Com cinema social, os atingidos pela Cargill em Abaetetuba resistem

Foto em preto e branco de um ribeirinho segurando uma criança no colo
Novo documentário rebate narrativa da empresa estadunidense e retrata lutas de comunidades tradicionais do Pará por direitos

O conflito gerado pela possibilidade de um porto graneleiro da empresa estadunidense Cargill em território do Programa de Assentamento Agroextrativista (PAE) Santo Afonso, na Ilha do Xingu, município de Abaetetuba, é o mote de um novo documentário. Partindo do ponto de vista de pescadores, extrativistas, ribeirinhos e trabalhadores rurais, o filme narra os conflitos e perigos aos quais as comunidades locais na Amazônia paraense estão submetidas.

Ainda sem título definido, a produção é um combate: demonstra uma incidência tanto midiática quanto ideológica contra a grilagem — inimigo que se molda de acordo com os interesses e se fortalece por meio dos diversos projetos de instalação de empreendimentos na Amazônia. Com uma narrativa do “progresso”, este inimigo opera de forma subliminar, com estratégias jurídicas e institucionais burocratizantes, para dificultar e excluir o acesso aos direitos da comunidade.

Mas os grupos tradicionais se organizam e lutam para conquistar acesso e permanência à terra. Elas se deparam com perigos deste porto graneleiro de uso privado, como impactos ambientais e sociais, estranhos processos e títulos de “aquisição” da propriedade, característicos da grilagem de terras na Amazônia.

188 famílias vivem só no Programa de Assentamento Agro-Extrativista Santo Afonso, na Ilha do Xingu, Abaetetuba. De forma a violentar a ancestralidade, o direito subjetivo e a cultura simbólica de um saber que somente possui aquele que vive do seu trabalho na terra ou no rio, a Cargill usurpa as terras das comunidades, construindo cercas que ultrapassam os limites dos quais é dona.

Foto de um porto da Cargill, com um rio na Frente e grandes silos ao fundo.

Porto da Cargill em Amsterdã. Alf van Beem/Arquivo pessoal

O documentário pretende sensibilizar o público e contrapor-se ao projeto privatista mostrando um mundo coletivo, ancestral, de conhecimentos e saberes próprios, ameaçado de desaparecer. Visitado pela equipe de filmagens, é um mundo que se espalha pela comunidade do PAE Santo Afonso, no Xingu, Pirateua, Vilar, Areia, Curupuacá, São José, Piri, e Capim.

Dezenas de lideranças e pessoas da comunidade foram ouvidas, resultando em rodas de conversas locais que tanto fortalecem a luta social quanto amplificam a Ação Civil Pública (ACP), promovida pela CÁRITAS Regional Norte II contra a Cargill.

O ponto fulcral desta ação, explicou à Carta Capital o advogado Paulo Sérgio Weyl, coordenador da área de direitos humanos do escritório Weyl, Freitas, Kawage David, Vieira e Botelho, é “assegurar a integralidade, vigência e eficácia da Portaria do INCRA que institui o Projeto e reconhece o território (posse/propriedade) e a proteção jurídica do terra pertencente aos povos e comunidades tradicionais que vivem na ilha do Xingu”. Weyl é o advogado responsável pela ACP (nº 1043377-41.2021.4.01.3900), analisada pela 1ª Vara Federal Cível da Seção Judiciário do Pará, e um dos entrevistados do documentário.

A luta não é de hoje. Desde a constituição da Aliança dos Povos da Floresta, criada por Chico Mendes, existe este combate pelo reconhecimento dos direitos materiais aos modos de vida e à terra das comunidades tradicionais e extrativistas. O Brasil não pode retroceder nos direitos humanos já assegurados no país e fora dele. Um dos objetivos do documentário é justamente rebater o modelo de desmonte de direitos e a narrativa midiática da Cargill, que minimiza o impacto social e ambiental do Porto.

Ainda em fase de produção, a obra terá entre 35 e 45 minutos, podendo posteriormente se transformar em série. Há uma riqueza de detalhes nas dezenas de depoimentos e imagens capturadas pelo diretor de fotografia Marcelo Rodrigues, um dos quatro integrantes da equipe. Compõem também a equipe o músico Cláudio Figueiredo, responsável pela criação da banda sonora; Luciano Mourão, dedicado operador de áudio e o realizador e professor de cinema Francisco Weyl, que coordena o filme. A reduzida, mas valente equipe imersa neste projeto audiovisual, é formada por pessoas experientes em projetos sociais que despertam a formação de coletivos audiovisuais na Amazônia Paraense.

O produto final será traduzido em libras e legendado em inglês e alemão para ser distribuído nos EUA, Canadá e Alemanha. Haverá também difusão e distribuição em redes e plataformas colaborativas para reverberar em outros canais possíveis e se opor a condição de invisibilidade à qual são submetidos os movimentos e as causas sociais das comunidades tradicionais da região.

O documentário é financiado pelo Fundo Casa, em parceria com a FASE Amazônia e apoio da WFK Direitos Humanos, Cáritas Abaetetuba, Conselho das Associações de Ribeirinhas e Ribeirinhos dos Programas de Assentamento Agro-Extrativistas de Abaetetuba, Conselho Nacional das Populações Extrativistas, Comissão Pastoral da Terra e Festival Internacional de Cinema do Caeté.

A maioria das imagens deste documentário foi captada em áreas externas durante o dia para mostrar o cotidiano das famílias nas relações de trabalho, nas hortas, nas roças e em outras atividades que revelam sua força e as condições de trabalho. Esta ação prática de campo imprimiu sensibilidade nas imagens e sons — potentes e até inquestionáveis — para mostrar o que os trabalhadores produzem, a depender de suas necessidades, vontade e tempo que só a sua natureza é capaz de definir e de sentir, mas que o capital transnacional quer destruir.

Usurpada do direito ao uso da terra, conquistado por acordos entre Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e reconhecido por leis nacionais e internacionais, a comunidade não foi consultada pela Cargill. A empresa usou métodos de convencimento midiáticos para fazê-la aceitar a construção do porto, com a promessa de geração de emprego. Ao mesmo tempo, as mensagens da Cargill anulam a história, o saber e a trajetória organizativa e cooperativa comunitária local, onde toda relação entre homem e natureza acontece por meio da transmissão de conhecimentos que respeitam e preservam o ambiente e não destroem a floresta.

A empresa, entretanto, cria estas táticas para disfarçar os impactos ambientais e sociais na Ilha do Xingu, particularmente no PAE Santo Afonso. Suas narrativas alcançam diversas mídias com diferentes estratégias sociais, com vídeos e cards em redes sociais, espaço na rádio da igreja local e apoios pontuais a organizações sociais para dividir os movimentos sociais.

A comunidade retratada no documentário sofre assédios, ameaças, ataques políticos, esquemas cartoriais e jurídicos — estratégias para desmontar direitos anteriormente conquistados. É nas falas das lideranças e das pessoas da comunidade (algumas ameaçadas) que o filme reconstrói a história local para desmontar a narrativa jurídica dos advogados da Cargill.

A empresa estadunidense argumenta que não foram cumpridos os termos de cooperação SPU-INCRA; que a comunidade não tem o título de posse do uso da terra; que na área não existe a população que a comunidade afirma ter; que a comunidade não produz o que diz produzir.

O documentário é uma réplica a esses argumentos. Ele mostra que, no PAE Santo Afonso, existe uma antiga ocupação de uma população tradicional, respaldada pela Constituição Federal e pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esta última reconhece e protege comunidades indígenas e quilombolas, enquadrando os assentados na categoria de populações tradicionais.

Ainda que as comunidades sejam invisibilizadas, o que torna este filme um desafio é a batalha contra um inimigo poderoso, o agronegócio, cujos interesses são representados nestes processos jurídicos e midiáticos. A única arma da qual dispomos na luta é o cinema social.

Francisco Weyl é poeta, realizador, jornalista e diretor da Arte Usina Caeté. É graduado em cinema, especialista em semiótica, mestre e doutorando em artes.

 
 

Print Friendly, PDF & Email

Você pode gostar...

Translate »