Revista Science: Cientistas brasileiros denunciam projeto de mineração em terras indígenas

Mineração ilegal na terra indígena Munduruku, no Pará
Em carta publicada na revista Science nesta quinta-feira (26), pesquisadoras e pesquisadores brasileiros fazem crítica ao PL 191/2020, que ganhou fôlego no Congresso após início da guerra na Ucrânia.

O projeto de lei 191/2020, que busca autorizar a abertura de terras indígenas para mineração, ganhou novo fôlego a partir do cenário de guerra na Ucrânia. Argumentando prejuízos na importação de fertilizantes à base de potássio vindos da Rússia, o governo federal pediu urgência na tramitação da proposta no Congresso. No entanto, segundo cientistas, esse é um pretexto para ampliar a destruição da Amazônia. Nesta quinta-feira (26) uma carta divulgada na revista Science alerta para o perigo.

O texto foi assinado por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), do Grupo de Ecologia Aquática, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da Universidade Federal do Tocantins (UFT), da University of Wisconsin–Madison, da Universidade Federal do Ceará (UFC) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).

De acordo com os autores, os representantes do agronegócio no legislativo justificam seu apoio ao projeto de lei com o argumento de que a preservação das terras indígenas afetaria negativamente a produção agrícola do Brasil, o que classificam como enganoso.

“O argumento é falso, primeiramente, a jazida [de potássio] não fica dentro de terras indígenas, então não teria por que a Lei ser aprovada com base nesta justificativa. Além disso, não teria tempo hábil para construir a mina para resolver o problema atual de potássio”, explica Philip Fearnside, um dos cientistas que assina a carta.

Ele completa: “Devemos levar em conta, também, que existem alternativas, como o próprio potássio brasileiro fora da Amazônia, que é suficiente para suprir a demanda brasileira até 2100, e outros exportadores mundiais, como o Canadá.”

Segundo o documento publicado na Science, o PL 191/2020 não abriria as terras indígenas apenas para mineração, mas também para a construção de hidrelétricas, extração de madeira, pecuária e agricultura industrial por empresários e empresas não indígenas.

O projeto foi enviado ao Congresso em fevereiro de 2020 pelo presidente Jair Bolsonaro e ganhou prioridade em fevereiro de 2021, quando a coalizão de partidos que apoia a agenda antiambiental do governo passou a ter mais peso tanto no Senado quanto na Câmara. No entanto, a tramitação parou – até a invasão da Ucrânia.

A justificativa para aprovar o projeto de lei está baseada na suposta necessidade de extrair potássio, componente-chave na fabricação de fertilizantes, da mina de Autazes, no estado do Amazonas. No entanto, Autazes sequer está localizada em terras indígenas oficialmente reconhecidas, tornando a aprovação do projeto irrelevante para esse objetivo. Além disso, os maiores depósitos de potássio no Brasil não estão na Amazônia, mas no estado de Minas Gerais.

Na carta, pesquisadores e pesquisadoras ressaltam que as terras indígenas são essenciais para a manutenção dos ecossistemas da Floresta Amazônica brasileira. Um artigo publicado na revista Desenvolvimento e Meio Ambiente, da Universidade Federal do Paraná, relata que essas terras protegem mais florestas do que as Unidades de Conservação (UCs) do Governo Federal, áreas naturais passíveis de proteção por suas características especiais.

A aprovação do PL 191/2020, segundo cientistas, além de destruir a floresta, não vai concretizar os objetivos articulados por seus apoiadores. Mesmo que acelerasse a operação da mina planejada em Autazes, o projeto não ficaria pronto rápido o suficiente para resolver a escassez de fertilizantes agora prevista no Brasil para o próximo ano, o que significa que será preciso complementar a oferta com importações.

Até mesmo as principais mineradoras do Brasil se opõem ao PL. Para os autores da carta, agentes internacionais, incluindo as empresas canadenses envolvidas em Autazes, não devem concordar em iniciar o projeto devido aos falsos pretextos sob os quais está avançando. Em último caso, o texto recomenda que se o projeto de lei entrar em vigor sem alterações, importadores de minerais devem realizar boicotes, “para deixar claro que as ações irresponsáveis do Brasil têm consequências”.

Esta é a segunda carta de cientistas brasileiros divulgada na Science que critica projetos de lei que fragilizam a proteção de terras indígenas. No dia 19 de maio, pesquisadores do INPA publicaram uma crítica ao PL 490/2007, mais conhecido como “Marco Temporal”, que altera a legislação da demarcação de terras indígenas. O texto tramita com urgência no Senado, com apoio da bancada ruralista e do governo federal.

Sob o título “Indigenous lands protect Brazil’s agribusiness” (“Terras indígenas protegem o agronegócio do Brasil”, em tradução livre), Lucas Ferrante e Philip Fearnside ressaltam que o discurso de ódio do atual governo contra os povos indígenas e as políticas de desmantelamento da proteção de seus territórios propiciaram o aumento de invasões e ataques às Terras Indígenas (TIs) e UCs nos últimos anos.

O projeto de lei impõe o chamado marco temporal, que define como terras indígenas somente aquelas que estavam ocupadas pelos povos tradicionais em 1988, quando foi promulgada a Constituição brasileira, dificultando os procedimentos de demarcação.

“O PL corre rápido no Congresso e irá abrir as terras indígenas para todos os tipos de exploração”, afirma Fearnside.

Atualmente, existem 303 terras indígenas em processo de obtenção de proteção. Todas elas podem ser impedidas de homologação caso o PL 490/2007 seja aprovado. “Já estamos vivemos um surto de invasão às terras indígenas”, acrescenta o cientista.

Fearnside alerta ainda que esses projetos que tramitam no Congresso são um motor para o desmatamento. A demarcação de terras indígenas existe para cumprir os direitos humanos assegurados aos povos tradicionais, mas também desempenha uma função ambiental.

“O Brasil depende de manter a Floresta Amazônica [em pé]”, alerta Fearnside. Conforme ressaltam os autores, as terras indígenas protegem 25% do bioma amazônico brasileiro. A preservação de terras indígenas não afeta negativamente a produção agrícola do Brasil, pelo contrário. Os pesquisadores apontam que a preservação da floresta ajuda o agronegócio, por seu papel em reciclar a água que é transportada para áreas agrícolas fora da Amazônia pelos “rios voadores”.

No começo de janeiro, a FecoAgro-RS (Federação das Cooperativas Agropecuárias do Estado do Rio Grande do Sul) calculou em pelo menos R$ 19,77 bilhões o valor de produção perdido no estado, apenas em soja e milho, devido a uma seca atípica.

Enquanto isso, a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais (Emater-MG) apontou que 119 mil hectares de lavouras foram perdidos em Minas Gerais após chuvas excepcionalmente intensas em dezembro e janeiro, atingindo a produção de grãos (como milho e feijão) e hortaliças. São apenas alguns de uma longa lista de exemplos de como o desequilíbrio desses rios voadores afetam o agronegócio.

A destruição da Amazônia também contribui para o aprofundamento da crise climática. Segundo o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), no centro do Brasil o aumento da temperatura pode chegar a 4 ou 5°C nas próximas décadas, o que pode inviabilizar o agronegócio.

Apoiar projetos que contribuem para essa destruição, além de prejudicar o planeta e os povos tradicionais, mostra-se cada vez mais um grande tiro no pé.

Leia a carta completa em português: Guerra serve de desculpa para destruição da Amazônia.
Imagem em destaque: Mineração ilegal na terra indígena Munduruku, no Pará. Vinícius Mendonça/Ibama.

 
 

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