Quem autorizou matar Bruno e Dom?

Arte em preto, vermelho e branco com as fotos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips
Para o procurador Camões Boaventura, o Estado brasileiro tornou propício contexto em que ambos foram mortos

Escrevo estas linhas completamente tomado por uma mistura de doses colossais de dor, tristeza e revolta. O assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips revela, em múltiplas dimensões, a realidade excruciante que experimenta o Brasil e os povos originários desta terra.

Antes de qualquer digressão, quero aqui deixar meus mais sinceros sentimentos às famílias. Desde a notícia do desaparecimento passei a não mais conseguir pensar em nada diferente. Nem mesmo expandir o olhar para o contexto em que se deu o fato eu conseguia. Apenas a dor das famílias era objeto de meus pensamentos.

Conheci Bruno em meados de 2018, quando ele assumiu a chefia do mais sensível setor da Fundação Nacional do Índio (Funai), a Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (Cgiirc). Antes de conhecê-lo pessoalmente eu já sabia de seu trabalho inspirador no Vale do Javari. Quando de nosso primeiro encontro, que foi para tratar dos Zo’é, povo de recente contato que habita os limites territoriais do Pará, e que ambos trabalhávamos, eu logo percebi que estava diante de um dos maiores indigenistas do nosso tempo. Intelectualmente preparado, organicamente comprometido com os povos indígenas e inafastavelmente disposto a resolver qualquer demanda que a ele se apresentasse. Esse era o Bruno Pereira profissional.

Nós nos encontramos e nos falamos algumas vezes depois desse dia. Três episódios me marcaram. Em Janeiro de 2020, fomos Bruno, minha colega e amiga Márcia Zollinger, um defensor público da União e eu, reunirmos-nos formalmente com a juíza federal que havia recebido uma ação civil pública que havíamos ajuizado impugnando a nomeação de um missionário evangélico proselitista para chefiar a CGIIRC. Em uma conversa eminentemente de cunho jurídico, em que quatro dos cinco participantes eram operadores do Direito, Bruno se destacou. Demonstrou mais conhecimento jurídico acerca do que estávamos conversando do que qualquer um de nós. Tudo isso sem arrogância, sem petulância. Do alto de seus 2 metros de altura, com voz afável e gentil, mostrou toda a sua envergadura profissional.

Já sob a égide da pandemia de coronavírus, encontramos-nos casualmente no Parque Olhos d’Água, em Brasília. Bruno me falava empolgado acerca da preparação que o movimento indígena e demais organizações da sociedade civil empreendiam para o ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709, a principal ação até hoje ajuizada no judiciário brasileiro em favor dos povos indígenas. Bruno foi um dos principais agitadores dessa ação. Nesse encontro, Bruno estava acompanhado da família e eu da minha filha mais velha. Pude testemunhar ali um pai amoroso e um companheiro atencioso.

O outro momento que me marcou nas experiências que tive com Bruno foi em Setembro de 2020, quando conversamos por telefone acerca da morte de Rieli Franciscato, amigo e uma das principais referências de Bruno no campo do indigenismo. Rieli morreu flechado por indígenas em isolamento voluntário e que vivem acuados, com medo da expansão dos grileiros e desmatadores em Rondônia. Bruno chorou ao telefone. Mesmo triste e abalado, aceitou a missão de auxiliar o Ministério Público Federal em Rondônia em conceber medidas estratégicas de defesa dos indígenas. O contato de Bruno com os colegas deu azo a uma Recomendação do MPF.

Dom Phillips não cheguei a conhecer pessoalmente. Li algumas de suas reportagens. Mesmo sem conhecê-lo rendo a ele todas as homenagens. O simples fato de ter vindo residir no Brasil e aqui desenvolver atividade jornalística investigativa acerca de conflitos socioambientais o coloca em posição de coragem e altruísmo. O Brasil há anos se destaca negativamente como um dos países que mais mata defensores ambientais e na quadra atual vivencia um cenário constante de violência e intimidações à liberdade de imprensa.

Por cerca de uma semana o mundo se perguntou: onde estão Bruno e Dom? Agora que esta angustiante indagação deixa de se fazer necessária, é chegada a hora de se questionar: Quem autorizou matar Bruno e Dom? Quem autoriza e pratica o genocídio em face dos povos indígenas que Bruno e Dom defendiam?

Como profissional do Direito que sou jamais me arvoraria em atribuir responsabilidade em quer que seja sem ter acesso às provas, sem que tenha sido proferida decisão judicial condenatória impassível de recurso. As investigações estão em curso e espero que o sistema de justiça se mobilize para descobrir e sancionar os responsáveis diretos. Mas me arvoro sim em afirmar que é o Estado brasileiro que tornou propício o contexto em que morreram Bruno e Dom.

O Vale do Javari, no extremo oeste do estado Amazonas, é a área de maior concentração de povos indígenas em isolamento voluntário do mundo. Povos que literalmente fogem da gente porque foram capazes de perceber que nossa forma de estar no mundo é destrutiva e tem um prazo de validade. Caberia ao Estado brasileiro se fazer integralmente presente na região, envidando todos os esforços possíveis para que a decisão desses povos em se isolarem seja respeitada e para que estes e os demais indígenas que habitam a região usufruam de um território íntegro e livre de invasões. Não foi isso que o Estado fez. Retirou-se gradativamente de cena nos últimos anos, proporcionando o estabelecimento de uma complexa teia criminosa que envolve tráfico de armas e drogas, grilagem, desmatamento, garimpo, pesca e caça predatórias.

O crime, com o beneplácito do Estado, hoje domina a mais pluriétnica área geográfica do mundo. Como bem me disse em comunicação pessoal meu amigo Erik Jennings, um dos mais respeitados médicos sanitaristas do país em matéria de povos indígenas: “povos que na sua maioria voluntariamente escolhem evitar nossa sociedade, tem seu território dominado pelo que temos de pior”. Eis uma verdade dilacerante e que demanda atenção urgente do mundo.

O Estado propicia a morte de Bruno e Dom quando desconsidera e faz vista grossa aos relatos de ameaças aos indígenas, seus aliados e servidores públicos que os defendem, bem como quando não apresenta respostas judiciais às mortes já ocorridas, como a de Maxciel Pereira dos Santos, executado há 3 anos em Tabatinga\AM provavelmente em virtude do trabalho de proteção que fazia dos territórios indígenas.

O Estado também propicia a morte de Bruno e Dom quando a todo instante ofende a integridade das terras indígenas, quando desmobiliza bases de proteção territorial dessas terras, quando se compromete em não mais demarcar terras indígenas, quando anuncia medidas de ‘regularização’ de ocupações ilícitas nesses territórios, quando passa o claro recado de que o crime compensa, quando sufoca as agências de proteção ambiental, quando sanciona e inviabiliza que servidores públicos dessas agências simplesmente desempenhem o trabalho para o qual são mal remunerados. Não se pode esquecer, Bruno foi exonerado do cargo de coordenador que ocupava da Funai tão somente por ter coordenado uma operação de expulsão de garimpeiros da terra indígena Vale do Javari. Bruno se licenciou, sem remuneração, da Funai porque o órgão não mais lhe fornecia nenhuma condição material de seguir defendendo os direitos dos povos indígenas.

Chama a atenção a parte final do bilhete de ameaça a Bruno que foi veiculado na mídia. Os ameaçadores advertem que sabem que quem os fiscaliza nem da polícia são. Eles se referiam a Bruno e à União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Fica claro com esse trecho que se representantes do Estado fossem os fiscalizadores maior deferência por parte dos invasores seriam merecedores. Bruno era representante do Estado até muito recentemente, tendo dele se licenciado para poder seguir trabalhando em prol dos indígenas que estabeleceu relação.

Definitivamente, Bruno e Dom não estavam numa “aventura não recomendável”. Eles estavam trabalhando, disponibilizando seus talentos inegáveis em benefício de um bem substancialmente maior do que a sanha genocida de quem quer que seja. Aventura não recomendada, aliás, perigosíssima e de efeitos possivelmente irreversíveis, é que o país admita que os povos originários sigam sendo violentamente atacados.

Luís de Camões Lima Boaventura é mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), na linha de Movimentos Sociais. Atua como Procurador da República e é membro do Ministério Público Federal desde 2013. Também é especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público da União.
Foto em destaque: Bombeiros, no rio Itaquai, durante operação de buscas pelo desaparecimento do Jornalista Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira, no Vale do Javari, município de Atalaia do Norte, estado do Amazonas, Brasil, em 10 de Junho de 2022. (Edmar Barros/Amazônia Latitude)

 

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