Lúcia Sá: É preciso visibilizar reais criadores das narrativas modernistas

Autores modernistas se apropriaram de ideias dos povos indígenas para criar obras reconhecidas dentro do movimento de vanguarda.

O interesse pelo modo em que as narrativas indígenas foram apropriadas pelos modernistas surgiu no mestrado, quando Lúcia Sá, professora de Estudos Brasileiros da Universidade de Manchester, no Reino Unido, analisou os trabalhos Maíra, de Darcy Ribeiro, e Quarup, de Antonio Callado.

O estudo depois se materializou em Literaturas da floresta – textos amazônicos e cultura latino-americana (2012, EDUERJ), livro em que Sá se debruçou, com mais tempo, sobre o tema. Na obra, a pesquisadora dá voz a narrativas indígenas de povos tanto da Amazônia brasileira quanto de outros países das terras baixas da América do Sul, apropriadas por escritores brasileiros e latino-americanos nos séculos XIX e XX.

O uso do termo “Amazônia” no livro, conta Lúcia para o especial Modernismo na e da Amazônia, é feito em um sentido amplo da palavra. Além de lidar com narrativas especialmente amazônicas, Sá analisou narrativas de origem Tupi, que “são possivelmente amazônicas num sentido histórico, pois se acredita que os povos tupis e guaranis se originaram naquela região”.

Retrato da professora Lúcia Sá. Ela tem cabelos brancos curtos, usa batom vermelho, brincos brancos compridos e uma blusa de gola alta preta.

Lúcia Sá, professora de Estudos Brasileiros na Universidade de Manchester, no Reino Unido e autora de “Literaturas da floresta – textos amazônicos e cultura latino-americana”.

Outra influência do livro foi a obra modernista Macunaíma, de Mário de Andrade. Quando saiu do Brasil para se dedicar à sua tese de doutorado, em 1990, Sá desejava “utilizar os instrumentos dos estudos literários para fazer uma análise de Macunaíma, que levasse as narrativas indígenas que inspiraram Mário de Andrade a sério enquanto narrativas”.

“A minha ideia era: Muito bem, se o Mário de Andrade utilizou essas narrativas, se ele se apropriou de uma certa concepção de herói, se ele utilizou a própria sequência das narrativas, o que acontece se a gente analisar essas narrativas como ‘literatura’?”, questiona.

“Eu tentei, a partir da análise do Macunaíma, analisar as narrativas originais que foram apropriadas e ver como esses textos originais foram modificados, reescritos por escritores quase sempre canônicos”. No seu livro Literaturas da floresta, os escritores, de forma geral, são canônicos; alguns mais do que outros.

Macunaíma é um dos casos mais famosos citados na obra de Sá. Segundo a professora, as narrativas de origem Arekuna e Taurepang que ajudaram Mário de Andrade a criar sua concepção de herói brasileiro vieram dos registros do etnólogo explorador alemão Theodor Koch-Grünberg.

“São as narrativas coletadas pelo Theodor Koch-Grünberg na viagem que ele fez entre 1911 e 1913 e que foram publicadas alguns anos depois. É o volume dois dos cinco volumes da coleção Vom Roraima zum Orinoco, do Roraima ao Orinoco”.

O próprio Mário de Andrade admitiu ter se utilizado desses volumes, afirma Lúcia Sá. “O Mário se defendeu dizendo: ‘copiei sim’.”

Retrato do poeta Mário de Andrade, em preto e branco. Mário é um homem branco, levemente calvo, eusa um terno e óculos de armação redonda.

Mário de Andrade (1893-1945) é tido até hoje como um dos fundadores do Modernismo, participando da revolução da poesia brasileira com “Pauliceia Desvairada” (1922).

“O fato de o Macunaíma ser baseado em narrativas indígenas foi estabelecido pelo próprio Mário e pelos críticos da época, e, mais tarde, pelo Cavalcanti Proença, que dá a origem de várias das citações dessa imensa colagem, que é o Macunaíma. O meu argumento, no livro, é que, apesar de isso ser reconhecido, poucos críticos haviam levado a sério as narrativas indígenas”.

Sá argumenta que era comum se utilizar uma linguagem econômica, que falava sempre das narrativas indígenas como matéria-prima que teria sido reelaborada ou transformada em uma obra verdadeiramente artística pelo grande autor Mário de Andrade.

“É uma questão de voltar e levar a sério essas narrativas”, dispara.

Uma obra modernista inserida nesse nicho de uso de narrativas indígenas, diz Sá, é o poema Cobra Norato, de Raul Bopp, mas de forma diferente. “O Raul Bopp usa, sim, as narrativas Nheengatu, mas como inspiração para o poema Cobra Norato”. Bopp não chega a utilizar as estruturas narrativas de forma tão clara quanto o Mário de Andrade utiliza. “É claro que ele usa alguns personagens típicos da Amazônia, como a cobra grande.”

Sá elucida as diferenças entre cada um dos episódios de apropriação, visto que nem sempre são as estruturas narrativas o foco dos apropriadores. No Manifesto Antropófago, escrito por Oswald de Andrade, está presente a questão do canibalismo ritual tupi guarani, que não é uma narrativa desse povo, mas um costume.

À esquerda na imagem em preto e branco, o escritor Raul Bopp usa terno e gravata e conversa de lado com a atriz Maria Montez. Ela é branca, tem cabelos pretos compridos, está vestida com uma saia solta e um top tipo biquíne, e usa um enfeite do que parecem pérolas na cabeça. À direita, está Jorge Guinle, homem branco, baixo e cabelo curto, vestindo um terno e gravata fina.

Raul Bopp (esq.), cônsul do Brasil em Los Angeles, em companhia da atriz Maria Montez e Jorge Guinle, representante do D.I.P. em Hollywood, em 1943.

“São casos diferentes, mas todos eles voltam às culturas indígenas como o Romantismo havia feito”, acrescenta. “Inclusive, o modernismo brasileiro foi muito criticado por fazer isso, pois as culturas indígenas eram vistas, sobretudo pela crítica marxista, como uma distração, como algo não relevante”.

Literaturas da floresta analisa os detalhes dessa apropriação, e eu apresento o argumento de que o Mário de Andrade, em Macunaíma, é o que leva mais a fundo essa utilização das estruturas narrativas e dos personagens; mais a fundo do que fazem tanto Oswald quanto o Raul Bopp. ”

Como não são analisados apenas casos brasileiros em seu livro, Sá explorou também um episódio que aconteceu em terras peruanas. “Um caso muito semelhante ao do Mário de Andrade é o caso do Mario Vargas Llosa, que usa, de forma muito semelhante, as narrativas indígenas machiguengas no seu livro ‘O Falador’, só que faz isso ideologicamente para desqualificar as culturas indígenas.”

Em contraponto à apropriação discutida em Literaturas da floresta, Sá lembra outra obra que influenciou profundamente os modernistas paulistas. “A coleção de narrativas em nheengatu da região do Alto Rio Negro traduzidas por Brandão do Amorim, publicadas postumamente no volume de 1926 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico, deveria ser analisada como uma grande obra de vanguarda”. Segundo a pesquisadora, seriam narrativas indígenas que foram traduzidas, de forma magistral, por Brandão do Amorim.

Além de Brandão do Amorim, “havia relações com a vanguarda acontecendo em vários lugares do Brasil. Houve vários autores amazônicos, ou do nordeste, ou do Rio que também estavam trabalhando com movimentos de vanguarda da Europa na mesma época que o modernismo”, continua Lúcia Sá.

“Essa visão do modernismo paulista como sendo um divisor de águas, que mudou tudo na literatura brasileira, é claro que é uma visão bastante limitada.”

Em termos de autores da região Amazônica que foram esquecidos, há Dalcídio Jurandir, que começou a publicar um pouco depois do movimento modernista. Jurandir não teria a mesma relação com a vanguarda, mas com um movimento posterior, mais social. “Esse é um grande escritor que tem toda uma obra de análise social que foi, de certa forma, ignorada pela historiografia literária brasileira”, lamenta.

É perceptível que a Amazônia possuiu representação dentro do modernismo. Para Sá, a importância de analisar as obras desse movimento está em atribuir visibilidade aos reais criadores dessas narrativas. “São artistas que, mesmo se dedicando ao tema, não são tão conhecidos como os da região sudeste”.

Lúcia Sá é professora de Estudos Brasileiros na Universidade de Manchester, no Reino Unido. É autora de “Literaturas da floresta – textos amazônicos e cultura latino-americana” (2012), sobre como textos indígenas foram apropriados por escritores brasileiros e latino-americanos nos séculos XIX e XX. Entre os autores citados no livro, há alguns modernistas.

 

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