. Ao mesmo tempo, nunca houve tanta gente clamando por sua proteção. Parece haver um descompasso entre as palavras e as coisas, pois essa vontade de proteção esconde uma operação colonial com base na qual a Amazônia sempre foi pensada. Tal operação se explica pela palavra “proteger”, do latim protegere, uma junção do prefixo pro, que significa “à frente”, com tegere, que quer dizer “cobrir ou tapar”. Proteger, portanto, é encobrir o que está à frente.

Esse alerta etimológico não é por acaso. O encobrimento do outro, lembrando os termos de Enrique Dussel1, é um modo de transformar aquilo que é diferente de nós em resultado de nossas próprias pressuposições. Por isso, não nos basta a vontade de proteção. Precisamos, para início de conversa, compreender que qualquer horizonte que desfaça as engrenagens de fogo, fumaça e sangue, que hoje consomem a Amazônia, não se constrói sem o protagonismo dos povos que, por milênios, coevoluíram com essa região.

Muito se tem dito em defesa da Amazônia, mas já se ouviu o que os povos amazônicos têm a dizer sobre isso? Essa problematização nos indica duas ideias que pretendemos aprofundar neste ensaio: o modo como Brasil produziu historicamente formas de encobrimento da Amazônia e o modo como os povos amazônicos, apesar de toda a violência histórica a que foram submetidos, construíram um legado teórico e político que nos oferece outros horizontes de sentido para a vida no planeta.

Uma história em ruínas

A Amazônia sempre esteve fora do que se imaginou ser o Brasil. Por aqui há pessoas que nasceram no seio deste país, mas nunca couberam nele. Povos ancestrais transformados em entraves à nação por estarem no caminho do desenvolvimento. São refugiados dentro de um território que deveria ser sua casa.

Mas haveria alguma explicação para essa condição de externalidade da Amazônia em relação ao Brasil? Talvez nos ajude lembrar que em 1621, no período da União Ibérica entre Portugal e Espanha, a América Portuguesa foi dividida em duas unidades administrativas: o Estado do Brasil, parte sul dos domínios ibéricos na América, com capital em Salvador, e o Estado do Maranhão, parte norte da América Portuguesa, com capital em São Luís.

Essa divisão não era apenas administrativa; ela expressava o fato primordial lembrado pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira2 de que a América Portuguesa não era uma única colônia, e sim duas colônias distintas. No que hoje chamamos de Amazônia, a expropriação do corpo e do saber indígenas pelos padres das missões definiu uma dinâmica colonial distinta da então usada no Brasil. Esse controle da riqueza pela Igreja tornar-se-ia, já em meados do século XVIII, um risco aos ganhos do próprio Estado português, o que transformou a região em um risco à soberania. Esse lugar do risco foi também representado como espaço selvagem, distante e desabitado. Tal esvaziamento simbólico abriu o caminho para as mais horrendas experiências capitalistas.

Uma breve leitura da geografia histórica amazônica nos mostra que o capitalismo, nessa região, efetivou-se como uma guerra aos povos. Os métodos para a extração de riqueza passaram: pelo uso de guerras justas, que autorizavam a morte de indígenas não convertidos no século XVII; pela violenta subordinação ao Estado imposta aos povos amazônidas, a partir de meados do século XVIII; pelo uso de expedições punitivas organizadas para o extermínio e a expulsão dos indígenas que estivessem nos caminhos dos seringais, entre os séculos XIX e XX; por um banditismo social do latifúndio impondo processos violentos de expansão de frentes econômicas legitimados durante os governos militares.

Até mesmo no período de retomada da democracia formal, que poderia indicar bons ventos à Amazônia, a ideia de interesse nacional para algumas atividades econômicas continuou a conferir tons de normalidade a práticas absolutamente criminosas de empresas e do próprio Estado nessa região.

Essas são as consequências concretas da vontade de esquecer a Amazônia. O Brasil, como máquina de produção de esquecimento, reserva violência e morte para aqueles que esquece. Talvez por isso a Amazônia segue sendo conhecida mais pelas pessoas que lá morrem do que pelas que nela vivem. A morte não pode continuar sendo nossa única forma de sensibilização para a vida. Ou lutamos contra isso, ou continuamos esquecendo nossa vontade de esquecer.

A escolha pelas commodities

Quando o Partido dos Trabalhadores (PT) ganhou as eleições presidenciais em 2002, muitos imaginavam uma mudança nesse capitalismo de guerra que assola a Amazônia. Entretanto, o elevado preço das commodities no mercado mundial no início do século XXI levou governos em toda a América Latina, independentemente da inclinação política, a escolher a exportação de produtos agrícolas e minerais para garantir a estabilidade macroeconômica. Com o Brasil não foi diferente. A mercantilização da vida permaneceu sendo a regra, e a Amazônia continuou como a zona de sacrifício de nosso superávit primário.

No entanto, essa escolha pelas commodities nos cobraria um altíssimo preço, uma vez que, com elas, expandiu-se um modo cínico de ver o mundo.

O uso de correntes em tratores para devastar a floresta, transformando árvores em empecilho. A ação de grilar terras, transformando o ilegal em legal. O ato de jogar veneno em áreas de monocultivos rodeadas de comunidades, transformando espécies que não interessam aos lucros, inclusive a humana, em pragas desprezíveis. A contratação de empresas de segurança privada para a proteção de imóveis, naturalizando a miliciarização da defesa da propriedade privada. Todas essas ações carregam uma subjetividade que flerta com o fascismo, pois banaliza a transformação da natureza em obstáculo e dos diferentes em inimigos, a organização miliciarizada da vida social, o culto à violência e a implosão de todas as formas de vida comunitária em nome da defesa da propriedade privada.

E tudo isso ainda vem junto da expansão da cultura dos rodeios, da música sertaneja, do neopentecostalismo e sua teologia da prosperidade, de uma lógica armamentista de defesa ancorada na proliferação de clubes de tiro… Enfim, deixamos uma racionalidade saída dos esgotos tornar-se a lógica de organização hegemônica de nossa sociedade.

A coincidência, no Brasil, entre os mapas de expansão das commodities agrícolas e minerais e os mapas eleitorais da vitória de Jair Bolsonaro em 2018 aponta que a cadeia de relações que sustentam os negócios de mercantilização da vida explica em muito a legitimidade eleitoral desse cortejo fúnebre que hoje chamamos de governo.

Escolher as commodities, portanto, é escolher não ser Amazônia. Resolvemos construir um projeto baseado em frentes econômicas que carregam uma racionalidade destrutiva e esquecemos a vida oferecida em mais de 115 milhões de hectares de terras indígenas na Amazônia e em outros tantos milhões de hectares habitados por outros povos e comunidades tradicionais. A diversidade, a reciprocidade e o alimento saudável são substituídos por monocultivos, autoritarismos e veneno.

Uma fratura metabólica

Um aviltante impulso à expansão das fronteiras capitalistas na Amazônia se consolida no atual governo. Pela flexibilização de legislações ambientais, pelo ataque aos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais e pela generalização de uma razão miliciarizada de defesa da propriedade privada, a morte torna-se condição de expansão capitalista na Amazônia.

Essas engrenagens de destruição, porém, amplificam um projeto, que ganhou corpo na segunda metade do século XX, de ruptura com o metabolismo da vida amazônica. A superfície florestal de 5,5 milhões de quilômetros quadrados sob incidência de sol, com 400 bilhões de árvores de variados tamanhos, levando ao ar cerca de 20 trilhões de litros de água por dia, segundo dados produzidos por Antônio Nobre 3 passou a ser fraturada.

Aquilo que chamamos de eixos de integração na verdade são engenharias do colapso, pois articulam múltiplos processos de destruição em uma malha técnica e política que altera drasticamente a possibilidade de reprodução dos ciclos vitais da região, o que tem consequências globais.

Um mundo regido pela energia do sol, transformada em matéria viva pelas plantas por meio da fotossíntese, fertilizado pelas fases da lua e enriquecido pelos saberes dos povos amazônicos, capazes de se conectar a esses fluxos de vida, passou a ser interrompido. A vida saiu do centro da organização social, política e econômica, e a morte assumiu seu lugar, sendo chamada de desenvolvimento.

Nossa escolha por nos desconectarmos da vida amazônica nos trouxe ruína, ou, como diria Walter Benjamin4 a tempestade do progresso nos levou à catástrofe. Ouvir os povos amazônicos não nos parece apenas uma opção, mas uma necessidade para continuarmos a existir.

Repensar o Brasil por horizontes amazônicos

No livro Horizontes amazônicos: para repensar o Brasil e o mundo, Carlos Walter Porto-Gonçalves, Fernando Michelotti e o autor deste texto demonstramos que a floresta amazônica, tal como a conhecemos, só se formou depois da última glaciação, entre 13 mil e 18 mil anos atrás. Antes disso, ensina Aziz Ab’Saber 5 ela estava reduzida a alguns refúgios, e só com o aumento da pluviosidade no planeta tornou-se o que conhecemos.

Entretanto, essa região é habitada há 19 mil anos na Formação Cultural Chiribiquete (Amazônia colombiana), há 11.200 mil anos em Monte Alegre, no Pará, há 8.500 anos na Serra dos Carajás, também no Pará… Se a floresta tem cerca de 13 mil anos e a região é ocupada há 19 mil, uma das teses que defendemos é de que a diversidade ecológica e biocultural da Amazônia, tão fundamental à vida no planeta, é o resultado de milênios de um sentir-pensar com a floresta dos povos amazônidas.

Não é plausível que esse conhecimento milenar, historicamente encoberto pela colonialidade constitutiva do Brasil, não nos indique outros rumos. Por isso, é da r-existência desses povos que emerge outro legado teórico e político para repensarmos o país.

Esse legado desloca-nos de nossos centros de referência e aponta a necessidade de restituirmos ao centro do mundo as perspectivas de povos que nos legaram a região mais importante para o equilíbrio metabólico do planeta.

Nesses termos, se historicamente tratamos a Amazônia como um supermercado, esses povos nos oferecem complementaridade e reciprocidade entre si e com a natureza como modo de diversificar a vida. Se só conseguimos imaginar um Brasil mononacional, as lutas desses povos nos forçam a nos reconhecermos como país plurinacional.

Se vemos democracia num país em que o capitalismo é uma guerra, esses povos nos ensinam que não há democracia sem a restituição de suas capacidades decisórias sobre seus destinos. Se organizamos nossa vida pela propriedade privada, os saberes amazônicos nos apresentam diversas experiências de uso comum. Se o direito tem sua face mais crítica na noção de direitos humanos, esses povos nos oferecem a ideia da natureza como portadora de direitos. Se a propriedade privada também definiu nossas formas legais de reconhecimento da propriedade, a luta pelas autodemarcações dá-nos formas ágeis de reconhecimento de territórios tradicionalmente ocupados.

Se o capitalismo na Amazônia se expressa como uma forma de masculinizar os espaços, a luta das mulheres indígenas aponta-nos um modo de ver o mundo comum pela reprodução e pelo cuidado. Se nossa sociedade envenenou a comida e tornou o agro pop, esses povos nos ensinam técnicas milenares de produção de alimentos saudáveis e um saber-fazer comida como uma forma de reunião, e não de individualização. Se boa parte de nossa esquerda anda gastando mais energia em combater o inimigo esquecendo-se de um projeto próprio, os povos amazônidas nos oferecem outras formas de usar, organizar, sentir e pensar o mundo radicalmente distintas da racionalidade necropolítica que nos governa.

Essa agenda emerge de um conhecimento construído, como nos ensina Emanuelle Coccia 6 com base em pontos de vida, e não apenas em pontos de vista. Para esses saberes não há relação hierárquica entre homem e natureza, pois a humanidade não se restringe aos humanos. Nossa arrogante norma culta talvez não compreenda exatamente isso, mas, se pensarmos em Tupi, entenderemos. No mundo Tupi, o tempo não é indicado por verbos, por ações, mas por sufixos agregados a substantivos. Assim, o movimento é dado pelas coisas. Uma árvore e um rio, ao passo que carregam as marcas do que foi, delineiam os horizontes do vir a ser!

Esses modos de pensar e agir, além de outro legado teórico e político, apontam-nos outros horizontes éticos radicalmente distintos dos que agora matam o mundo. Ouçamos, portanto, Ailton Krenak quando nos alerta que nosso descolamento da terra é a escolha por uma existência vazia7. Ouçamos também David Kopenawa Yanomami quando nos diz que não somos só nós que vivemos nesta terra e que, portanto, precisamos ouvir a floresta 8. Ou ouvimos esses conhecimentos ancestrais, ou continuamos fazendo de nossa existência uma guerra contra a vida na terra.

Referências

Bruno Cezar Malheiro, doutor em Geografia, professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) e coordenador do Laboratório de Estudos em Território, Interculturalidade e R-Existência na Amazônia (LaTierra), é um dos autores do livro Horizontes amazônicos: para repensar o Brasil é o mundo (Expressão Popular/Rosa Luxemburgo, 2021)
Este artigo foi publicado primeiro no Le Monde Diplomatique Brasil com o título “Amazônia, apesar do Brasil”, na edição 172, no dia 3 de novembro de 2021.
Foto destaque: Edmar Barros/Amazônia Latitude

 
 

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