Direitos da natureza como remédio contra o retrocesso

Foto de corpo d'água no Lago Agrio, Nova Loja, no Equador, onde discute-se os direitos da natureza
Elevar a natureza e os rios ao patamar de igualdade dos seres humanos substitui valores puramente utilitários e capitalistas por valores mais ecocêntricos. O Brasil, no entanto, vai na contramão da tendência.

Um dos maiores aliados à conservação do meio ambiente são as políticas públicas. O aumento das modificações antrópicas nos ecossistemas terrestres, marinhos e aquáticos acelerou a busca por proteção ambiental em várias escalas. Tratados internacionais, soft-laws, leis nacionais, estaduais, municipais e tribais compõem o vasto arcabouço de regulamentos que tentam manejar e conservar os recursos naturais.

Desde 2019, porém, a agenda brasileira para a conservação da biodiversidade e proteção do meio ambiente vai contra às propostas apresentadas por outras potências mundiais e instituições internacionais ambientais. Enquanto o governo Bolsonaro desmantelou órgãos e leis ambientais, explorou florestas e recursos em troca de vantagens econômicas (Figueira et al., 2021), o mundo contemplou encontros entre nações com o objetivo de cooperar nessa matéria. A COP 26 e IUCN World Conservation Congress em 2021 são grandes exemplos.

Para além da percepção na urgência necessária em frear as alterações que o homem vem imprimindo no ambiente em que vive, uma nova forma de interpretar a natureza surgiu nos últimos anos. Governos gradativamente vem assimilando-a. No entender dos defensores dos chamados “direitos da natureza”, seres humanos são parte do meio ambiente. Indissociáveis. Esse movimento tem origem nas tradições indígenas.

Apesar de ser um movimento novo (codificada pela primeira vez na Constituição do Equador em 2008), tais leis vêm sendo amplamente publicadas em diversos países (ex: Colombia, Chile, Equador, Espanha, Estados Unidos, Índia, Panamá, México, Nova Zelândia) e também focando em um ecossistema específico: aquático. Aos rios vem sendo garantida proteções sob o chamado “direitos para rios”. Essa busca por proteção da natureza e seu reconhecimento como merecedor de direitos, tal qual seres humanos, visa preencher uma lacuna que o direito ocidental não foi capaz de reconhecer frente às ameaças antrópicas.

Há uma dependência fundamental do homem com a água para sua própria sobrevivência, além da necessidade dos outros serviços ecossistêmicos por ela ofertados. Apesar de vital, a sociedade ignora a importância das práticas de conservação de águas e rios. Vários pesquisadores já alertaram que apenas um terço dos rios mais longos do mundo continuam fluindo livres para os oceanos (ex: Grill et al., 2019).

O discurso da energia verde inclui hidrelétrica como uma fonte de energia limpa e renovável. No entanto, estudos, como os de Gunkel et al. (2009) e Mayer et al. (2021), mostram que, além da perda de conectividade e dos prejuízos associados aos ecossistemas fluviais, os reservatórios das barragens produzem emissões de gases de efeito estufa, aumentam a fragmentação do habitat terrestre e impactam diretamente a biodiversidade. Entre 1970 e 2016, as populações de vertebrados de água doce diminuíram globalmente em 84% (Deinet et al., 2020).

Devido aos grandes impactos causados por essas infraestruturas nos corpos de água, discursos não deveriam nem ser colocados em pauta no que pese a construção de barragens em rios livres. Impactos sociais agravam a conjuntura do problema, como os deslocamentos forçados de comunidades ribeirinhas e indígenas. Há alternativas sustentáveis às hidrelétricas que hoje apresentam custos mais acessíveis (solar e eólica); muito embora a sustentabilidade dessas alternativas ainda precise ser melhor avaliada.

Não obstante a crescente atenção sobre a importância da proteção dos ecossistemas aquáticos, o último relatório do IPCC, como bem pontuado por Opperman, J. (2022), oferece como uma das possibilidade para assegurar a estabilidade climática o alto custo aos rios livres através da implementação de barragens. A equação não fecha. Hoje, há extensos estudos científicos alertando para os riscos do impedimento dos fluxos dos rios, como mencionado. Governos e instituições devem assegurar uma maior proteção desses ecossistemas e buscar alternativas sustentáveis.

Para o Brasil, o custo de permanecer na inércia e avançar com a agenda ambiental de barramento de rios e desmantelo de suas instituições de proteção ao meio ambiente pode ser alto. O país já comprometeu cursos de água como resultado da ganância da mineração, do agronegócio e da expansão imobiliária, dentre outros. Ainda não aprendeu a lição pois continua no mesmo percurso – ou seja, utilizando os rios para fins puramente utilitários.

Após alguns anos sem a construção de grandes hidrelétricas, o governo Bolsonaro, nos meses finais do seu mandato, colocou em pauta a possível construção de uma na bacia do Tapajós, um dos lugares mais bem conservados do planeta, de acordo com matéria publicada por Wenzel e colaboradores (2022).

Planos para barrar os rios livres amazônicos estão sempre em constante discussões. Inclusive, parte das hidrelétricas planejadas na Amazônia se sobrepõe com territórios indígenas e áreas protegidas, o que pode levar a futura redução, extinção ou reclassificação dessas terras (ver Anderson et al., 2019).

Apesar de vivenciarmos um aumento gradual no número de convenções, acordos e tratados a nível internacional relacionados ao meio-ambiente, resta saber se tais medidas serão suficientes para mudar o curso desafiador ao qual estamos condenando a natureza.

Outra questão é se tais diretrizes serão de fato concretizadas a nível doméstico. Em março, celebramos o dia mundial da água, em abril, o dia do Índio e da Terra. Se paradigmas não forem desconstruídos e comportamentos transformados, não haverá muito o que comemorar nos próximos anos. Para uma maior eficácia, em conjunto com políticas de conservação, ações de comando e controle são fundamentais.

Ao invés de buscarmos soluções como outros países, removendo barragens antigas, elevando e reconhecendo direitos aos nossos rios, o Brasil os condena. Estamos na contramão da história da proteção ambiental, ao menos nesse momento.

Para os rios brasileiros que ainda fluem livres, qual seria a melhor salvaguarda? A narrativa brasileira conta com inúmeros casos de desrespeito às áreas protegidas e aos maiores conservadores dessas terras – os povos indígenas. Exploração de recursos naturais dentro desses territórios e dos povos que os habitam é frequente. Garantir direito aos rios tem o potencial de mudar o curso da história da conservação desses ecossistemas?

A forma na qual a lei se substancia em cada um dos países que concederam direitos da natureza ou direitos dos rios é diversificada – através da sua Constituição, Decretos, Leis Ordinárias, ou qualquer outra forma. Porém, a mensagem que passa para a sociedade através dos tomadores de decisão é o mais relevante. Elevar a natureza e os rios ao patamar de igualdade dos seres humanos, entender que o homem é indissociável da natureza, ao contrário da ideia de que ele vive na natureza apropriando-se dela, provoca visibilidade e cria uma comoção social.

O fato da lei ser implementada ou discutida em diversas esferas já tem o poder de gerar um distanciamento de valores puramente utilitários e capitalistas para valores mais ecocêntricos. Valores nos quais a natureza e rios são o alicerce da vida e não há isolamento dos seres humanos com o planeta. É um movimento ambicioso que está se espalhando através de uma diversidade de atores, desde jovens até organizações governamentais internacionais.

Pequenos casos já aparecem no Brasil. Por meio de lei orgânica, os municípios de Bonito (PE), Paudalho (PE) e Florianópolis (SC) estabeleceram direitos da natureza. A priori, a ideia de um rio receber tal garantia e possuir guardiões para representá-lo nos tribunais frente à ameaça ou degradação possivelmente também irá inibir ações que passam nos imaginários dos perpetradores dos crimes ambientais.

Tal garantia poderia vir carregada de um “selo” que reconheça os rios a nível nacional e até mesmo internacional como seres de direito, gerando grande reconhecimento a esses ecossistemas e enaltecendo sua proteção. Juntamente com outras ferramentas de conservação, os direitos da natureza serão mais um remédio frente ao desenfreado retrocesso que vivemos.

Stephannie Fernandes é advogada e Mestre em Ciências Ambientais e Políticas na Northern Arizona University, nos Estados Unidos. Sua pesquisa visa descobrir como os arranjos institucionais se relacionam com o desenvolvimento e a conservação dos recursos hídricos. Sob a lente da ecologia política, investiga questões de governança da água em todo o mundo, com foco específico na Bacia Amazônica, com objetivo de conciliar justiça socioambiental e desenvolvimento sustentável.
Foto de destaque: Lago Agrio, Nueva Loja, no Equador. Kiyoshi/Unsplash
Referências – Direitos da natureza como remédio contra o retrocesso

 
 

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