O que foi o modernismo e quem o definiu?

Foto em preto e branco de um grupo de homens. Alguns estão em pé e outros sentados. Eles vestem roupas da década de 30
Narrativa da Semana de 22 como mito fundante do modernismo exclui manifestações culturais da Amazônia.

O poeta paulista Menotti del Picchia (1892-1988) foi um dos articuladores, ativistas e colaboradores da Semana de Arte Moderna, marco que completou 100 anos em 2022. O autor abriu a segunda noite – talvez a mais importante e a mais tumultuada – do evento, com uma palestra que negava a filiação do grupo modernista ao futurismo europeu, mas defendia a integração da poesia com os tempos modernos, a liberdade de criação com uma arte genuinamente brasileira.

Em uma entrevista à TV Cultura, 55 anos depois daquela noite, o poeta declarou: “A Semana de Arte Moderna não criou uma escola com regras, não impôs uma técnica, não formulou um código. Mas formou uma consciência, um movimento libertador a integrar nosso pensamento e nossa arte em nossa paisagem, no espírito de nossa autêntica brasilidade.”

O retrato em preto e branco mostra o escritor Menotti Del Picchia, um homem branco de cabelos lisos e curtos penteados para trás, que usa óculos de grau de armação preta e redonda. Ele veste terno e gravata e posa de perfil, virado para a esquerda.

Paulo Menotti Del Picchia (1892-1988) foi um poeta, jornalista, tabelião, advogado, político, romancista, cronista, pintor e ensaísta brasileiro

Entre a conferência de Menotti del Picchia e a entrevista de 1977, muitas definições de modernismo foram proferidas. Um dos expoentes do movimento, Oswald de Andrade, sempre meio (ou mais) irônico, comparou a arte pré-modernista à da pós-Semana de 22 no poema “Pronominais”, de 1925:

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.

Enquanto isso, Mário de Andrade, canonizado como um dos maiores artistas modernistas, fez uma reflexão duas décadas após o acontecimento, que vai na mesma toada de quebra com a tradição: “O modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono consciente de princípios e de técnicas, foi uma revolta contra a intelligensia (sic) nacional. É mais possível imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse preparado em nós um espírito de guerra”.

Para Ana Cavalcanti Simioni, professora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) e uma das maiores intelectuais a pesquisar o modernismo brasileiro, o evento é considerado “o estopim do movimento modernista”. Organizada no Theatro Municipal de São Paulo – uma instituição central da conservadora elite paulistana, inaugurada em 1914 –, a Semana se desdobrou em uma série de eventos literários, musicais e plásticos em referência a modelos estrangeiros, notadamente à Semana de Deauville (que ocorria na França desde o século XIX, durante o verão, e reunia exposições de arte e moda).

Foto em preto e branco do Teatro Municipal de São Paulo. Prédio antigo., com várias pessoas na rua.

O Theatro Municipal de São Paulo foi inspirado na Ópera de Paris e inaugurado em 1911. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude

“Para muitos autores, esse episódio é considerado um divisor de águas na história da arte brasileira, um marco zero do modernismo nacional. (…) A adoção da ‘Semana de 22’ como um marco resulta do processo de construção da memória do modernismo brasileiro, que contou inicialmente com os textos propagados pelos próprios intelectuais e artistas pertencentes ao círculo modernista. Eles não se configuraram como um grupo até 1917, quando a exposição de Anita Malfatti, artista paulista que retornava de seus estudos feitos na Alemanha e nos Estados Unidos, exibiu obras que chocaram os meios locais”, escreve a pesquisadora no artigo “Modernismo brasileiro: entre a consagração e a contestação” (2013).

O contexto da época era de outro centenário, o da Independência do Brasil de Portugal. Existia a necessidade latente de pensar no que o país havia se tornado. Reinava uma consciência clara de que o Brasil não tinha deslanchado como outras ex-colônias – o eterno espelho dos Estados Unidos, que suplantaram a Inglaterra como maior potência mundial após a Primeira Guerra. A ascensão era exemplo de que as nações americanas poderiam se erguer a um patamar de igualdade com a Europa. Ao mesmo tempo era uma humilhação. Por que o Brasil não conseguia fazer o mesmo?

A identidade brasileira foi uma obsessão geral no início do século XX. Após a Abolição da escravatura e com a imigração maciça do período republicano, tornaram-se prementes as perguntas de quem era brasileiro e o que era o Brasil. Qual o lugar dos ex-escravizados na sociedade? Era uma parcela imensa da população à qual era negada a cidadania plena. Como assimilar as levas de imigrantes de diferentes etnias e religiões? As dúvidas viraram angústias.

O modernismo fazia parte de uma busca interior para compreender o que havia dado certo e errado no processo de construção da identidade nacional. E não refletia apenas sobre o passado, porque também levava em conta, e fazia parte de, uma efervescência de novos acontecimentos que também marcaram o momento.

1922 era um caldeirão de novos pensamentos e posicionamentos. A Revolta dos 18 do Forte de Copacabana explodiu em 5 de julho daquele ano na então capital do Brasil, o Rio de Janeiro. Foi a primeira revolta do movimento tenentista, que reivindicava o fim da República Velha, marcada por oligarquias do poder e corrupção na política.

Foto antiga em preto e branco, levemente granulada, de oficiais da marinha andando pelo calçadão de Copacabana, no Rio de Janeiro, no que foi a Revolta dos 18 do Forte.

Revolta dos 18 do Forte de Copacabana: da esquerda para direita, tenentes Eduardo Gomes, Siqueira Campos, Nílton Prado e o civil Otávio Correia

Pouco antes, também no Rio de Janeiro, foi fundado o Partido Comunista do Brasil, primeiro acontecimento importante no país pós-Revolução Russa e greve geral. Foi o ano da criação do Centro Dom Vital, associação católica e conservadora que tornou-se uma das mais influentes agremiações culturais brasileiras do século XX.

Cem anos depois, por que a Semana de Arte Moderna se sobressai nesse caldeirão?

A construção do mito de 1922

A narrativa hegemônica sobre o evento e o movimento artístico-intelectual que se desenvolveu posteriormente gira em torno da ideia de ruptura com o passado, de renovação e de enterrar o tradicionalismo das artes brasileiras. Só que a produção artística era ainda bastante acanhada.

Os grandes nomes que participaram da Semana ainda estavam por fazer seus melhores trabalhos e a maioria das obras que povoaram o Theatro Municipal nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro daquele ano são hoje esquecidas.

Os realizadores do festival eram pessoas muito jovens fazendo o que fazem de melhor: um estardalhaço. As apresentações musicais e os poemas modernistas eram declamados entre vaias e gritos da plateia. Quando Oswald de Andrade leu trechos de “Os condenados”, o público ainda soltou gargalhadas, proferiu impropérios e arremessou tomates e batatas no palco. (A rejeição foi tão caricata que há boatos de que o próprio artista pagou para que estudantes da faculdade de direito da Universidade de São Paulo fizessem a performance, simplesmente pela polêmica.)

Quando o evento chegou ao fim, o carioca Jornal do Comércio, na edição do dia 18 de fevereiro de 1922, publicou: “É pena! Como divertimento, foi insuperável”. Enquanto isso, o cronista Joaquim Feijó escreveu no jornal paulista A Gazeta que “a semana de arte moderna foi um assunto magnífico para desopilantes piadas (…) O segundo espetáculo degenerou em função de circo.”

O evento teve maior repercussão – especialmente em sua sede, São Paulo, e um pouco no Rio de Janeiro –, entre um circuito de artistas intelectuais do que na imprensa. Os jornais descreveram uma caricatura burlesca de movimento artístico.

À época, a Semana não teve tanta importância. Na verdade, a Semana não teve importância durante muito tempo. Ainda em 1948, Graciliano Ramos, um dos maiores nomes da literatura brasileira, demonstrou sua desaprovação em entrevista publicada na Revista do Globo: “Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os modernistas brasileiros eram uns cabotinos [vaidosos, prepotentes]”.

Na década de 1940, quando ocorreu a palestra de balanço do líder modernista Mário de Andrade, apenas 20 anos depois do festival, o consenso é que a Semana de Arte Moderna “parecia pronta para ser enterrada”, nas palavras de Francisco Alambert, crítico da arte e professor do Departamento de História da USP.

Contudo, nos anos seguintes, o evento passou a ser considerado o marco que inaugurou o Modernismo no país e provocou efeitos sentidos em todos os aspectos da cultura brasileira.

Até que foi fundada a revista Clima. O ano de 1939 marcou o início das atividades de um grupo de jovens estudantes que se consagraram na atividade crítica. Antonio Candido, Paulo Emílio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado e Décio de Almeida Prado são alguns dos nomes que estiveram envolvidos na criação da revista de crítica de arte, na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo.

A publicação passou por uma curva política gradual, da posição “neutra” para a radicalidade. O primeiro número da Clima trazia um manifesto, que tinha como principal objetivo o desejo de firmar uma nova interpretação das artes e da literatura e discutir cultura por um viés sociológico, fazendo uma crítica social das artes e da literatura. A primeira fase da revista expôs uma face de respeito ao passado, explicada pelo convívio temporal com os escritores modernistas. Mas, com entrada do Brasil na Segunda Guerra em 1942, a nova postura ficou marcadamente antifascista, tendo como alvo o Integralismo.

É a partir daí que a reinterpretação do modernismo brasileiro ficou mais difundida. O grupo foi responsável por pintar a Semana de 22 como marco fundador do movimento e pela produção de sua historiografia definitiva. Entre os principais pilares estão a transformação do Mário de Andrade, Oswald de Andrade e seus colegas em figuras heróicas post mortem, assim como a redução do acontecimento a algo exclusivamente paulista.

“Essa visão do modernismo como um movimento de valor nacional e internacional cujo ponto inicial seria a ‘Semana de 22’ foi se constituindo como um dogma, principalmente graças ao espaço que seus membros cultivaram na imprensa da época, tornada uma espécie de arena de propagação dos ideais do grupo”, explica Simioni, pesquisadora do IEB-USP.

A ideia da importância paulista vem do próprio Mário, como ele advertiu em 1942: “Socialmente falando, o modernismo só podia ser importado por São Paulo e arrebentar aqui. São Paulo era muito mais ‘moderna’, fruto necessário da economia do café e do industrialismo consequente”. Para o artista e intelectual, capitais como Belém, Recife, Salvador e Rio de Janeiro ainda tinham um exotismo folclórico, com menos contato espiritual e técnico com a atualidade do mundo.

Lourival Gomes Machado, crítico e historiador da arte que co-fundou a revista Clima, replicou a ideia ao afirmar que o Modernismo tinha surgido na cidade de São Paulo devido ao desenvolvimento da indústria e crescimento urbano, contexto propício para a cidade receber a arte moderna.

Gomes Machado, autor de “Retrato da Arte Moderna no Brasil” (1948), defendeu que o movimento modernista tinha inaugurado a modernidade no país. “Cada modernista reproduz em ontogênese, ao alcançar seu progresso particular, a filogênese da civilização espiritual em que se criou. Nesse sentido, o modernismo de 22, dados os antecedentes históricos, políticos e espirituais do país, foi talvez o primeiro passo autenticamente moderno”. O texto reforçou que a tarefa dos modernistas teria sido de “descobrir o Brasil”.

É necessário, porém, salientar as diferenças entre “moderno”, “modernidade” e “modernismo”, como pede Mônica Pimento Velloso em “História & Modernismo” (Autêntica, 2010).

“[O termo moderno] é transitório por natureza; é aquilo que existe no presente. O moderno do ano passado seguramente não é o moderno desse ano. (…) existem tantas modernidades e antiguidades quanto épocas e sociedades. (…) Na sua constituição, o moderno precisa de algo antigo para adquirir sentido e apresentar-se como tal”.

Já modernidade vem de modernité, que é o nome dado ao período que se iniciou no século XVIII, continua Velloso.“O termo, extraído da sociologia, compreende o processo de dissolução dos modos de organização das sociedades tradicionais face à emergência da sociedade industrial”.

Por isso, “a modernidade é passado/presente, integrando novidade e curiosidade à celebração do antigo” porque “o antigo deixara de ser configurado como exemplo, modelo e paradigma para transfigurar-se na historicidade do presente”, destaca.

Na passagem do século XIX para o XX, o processo de modernização econômica e social integra e contamina de forma decisiva o campo da arte e do pensamento.

O modernismo foi relevante não somente no Brasil, mas no mundo todo: era um movimento cultural de proporções globais. Os modernismos correspondem ao momento em que a modernidade tomou consciência de si. Ou seja, “moderno”, “modernidade” e “modernismos” são correlatos, mas não têm o mesmo significado, nem não são apenas consequências uns dos outros.

Contextualizados os termos, dizer que o modernismo brasileiro só poderia ter se originado em São Paulo é, no mínimo, controverso, pois seria dizer que o resto do Brasil, inclusive outras capitais igualmente (se não mais) pujantes, não eram modernas, nem viviam na modernidade. Houve outras manifestações artísticas importantes no Brasil tanto antes da Semana quanto fora de São Paulo. A narrativa hegemônica de que tudo se originou no Theatro Municipal ofusca qualquer contradição do movimento e outras manifestações culturais.

O mito do modernismo de 1922 como momento de fundação da identidade brasileira foi cultivado com dedicação para atender aos interesses de diferentes grupos políticos ao longo dos anos. Nos anos 1940, ele serviu para reerguer uma burguesia paulista que gravitava em torno do jornal Estado de S. Paulo e da família Mesquita – como afirmação da autonomia regional, que havia sido suprimida sob Getúlio Vargas no Estado Novo, em repressão ao movimento Constitucionalista.

Serviu também para projetar uma ideia de São Paulo como cidade moderna e cosmopolita, apoiado por novas instituições como a Bienal de São Paulo, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) Masp e a própria Universidade de São Paulo.

Já na década de 1970, cinquentenário da Semana, o mito de 1922 atendeu a interesses inteiramente diferentes. Encampada pela ditadura militar, os generais passaram a se ver como herdeiros longínquos do tenentismo, movimento que teve início com a Revolta dos 18 do Forte.

Contestando a hegemonia paulista

Alguns dos próprios heróis póstumos do movimento artístico fizeram um mea culpa sobre sua instrumentalização por diferentes grupos. Naquela mesma palestra em que Mário de Andrade, voz mais que autorizada, proferiu que São Paulo foi o antro do modernismo, ele sentenciou: “Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição.” Em 1929, na Revista de Antropofagia, Oswaldo Costa classificou a Semana como “falso modernismo”, entre uma saraivada de recriminações, certamente com o aval de Oswald de Andrade.

Apesar do viés crítico em relação à Semana não ser novo, ele tem ganhado o centro do debate nos últimos anos. Em “A reinvenção da Semana e o mito da descoberta do Brasil”, publicado na Revista Estudos Avançados do IEA-USP em fevereiro deste ano, o historiador e crítico da arte Rafael Cardoso chama a atenção para uma tese que acabou vingando em consequência desse apagamento de manifestações culturais modernistas de fora de São Paulo: a de que o modernismo paulista teria resgatado o rural, o indígena e a negritude de um suposto apagamento anterior.

“Em poucas palavras, a noção de que o movimento modernista pôs em andamento a famigerada descoberta do Brasil profundo. Que essa alegação é falsa é facílimo de demonstrar por exemplos. É só apontar nomes como Adolfo Caminha, Affonso Arinos, Euclides da Cunha e João do Rio, na literatura, ou Almeida Júnior, Eliseu Visconti e Arthur Timotheo da Costa, nas artes visuais, que já haviam se lançado, entre as décadas de 1890 e 1910, à busca pelo autóctone e o autêntico, assim como ao exame da vivência urbana dos pobres e marginalizados. Isso, sem nem falar dos muitos criadores que o cânone modernista relegou ao status do regional ou, pior ainda, do pré-modernismo, ambas categorias mais que discutíveis”, argumenta.

Cardoso recupera um texto que o historiador americano Robert C. Smith escreveu em 1940, para o catálogo de uma exposição individual de Cândido Portinari no Detroit Institute of Arts, com o título Portinari of Brazil. Para ele, Smith “misturou todos os matizes étnicos, regionais e culturais no mesmo balaio, decretou a existência de um negro genérico e creditou sua descoberta à burguesia de São Paulo e seus enfants terribles.”

Reprodução do quadro "Gado", de Cândido Portinari, uma pintura colorida em que predominam o vermelho, o amarelo, o azul e o branco. Na cena consta um boi e um bezerro ao centro, um homem de costas e descalço à direita, vestindo apenas uma calça, e um homem nu à esquerda. Ambos olham para os animais. No primeiro plano da figura, uma mulher de vestido azul mira o horizonte, sentada no chão.

“Gado” (1939), de Cândido Portinari, está até hoje no Detroit Institute of Arts, dos Estados Unidos. Foto: Hanne Therkildsen

O “negro de todo o Brasil” do jovem historiador americano seria uma categoria não somente unificada, mas demarcada pela alteridade absoluta. Na visão dele e de muitos outros responsáveis pela produção historiográfica sobre a Semana de 22, a figura do negro (assim como a do indígena, do caboclo e outras figuras brasileira) era um Outro passível de ser descoberto e catalogado pelo olhar do antropólogo, do historiador e do artista.

Cardoso complementa que a busca pelo entendimento do negro pelos brasileiros e da sua relação consigo mesmos tropeça na falha lógica de pressupor que os tais brasileiros modernos não fossem negros, nem partilhassem de qualquer intimidade com a cultura afro-brasileira.

“Presumir que o ‘mistério do negro’ pudesse ser revelado por Portinari ou Mário de Andrade ou Gilberto Freyre, entre outros referidos por Smith, era contingente no aceite de três premissas falsas: 1) que tal mistério existisse como entidade, 2) que ele estivesse perdido e, por conseguinte, precisasse ser resgatado, 3) que essa tarefa competisse a agentes intelectuais que não se viam como negros”, escreve.

Em entrevista à Amazônia Latitude, Cardoso, também autor de “Modernidade em preto e branco: Arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945” (Companhia das Letras, 2022), frisa que o modernismo não foi um movimento único.

“O consenso hoje entre os especialistas é que existia uma pluralidade de modernismos. Diversos movimentos, ocorridos em épocas e lugares distintos, que juntos constituem o grande panorama de modernização cultural. A ideia do modernismo como movimento unificado é ultrapassada. A ideia de que a Semana de 22 foi o marco inicial do modernismo não se sustenta mais. Isso é uma historinha para ludibriar leitor de enciclopédia”, avalia Cardoso.

É igualmente importante para o pesquisador enfatizar que essa história de “descoberta do Brasil” pelos modernistas é tolice. “Quem determinou que os intelectuais de São Paulo seriam os descobridores e Minas, Recife, Amazônia, seriam os descobertos? Do mesmo modo que Colombo não descobriu a América… Os povos originários já estavam aqui, com suas histórias e suas culturas. A grande crítica que Florestan Fernandes fez aos modernistas de 1922 é que não mudaram as dinâmicas sociais no Brasil, e que isso teria sido obrigação deles.”

A lógica “paulistocêntrica” foi a principal responsável por apagar o movimento modernista em outros lugares do Brasil, como na região amazônica. (É importante destacar que, da mesma forma que não houve um modernismo brasileiro, também não houve um modernismo da Amazônia, mas o termo foi adotado para efeitos de análise.)

Alguns autores modernistas se valeram da Amazônia de modo etnográfico, apropriando-se de sua cultura e transformando-a em objeto para ilustrar teses que em nada interessam aos amazônidas.

Há muita diferença e contradição entre as abordagens. O famoso movimento da Antropofagia foi tão revolucionário como excludente, e seu fascínio reside na própria natureza contraditória.

A Antropofagia foi um movimento de elite e, ao mesmo tempo, tentou superar isso. A Revista de Antropofagia afirmou claramente que era preciso se alinhar com o povo contra a elite. Foi onde apareceu um dos primeiros registros conhecidos do termo “mentalidade colonial”, em posicionamento contra o eurocentrismo.

Página de revista em que foi publicada o manifesto Antropofágico. O texto cerca um decalque do quadro "Abaporu", de Tarsila do Amaral, em preto e branco.

Publicação original do “Manifesto Antropófago” na Revista de Antropofagia de Oswald de Andrade em 1928. A imagem ao centro é um desenho de contorno da artista brasileira Tarsila do Amaral de sua pintura “Abaporu” (1928)

O movimento, ainda que quebrasse com a visão tradicionalmente romântica dos povos originários, operou totalmente dentro da lógica oligárquica que regia o Brasil a essa época. Pode-se dizer, portanto, que não houve um esquecimento da Amazônia, mas um apagamento, por ignorar as vozes locais.

“A Amazônia é uma espécie de almoxarifado na nação. Lugar de onde tudo vem, é o cordão umbilical, fundamental para a construção de uma raiz pátria”, interpreta Aldrin Figueiredo, antropólogo e professor de História da Universidade Federal do Pará (UFPA), em entrevista à Amazônia Latitude. “Não é que a Amazônia ficou esquecida no modernismo de São Paulo, foi construído um lugar para ela dentro do movimento”, completa.

Praticamente todos os autores falam da Amazônia: Ronald Carvalho, Mário de Andrade, Raul Bopp. A própria cidade de São Paulo precisava desesperadamente de um encontro com o sertão, porque, por mais que goste de pensar que é litoral, não é. Mas na busca por esse suposto Brasil profundo faltou o âmago: a floresta. A perspectiva predominante é a intelectual-paulista, em exclusão intencional e consciente de intelectuais da região amazônica. Isso desqualificaria o que acontece nas outras regiões, quase como se os autores do sul do país quisessem inventar o Pará, o Amazonas, de suas próprias cabeças.

Em um texto escrito para a exposição “Moderno Onde? Moderno Quando”, feita pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) em razão dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, Figueiredo aponta que não é à toa que as principais obras dos autores modernistas consagrados nascem após suas visitas a esse suposto Brasil Profundo:

“A Amazônia talvez seja, afinal, o principal mito geográfico do modernismo brasileiro, como um locus consolidado e perfeitamente explicado por vasta bibliografia e eloquente memória. Não exatamente como um centro intelectual de vanguarda, mas apenas e tão somente como uma espécie de reserva de sólidas tradições e de um imenso fabulário, profundamente necessários para o reencontro com as verdadeiras raízes pátrias. (…) Mas se a Amazônia é tema privilegiado, os autores nativos aparecem como anomalia no cenário das letras nacionais, com pouca ou quase nenhuma projeção nos compêndios de história literária.”

Para Figueiredo, Mário tinha um olhar de pureza, autenticidade e legitimidade para a mata. André Botelho, professor e sociólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), reitera essa ideia, afirmando que o autor de Macunaíma teve uma perspectiva diferente da naturalista tradicional. “Uma concepção plural de civilização, em que há lugar para as diferenças e para uma convivência mais democrática entre diferenças sem ignorar, porém, a desigualdade social e os embates de poder aí envolvidos”, escreve no artigo “A viagem de Mário de Andrade à Amazônia entre raízes e rotas”, publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, em 2013.

Botelho aclara: “Civilizações, e não apenas uma única civilização. A lição não é pequena se lembrarmos dos velhos e novos processos de homogeneização e padronização das condutas, sentimentos, imaginações e linguagens que, ainda que em novas configurações, nos perpassam contemporaneamente. Em suma, uma visão plural de civilização, mais sincrética que sintética”.

O historiador da UFPA, no entanto, ressalta que o herói de Mário de Andrade só entra na história no momento em que sai da natureza e vai para São Paulo. O enredo de “Macunaíma”, portanto, contribui para a solidificação de uma narrativa dual do Brasil: oposição entre civilização e barbárie, litoral e sertão, progresso e atraso, moderno e tradicional – cidade e floresta.

Foto antiga em sépia de Mário de Andrade, à esquerda, ao lado de seis pessoas não identificadas. Os quatro homens, todos à esquerda, usam terno e gravata e apenas um não usa chapéu. As três mulheres, à direita, usam vestidos até as canelas, carregam bolsas pequena e usam chapéu tipo clochê.

Mário (esq.) em viagem à Amazônia em 1927

Esse modo de operar na Amazônia produz um apagamento, mas não se justifica pela narrativa já abordada da modernidade. Na década de 1920, todas as cidades brasileiras com mais de 200.000 habitantes ficavam no norte e no nordeste, com exceção do Rio de Janeiro e São Paulo. As metrópoles sudestinas acabavam de passar por uma virada econômica e atingiram uma população de 500.000 habitantes.

Belém, por exemplo, se desenvolveu devido ao boom da borracha. A cidade tinha uma retaguarda de urbanidade desde o período colonial. Na virada do século XIX para o XX, contudo, São Paulo teve um avanço tão grande que se autodenominou a “locomotiva do Brasil”, batendo de frente com as outras grandes capitais. Belém, enquanto isso, ficou grudada ao seu passado à margem.

“O modernismo é uma disputa geopolítica. É uma disputa de elites nacionais, principalmente paulistas, que estão emergindo fortemente nesse momento”, continua Figueiredo.

(Alguns) Exemplares do modernismo amazônico

No Pará, o historiador da literatura José Eustachio de Azevedo afirmava em 1904, como consta em “Anthologia amazônica (poetas paraenses)” (Belém: Livraria Clássica, 1918): “Nós, os do Norte, conhecemos um por um todos os literatos do Sul, citamo-los, fazemo-lhes a merecida justiça; eles, os do Sul, fazem que não nos conhecem: somos os espúrios das letras, uns nulos!”. Azevedo acreditava que o paraense José Veríssimo seria desconhecido se não tivesse ido para o Rio de Janeiro.

Foi a mesma movimentação de Inglês de Souza, outro paraense, e de Osvaldo Costa, membro de uma trupe paraense na Revista de Antropofagia, lembra Aldrin Figueiredo, da UFPA.

Eneida de Morais, que se mudou do Pará para o Rio de Janeiro para ser cronista do Diário Carioca, é uma das principais autoras do movimento, com “História do carnaval carioca” (1958). Ela envolveu-se diretamente nas revoluções de 1932 e 1935, o que resultou em 11 prisões durante o Estado Novo, além de torturas, clandestinidade e exílio. Na prisão, conhece Graciliano Ramos, que a imortalizou em “Memórias do Cárcere”.

Clóvis de Gusmão, que publicava na Revista de Antropofagia, também transitava entre Belém, São Paulo e Rio de Janeiro na década de 1920. O jornalista propôs, por meio do humor, a dissolução da legislação brasileira e sua reconstrução a partir do folclore e de crenças indígenas amazônicas que, segundo os antropofágicos, eram mais próximas da realidade nacional e não cópias de documentos estrangeiros incompatíveis com a realidade nacional.

O movimento modernista foi construído tanto por paulistas quanto por nortistas (e outras regiões) – mas desde que estivessem no eixo Rio-São Paulo. Os que ficaram, em sua maioria, foram apagados junto com a região amazônica.

Artistas como o pintor paraense Theodoro Braga (1872-1953), de modos diversos e em diferentes níveis, fizeram um movimento parecido com o dos conhecidos nomes de São Paulo. Profundamente influenciado pelo gosto das academias europeias, começa já no início do século XX a tentar projetar um diálogo mais contundente entre a arte do Velho Mundo e as marcas da nacionalidade brasileira, tomando a questão da ethos nacional como elemento constitutivo de uma arte que vinha de parâmetros importados.

Pintura em óleo sobre tela de um homem indígena, retratado olhando diretamente para a frente, como se fosse uma fotografia. Ele tem marcas de expressão no rosto, cabelos pretos e pele marrom. Veste um camisão amarelado.

“Maracatú – Cabeça de Índio” (1911), de Theodoro Braga, integra o acervo do Museu Paulista da USP. Coleção Fundo Museu Paulista. Foto:José Rosael/Hélio Nobre/Museu Paulista da USP

Por muito tempo esquecido, Braga hoje é reconhecido como um dos destaques de sua época. Segundo a enciclopédia da instituição sem fins lucrativos Itaú Cultural, “[sua produção] extrapola o campo artístico, abrangendo a História e o folclore, que complementam seu interesse pela cultura amazônica”.

No artigo “De Pincéis e Letras: Os manifestos literários e visuais no modernismo amazônico na década de 1920”, publicado em 2016 na Revista Territórios & Fronteiras, Aldrin Figueiredo escreve que, em 1916, um grupo de literatos paraenses ligados à revista Ephemeris tomaram o campo da filosofia, da arte e da história como elemento fundante em suas preocupações intelectuais.

“Nomes como Arthur dos Guimarães Bastos, Lucídio Freitas, Andrade Queiróz, Curcino Silva, Emílio de Macedo e João Bento de Souza deram o sopro inicial do debate sobre o significado do “moderno” na literatura e nas artes na seara das letras paraense. (…) Ephemeris, por ter sido efêmera, como quiseram seus autores, foi esquecida ou muito pouco lembrada”, afirma o autor.

Enquanto isso, outro grupo, mais boêmio que aquele, ficou conhecido como Academia do Peixe Frito, pela origem modesta dos poetas e também tira-gosto que acompanhava as discussões literárias. Aí se juntavam artistas como Paulo de Oliveira, De Campos Ribeiro, Ernani Vieira, Muniz Barreto, Arlindo Ribeiro de Castro, Lindolfo Mesquita, Sandoval Lage e Rodrigues Pinagé – sob a liderança do pai do modernismo paraense, Bruno de Menezes (1893-1963).

Escritor negro nascido em Belém, no Pará, Bruno de Menezes se mudou para a Amazônia e foi consagrado membro da Academia Paraense de Letras. Poeta e folclorista, foi uma espécie de anunciador do modernismo em Belém. Sua poesia canta a raça negra, a cidade que o tempo levou, as tradições e o amor, movida por uma necessidade de inserir a literatura local paraense no contexto modernista nacional.

Segundo o crítico Dante Costa, ele realizou em sua obra uma transposição “das vivências do negro no Brasil, do fato folclórico, da realidade que não interessa apenas ao crítico literário, mas também e principalmente ao sociólogo, ao estudioso dos hábitos e costumes, ao etnógrafo do negro brasileiro”.

Bruno de Menezes foi responsável por aglutinar a Academia do Peixe-Frito a outro grupo rebelde local chamado Academia ao Ar Livre, formando os Vândalos do Apocalipse – apelido associado à iconoclastia, extremamente em voga na época. Menezes associou a palavra vandalismo ao Apocalipse, o último livro do cânone bíblico, com o sentido de destruir o revelado, o estabelecido. Seu lema: “destruir para criar”.

Menezes também foi o fundador da revista Belém Nova, em 1923. Pode até ser considerada uma das primeiras (se não a primeira) revista modernista e é muito comparada por acadêmicos à Revista de Antropofagia. Ambas tinham caráter combativo e modernista e compartilhavam autores, mas as diferenças em relação à percepção da regionalidade e brasilidade veiculadas por elas são claras.

Capa da revista Belém Nova mostra uma garça branca impressa sobre fundo azul, com detalhes em laranja.

Pará, 10 de janeiro de 1927: Capa da edição 64 da revista Belém Nova, fundada cinco anos antes. Foto: Andrin Figueiredo

Como avalia Figueiredo em “Revistas no Front: aproximações entre Belém Nova e Revista de Antropofagia por meio de manifestos na década de 1920”, publicado no periódico Antíteses em 2019, os manifestos e revistas eram instrumentos utilizados nas disputas regionais sobre a preponderância artística e estética. Embora a narrativa hegemônica ainda seja a do sul, “(…) os contornos do movimento antropofágico foram sendo definidos com a presença de ideias e ideários existentes entre os artistas nortistas. A Revista de Antropofagia seria porta-voz de um movimento cujas raízes extrapolam a regionalidade paulista, fazendo a junção da modernidade e da tradição brasileiras na tentativa de reconfiguração do modernismo nacional”.

Não faltam exemplos de expoentes do modernismo amazônico – nem de grupos, nem de publicações. Bruno de Menezes, Theodoro Braga, Eneida de Moraes e os outros nomes citados são a ponta do iceberg.

É tempo de escutar mais as vozes da própria Amazônia. Dessa forma, talvez fosse possível não apenas discutir o modernismo amazônico com mais propriedade, mas também olhar para a questão da identidade nacional de outra forma.

“O debate sobre identidade nacional é o grande fardo brasileiro”, afirma Figueiredo, em entrevista à Amazônia Latitude. “O mais importante de se destacar é que o modernismo apenas abre um debate, não é conclusivo. O movimento oferece uma ponte de ligação da interpretação do Brasil atual”, completa.

O projeto do mito de 22, que serviu a diferentes propósitos em diferentes momentos, sempre carregou esse nacionalismo meio doente, meio pela metade, meio falso. Durante a Ditadura civil-militar, isso chega inclusive a desaguar no famoso “Brasil: Ame-o ou deixe-o”. O projeto trans-governamental, trans-secular de nacional-desenvolvimentismo também faz uma ponte de ligação com o presente – não à toa tantas manifestações pró e contra diferentes governos foram feitas com a camisa da Seleção Brasileira de Futebol.

“Acho importante pensar um projeto de cultura brasileira que não passe pela doença do nacionalismo”, defende o historiador da arte Rafael Cardoso, em entrevista. “Estamos afundando hoje num verde-amarelismo [braço ufanista do modernismo] reles.”

Cardoso, no entanto, concorda que a cultura brasileira tem sua especificidade e sua potência, que precisam ser resgatadas (especialmente em momento de crise da identidade, em que elementos formadores, como a camisa do Brasil, estão sendo sequestrados).

“Isso só é possível se superarmos a busca da brasilidade como meta em si. Esse negócio de provar que o Brasil é maior e melhor em tudo não passa de ressentimento e complexo. O grande erro da facção vitoriosa do modernismo foi de se aliar ao Estado Novo e à afirmação do Brasil unificado e normativo. A riqueza da cultura brasileira está nas diferenças”, completa o historiador.

Foto destaque: Academia do Peixe Frito. Sentados da esquerda para direita: Paulo de Oliveira, o pintor Euclides Fonseca e Edgar Souza Franco. De pé, Clovis de Gusmão, Farias Gama, Bruno de Menezes e De Campos Ribeiro.
Amanda Péchy é jornalista e escritora, formada pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Autora da pesquisa “O Mito da Amazônia: Como sua ocupação predatória criou e perpetua gargalos na comunicação sobre a região”. Nascida em São Paulo, trabalhou na Revista Veja, reportando sobre sociedade e relações internacionais. É editora-assistente da Amazônia Latitude
Marcos Colón é doutor em estudos culturais pela Universidade de Wiscon sin-Madison, professor do Departamento de Línguas Mo dernas e Linguística da Universidade Estadual da Flórida e diretor do documentário “Beyond Fordlândia”. É editor-chefe da Amazônia Latitude
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