Colonialismo segue vivo na forma de pensar patrimônio dos brasileiros, diz Krenak
Em painel na Feira do Livro no Pacaembu, pensador indígena criticou culto ao chamado “patrimônio de pedra e cal” e disse que ninguém é dono da experiência de participar do mundo
“Alguém me perguntou sobre não só adiar o fim desse mundo, mas pensar uma transformação radical nesse mundo. Essa ideia da transformação radical do mundo é alimentada pela mesma mentalidade que instituiu o mundo que nós estamos experimentando agora, e do qual não estamos gostando. (…) Digo isso para a gente sair dessa crise política cotidiana de ficar achando que os nossos problemas todos nasceram ontem.”
Ailton Krenak extraiu esse trecho de sua recém-lançada obra “Lugares de Origem” (Jandaíra, 2022), em co-autoria com Yussef Campos, historiador da Universidade Federal de Goiás (UFG), para abrir sua fala no painel da Feira do Livro no Pacaembu, em São Paulo.
Conversando com o moderador e diretor de programação da feira, Paulo Werneck, o escritor e líder indígena enfatizou que não é possível fazer uma transformação radical em um mundo que já está em convulsão – a menos que “apertemos um botão para afundar todo mundo”: o planeta voltaria a ser lindo em 200 anos, só não estaríamos aqui para ver.
“Lugares de Origem” aborda uma das facetas desse mundo do “tudo para ontem”, que nos faz pensar que a vida e tudo que a cerca é uma mercadoria: o chamado patrimônio cultural.
Krenak já refletiu em outras obras sobre o conceito “povo da mercadoria”, criado por uma das principais lideranças indígenas do país, Davi Kopenawa – “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo” (Companhia das Letras, 2020), “A Vida não é Útil” (Companhia das Letras, 2019) –, mas desta vez juntou-se a Campos para criar um livro-diálogo em torno do que significa memória social e patrimônio.
No Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é a autarquia federal responsável pela preservação e divulgação do patrimônio material e imaterial do país. Krenak, no entanto, advertiu que o órgão preserva apenas aquilo que seu autor chama de “patrimônio de pedra e cal”.
“O Iphan nasceu para cuidar da arquitetura colonial brasileira, mas não com uma visão crítica. Ele considera essas estruturas como exemplares da nossa arte de habitar, ocupar – e colonizar”, disse o escritor.
Campos não pôde comparecer ao painel da Feira do Livre porque contraiu a Covid-19. Krenak representou-o ao relembrar que o professor e pesquisador faz uma crítica ao patrimônio de pedra e cal, dizendo que é muito pouco continuar protegendo edifícios históricos como se eles fossem um acervo que constitui matéria relevante para nossa identidade, reconhecimento e cultura.
“O Iphan tem uma base patrimonialista, proprietária. Mas a cultura não é material. Cultura não é o livro. O livro é só o suporte. Cultura é o que passa pelas páginas, por esse ambiente de convivência em que compartilhamos sonhos, expectativas, visões e ideias. É o que nos afeta mesmo quando nós não estamos abertos a essa colaboração. Se eu escutar uma música, ela vai ficar em algum lugar do corpo”, declarou o líder indígena.
“Uma história, uma narrativa, um filme, um desenho, uma imagem. Tudo isso constitui fruição de uma subjetividade que é compartilhada por pessoas desiguais. Não precisa ser igual para experienciar a cultura, ninguém é dono dela. Ninguém é dono da experiência subjetiva de participar do mundo. Mas alguém é dono de um prédio”.
As comunidades tradicionais e povos originários tem muito a contribuir com esta discussão, já que “não tinham patrimônio, não se consideram donos de nada”, como afirmou Krenak – que embora tenha horror ao “papo furado do Congresso”, participou da escrita da Constituição sobre os temas de patrimônio imaterial, direitos indígenas e direitos de não humanos.
“Lugares de Origem” também pede esse retorno ao sentido de origem, dos povos originários, que deveriam ter prioridade histórica na escuta, na fala, segundo o escritor, “e não serem invisibilizados por sujeitos autoritários que acham que tudo está à venda”.
E a natureza? Embora seja, de certa forma, material, está longe de fazer parte da categoria de “pedra-e-cal”. Paulo Werneck, o moderador, perguntou como o Rio Doce, devastado pelo desastre da barragem do Fundão, em Mariana, poderia se encaixar na discussão sobre patrimônio.
Krenak explicou que, ao contrário de um prédio, é impossível ser proprietário de um rio.
“Um rio deveria ser nosso, de todos nós, não de ninguém. Impossível alguém capturar um rio. Nem aqueles que empesteiam o Tietê são donos dele. Ele pode ser avacalhado, mas não apropriado”, disse.
O desastre ambiental, por sua vez, não afetou o mundo apenas materialmente: “Eu vivo na beira de um rio calcinado pela lama da mineração, uma lama bilionária, que chegou até o Arquipélago de Abrolhos [Bahia] e matou tartarugas marinhas. Quando a mineração invadiu o corpo do rio, invadiu também nosso imaginário. Sujou nosso imaginário sem pagar nada.”
A lógica materialista da proteção ao patrimônio se encaixa, de acordo com Krenak, na linha de pensamento cultivada pelos novos filósofos dos anos 1960 e 1970, que ele resume como uma “corrente de pensamento tipo autoajuda”, que prega a “ideia da vida como um shopping, de que seríamos todos felizes”.
“É a consagração de uma sociedade de idiotas consumidores. Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, disse que o mundo não tolera a cidadania, quer formar clientes e consumidores, que são, respectivamente, sujeitos indiferentes e imbecis de primeira categoria. Ser cidadão implica em pensar e fazer escolhas, enquanto cliente só passa cartão. Então, banalizamos a experiência social”, afirmou.
Ele acrescentou que, com a priorização de clientes e consumidores, os cidadãos são hostilizados. “Dois cidadãos foram desaparecidos na Amazônia agora, vocês sabem?”, perguntou, referindo-se ao desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira. “Foram abduzidos. E num trecho de floresta em que os nossos parentes são capazes de localizar até mesmo um mico.”
Mais tarde na exposição, Krenak retomou a crítica à violência na Amazônia, focando no garimpo, e afirmou que é impossível “fingir que está tudo bem”.
“O crime organizado tomou a Amazônia, não é mais só uma ou outra pessoa que corta madeira. E também voltamos ao passado, à busca pelo ouro”, comentou.
Depois disso, o painel foi paralisado, quando um homem se aproximou do palco e interrompeu as falas do escritor, perguntando quando seria possível fazer perguntas à mesa. Krenak decidiu interromper a fala.
O homem foi convidado a fazer uma pergunta ao microfone e questionou quais eram os possíveis benefícios da exploração do ouro na região amazônica. Krenak respondeu que não vê “nenhum motivo para tirar ouro de lugar nenhum, a não ser para fazer a dentadura de alguém”, ao que foi aplaudido de pé, sob gritos de “fora, garimpo” e “fora, Bolsonaro”.
Quando os ânimos se acalmaram, o líder indígena acrescentou: “Depois que tivermos acabado com todas as terras e rios, vão comer o que? Ouro? Quando acabar o último peixe do rio e a última floresta, as pessoas vão entender que a gente não come dinheiro.”
Foto em destaque: O líder indígena Ailton Krenak ergue a mão em punho e fala em microfone sobre patrimônio cultural na Feira do Livro no Pacaembu, em São Paulo. (Matheus Ferreira/Amazônia Latitude)