Resenha: A vida não é útil

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A vida não é útil
Autor: Ailton Krenak
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2020

Quanto tempo nos dedicamos a desfrutar o privilégio de estar vivo? Somos instigados a fazer algo a todo tempo, em vez de simplesmente viver. Nossa cultura dificulta a concepção de uma vida que não tenha o trabalho como razão primordial da existência.

Acreditando na realização pessoal por meio da produção e do consumo, esgotamos a possibilidade de preservação da espécie humana no planeta. Isto porque, desde a chamada Modernidade, fomos instigados a confiar na emancipação do homem em relação à natureza, sem ver problema na modificação permanente do meio ambiente a nosso serviço.

A crise sistêmica que enfrentamos desmente a ideia de autossuficiência. Pela ausência de soluções concretas ao atual impasse da humanidade, muitos olhos têm se voltado para a sabedoria de uma constelação de culturas que enxerga a vida como parte inerente da Terra, a grande mãe que nutre tudo aquilo que respira.

O pensamento do escritor, jornalista, filósofo, ativista e líder indígena Ailton Krenak pertence a essa visão de mundo e, ao lado de outros intérpretes, vem dando corpo à chamada epistemologia indígena. Suas reflexões destacam as contradições do nosso tempo e criticam as práticas auto-aniquilação das sociedades contemporâneas ocidentalizadas.

Para desmobilizar a noção de superioridade humana, Krenak defende que, por mais que pareçamos donos da Terra, não passamos de inquilinos barulhentos e podemos ser convidados a nos retirar sem aviso prévio. Para bom entendedor, a Covid é um aviso prévio.

Dividido em cinco capítulos – Dinheiro não se come, Sonhos para adiar o fim do mundo, A máquina de fazer coisas, O amanhã não está à venda e A vida não é útil – seu novo livro retoma a tradição oral de transmissão de conhecimento dos povos indígenas. “A vida não é útil” é um apanhado de entrevistas e palestras organizado por Rita Carelli.

Best-seller desde que publicou “Ideias para adiar o fim do mundo”, em 2019, com mais de 50 mil cópias vendidas e tradução para diversos idiomas, Ailton garante que seus livros não são manuais de autoajuda. Seu objetivo, insiste, não é dar conselhos, mas fazer uma alerta: acordem!

Viciados em modernidade

Presos à ideia de progresso, de que estamos indo para algum lugar, naturalizamos a substituição do aparato natural pelo técnico, atrofiando nossa capacidade inata de relação com o planeta. Toda a experiência que temos é mediada por objetos fabricados para supostamente aprimorá-la.

“Estamos a tal ponto dopados por essa realidade nefasta de consumo e entretenimento que nos desconectamos do organismo vivo da Terra”, afirma Krenak no livro. Impulsionados por um sistema que toda hora nos oferece uma mercadoria nova para nos distrair, consumimos compulsivamente e ignoramos o sentido de existir.

É nesse contexto que o autor questiona a ânsia dos bilionários em colonizar o espaço, buscando refúgio para quando o planeta ficar inabitável: “quantas Terras essa gente precisa consumir até entender que está no caminho errado?”. Para o indígena, vivemos verdadeiro abismo cognitivo, incapazes de compreender que “a vida é transcendência, está para além do dicionário, não tem definição”.

Apesar de afirmar que não há mais separação entre gestão política e financeira do mundo, Krenak não alivia para os indivíduos. Não dá para esperar iniciativa de entes invisíveis: “seja na floresta, seja em um apartamento, precisamos despertar nosso poder interior e parar de ficar caçando um culpado ao nosso redor”, diz.

Incentivando o olhar para dentro de si mesmo, reproduz trecho de poema de Drummond que sugere que o homem, após colonizar, civilizar e humanizar os outros sistemas, depois que esgotar o Solar, só restará descobrir, em suas próprias e inexploradas entranhas, a insuspeitada alegria de “con-viver”. Segundo o filósofo, não é para fora que a humanidade realizará sua maior conquista.

Em meio às aflições do presente, para Ailton, quando tudo parece desmoronar é preciso ter alguém para chamar. Seu principal “paraquedas colorido”, que explica em “Ideias para adiar o fim do mundo”, é o poeta mineiro. A poesia é apontada como refúgio, uma vez que exala subjetividade humana; é na conexão com outras percepções sobre o mundo que as civilizações se curam.

estrelas krenak

Confiando na ciência e na tecnologia, a humanidade crê que “não só pode incidir impunemente sobre o planeta como será a última espécie sobrevivente e a única a decolar daqui quando tudo for pelo ralo”. Aglomerado de estrelas Westerlund 2. Crédito: NASA, ESA, Hubble Heritage Team (STScI/AURA), A. Nota (ESA/STScI) e Westerlund 2 Science Team

Descolamento da vida

Apesar de parecerem naturais e imutáveis, nossos valores foram culturalmente construídos. Deixar de olhar nosso modo de ser como o único possível dá margem a descobrir outras maneiras de se viver. Há, contudo, uma questão: é possível frear a ambição pelo consumo, considerando que, para muitos, isso simboliza uma ascensão social?

“‘Mas agora que chegou a minha vez, você vem me dizer que acabou a festa?’ Existe um desejo de que essa condição de consumo da vida se estenda por tempo indeterminado, sem que a máquina de fazer coisas precise ser desligada”, reflete Krenak. Segundo o autor, sabemos que precisamos renunciar ao que estraga nossa vida no planeta, mas só consideramos substituir, não eliminar.

Outro retrato de nossa civilização é a crença de que podemos nos blindar da morte. Para o filósofo, a extensão da vida por meio dos aparatos médico-científicos é uma falsificação e deixa “de fora a escolha das pessoas de viver dentro do ciclo da vida e da morte que a natureza proporciona”.

Ao compreender que nós e a Terra somos uma mesma entidade, Ailton diz que desenvolvemos uma relação cósmica com o mundo. “Habitar harmoniosamente o cosmos” é compartilhar uma espécie de Ubuntu com todas as formas de vida, “eu sou porque nós somos”, extrapolando o caráter humanista da filosofia africana. Respeita-se tudo que é vivo não apenas pela solidariedade, mas pela noção de pertencimento.

O autor fala sobre povos que atribuem à Terra as mesmas suscetibilidades do corpo humano, dizendo que o planeta está doente, e afirma que aqueles que não estão engajados com o consumo do planeta são a sua cura: “eles são os remédios da febre do planeta”.

“Nós não somos constituídos de dois terços de água e depois vem o material sólido, nossos ossos, músculos, a carcaça? Somos microcosmos do organismo Terra, só precisamos nos lembrar disso”, arrebata.

Apesar de não planejar o conteúdo das entrevistas, Krenak nos presenteia com reflexões inestimáveis, como a que segue: “os outros seres são junto conosco, e a recriação do mundo é um evento possível o tempo inteiro”.

Um anzol fisga a consciência

Publicado como e-book antes do lançamento de “A vida não é útil”, o capítulo “O amanhã não está à venda” discute o que parecia impossível: a suspensão de atividades econômicas, um mundo parado. Inserido em outro contexto, ganhou novas interpretações.

“E temos agora esse vírus, um organismo do planeta, respondendo a esse pensamento doentio dos humanos como um ataque à forma de vida insustentável que adotamos por livre escolha, essa fantástica liberdade que todos adoram reivindicar, mas ninguém se pergunta qual o seu preço”.

Afinal, somos mais livres porque podemos escolher entre mais produtos, ou isso só aumenta a nossa angústia, diante da dificuldade de decisão? É um dos questionamentos que Luiz Bolognesi faz em Ex-Pajé, quando o personagem central do documentário passeia pelas gôndolas de um supermercado ⎼ cena que impressiona pelo contraste cultural.

O fato do vírus não matar outros animais, apenas os humanos, mostra que foi o nosso mundo artificial que entrou em crise. Vivendo no que Krenak chama de uma abstração civilizatória, experimentamos a ecologia do desastre por meio de uma economia do desastre.

“Dizer que a economia é mais importante é como dizer que o navio importa mais que a tripulação”, diz o autor em referência à descartabilidade da vida, comum na metástase do pensamento branco sobre a Terra. Subvertemos a lógica: colocamos as pessoas para servirem a economia, ao invés de uma economia que dê às pessoas uma condição de vida digna.

Em “O amanhã não está à venda”, Krenak interpreta a pandemia como um silenciamento feito pela mãe Terra aos seus filhos. A humanidade-zumbi, interrompida de seu automatismo, foi forçada ao recolhimento.

“Não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. É como um anzol nos puxando para a consciência. Um tranco para olharmos para o que realmente importa”, avalia.

No entanto, se algo brotou dessa introspecção coletiva foi o medo. Apesar do mundo estar cada vez mais cheio de gente e de conexões, estamos cada vez mais solitários. Há, ainda, uma sensação generalizada de desproteção e insegurança. “Deixamos de ser sociais porque estamos num local com mais 2 milhões de pessoas”, afirma.

Nesta passagem, seu relato lembra o da antropóloga Aparecida Vilaça sobre o assombro de seu pai indígena, Paletó, da etnia Wari’, a respeito de ela não conhecer as pessoas com as quais cruzavam nas ruas do Rio de Janeiro.

“Era inconcebível para ele que se pudesse viver ao lado de pessoas sem que se estabelecessem com elas relações de parentesco, algo que se constrói fazendo coisas juntos, de modo a produzir memórias mútuas, especialmente compartilhando a comida”, disse a pesquisadora à revista Piauí.

A construção da existência a partir de uma perspectiva coletivista e de contato com a terra nos mostra o grau de pertencimento que os laços afetivos podem criar. Dentre as muitas coisas que os povos originários nos ensinam estão o desfrute da vida e a conexão com os outros seres.

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“Não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. É como um anzol nos puxando para a consciência. Um tranco para olharmos para o que realmente importa”, diz Ailton Krenak. Crédito: Ascom/Funai

Suspender o céu

Em “Sonhos para adiar o fim do mundo”, o pensador dialoga com os estudos do neurocientista Sidarta Ribeiro, para quem o sonho significa espaço de revelação, viagem e aprofundamento das ideias. Krenak afirma que os sonhos que temos ao dormir são “onde as pessoas aprendem diferentes linguagens, se apropriam de recursos para dar conta de si e do seu entorno”.

Além de ser uma instituição que prepara as pessoas para lidarem com o dia a dia, para Krenak, é também um lugar de veiculação de afetos, na medida em que grupos se reúnem de manhã para contar o sonho que tiveram. A civilização ocidental, industrial e capitalista, contudo, abraçou a técnica e abandonou a arte de narrar os sonhos, diz Sidarta.

Para o neurocientista, essa é uma das origens do mal estar da civilização. Por isso, defende que devemos voltar a sonhar o futuro, semelhante ao que Krenak chama de sonho coletivo de mundo: um conjunto de desejos capazes de transformar a realidade.

O indígena pensa que a pandemia, enquanto crise, pode ser o ponto de partida para essa transformação, desde que admitamos que nosso sonho coletivo de mundo seja outro e a inserção da humanidade na biosfera tenha que se dar de outra maneira.

Como superar, no entanto, toda a tralha cultural que carregamos? “Como imaginar uma coisa melhor se nossa imaginação é feita de fragmentos do passado?”, questiona Sidarta a Krenak no festival Na Janela, promovido pela Companhia das Letras.

No capítulo “Sonhos para adiar o fim do mundo”, que teve origem nesta conversa, Krenak responde que a formação do comum começa com o movimento de cada indivíduo: “cada um de nós – não a economia, não o sistema todo – pode atuar positivamente nesse caos e trabalhar (…) por uma auto-harmonização”.

“Acho que o que estamos passando é uma espécie de ajuste de foco no qual temos a oportunidade de decidir se queremos ou não apertar o botão da nossa autoextinção, mas todo o resto da Terra vai continuar existindo”, afirma. “Suspender o céu é ampliar os horizontes de todos, não só dos humanos”, completa.

Envolver em vez de desenvolver

As notícias são velhas: “nós estamos, devagarzinho, desaparecendo com os mundos que nossos ancestrais cultivaram sem todo esse aparato que hoje consideramos indispensável”. Krenak reforça a tese de que quem vive na cidade não experimenta a sensação de que o mundo ao redor está sumindo, como dito no filme Amazônia Sociedade Anônima: “quem está no ar condicionado, não sente o aquecimento”, diz o cacique Juarez Saw Munduruku .

Krenak nos chama à reflexão: “na cidade (…) tudo parece ter uma existência automática: você estende a mão e tem uma padaria, um supermercado, um hospital. Na floresta não há essa substituição da vida, ela flui, e você, no fluxo, sente a sua pressão”. Na sua percepção, enquanto as bases materiais da nossa vida estão operantes, a gente não se pergunta de onde vem o que consumimos.

Para o ativista, além da ideia de pertencimento à natureza, “a consciência de estar vivo deveria nos atravessar”. E tenta multiplicar o seu olhar com enorme generosidade: “eu tenho uma alegria muito grande de experimentar essa sensação e fico procurando comunicá-la, mas também respeito o fato de que cada um tem a sua passagem por este mundo”.

O pensador critica a naturalização da mercantilização da vida desde a infância e, sobre o roteiro que seguimos, comenta: “o que chamam de educação é, na verdade, uma ofensa à liberdade de pensamento, é tomar um ser humano que acabou de chegar aqui, chapá-lo de ideias e soltá-lo para destruir o mundo. Para mim isso não é educação, mas uma fábrica de loucura que as pessoas insistem em manter”.

Falta à escola branca uma experiência geracional de troca, destaca. Os pais deixaram de transmitir o que aprenderam, sua memória, para que seus descendentes possam existir no mundo com alguma herança, algum sentimento de ancestralidade.

Nesse sentido, é possível observar um paralelo entre o utilitarismo da educação, que só forma trabalhadores, mas não forma espiritualmente, como disse Byung-Chul Han em entrevista ao El País, e da vida, voltada exclusivamente para o consumo. À Ruth de Aquino, no Globo, Krenak afirmou: “a vida não pode ser uma caixa registradora”.

No livro, também levanta a polêmica de que a sustentabilidade é uma vaidade pessoal, além de uma narrativa para que se perpetue o consumismo. Apesar de reconhecer a importância da conscientização do gasto excessivo de tudo, não crê que seja por meio desse “mito” que vamos avançar.

É uma “mentira bem embalada” essa história de que, se economizarmos água, comermos orgânico e andarmos de bicicleta, vamos diminuir a velocidade com que esgotamos o planeta. Não dá para “abrir a boca para dizer que existe qualquer coisa de sustentável neste mundo de mercadoria e consumo”, crava.

Reforça, ainda, que iniciativas individualistas não são suficientes para mudarmos a relação com o mundo.

“Vamos apenas nos enganar, mais uma vez, como quando inventamos as religiões. Tem gente que se sente muito confortável se contorcendo na ioga, ralando no caminho de Santiago ou rolando no Himalaia, achando que com isso está se elevando. Na verdade, isso é só uma fricção com a paisagem, não tira ninguém do ponto morto”.

E segue: “trata-se de uma provocação acerca do egoísmo: eu não vou me salvar sozinho de nada, estamos todos enrascados. E, quando eu percebo que sozinho não faço a diferença, me abro para outras perspectivas. É dessa afetação pelos outros que pode sair uma outra compreensão sobre a vida na Terra”.

Krenak não evita apontar a letargia de cada um de nós, que culpa as instituições e os políticos pelo cataclisma do planeta.

E reitera: “a vida é fruição, (…) uma dança cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária”. “Nós temos que ter coragem de ser radicalmente vivos, e não ficar barganhando a sobrevivência”, afirma. “Sobreviver já é uma negociação em torno da vida, que é um dom maravilhoso e não pode ser reduzido”.

“O pensamento vazio dos brancos não consegue conviver com a ideia de viver à toa no mundo, acham que o trabalho é a razão de existência”. Segundo o filósofo, para quem a vida não tem a menor utilidade, nos resta apenas “viver as experiências, tanto a do desastre quanto a do silêncio”. Sua coragem impressiona, mas que alternativa têm os que já vivem o fim do mundo há 500 anos?

Veja outras resenhas aqui.

 

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